segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Um poema de Carmen Silvia Presotto


Porque chove
Tudo é água
que empoça e embacia
Tudo é lágrima
que sublima, condensa e lava

Porque choro
Chovo mais que o céu
Transbordo-me
Parto palavras como se ossos se liquifizessem

Porque chove
versejo em gotas de ilusão
Espanto as horas mormacentas
Granito janelas na rua

Porque chove
Salpico meus pesadelos
Nessas vidráguas, encontro a poeta
Brindamos vidro com água
Uma de nós ganha a liberdade.


* Poema enviado pela poeta Carmen Silvia Presotto, sua autora; Carmen além de exímia poeta é também mantenedora do espaço Vidráguas.


.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Três poemas de Sierguéi Iessiênin


A CONFISSÃO DE UM VAGABUNDO

Nem todos sabem cantar
Não é dado a todos ser maçã
Para cair aos pés dos outros.

Esta é a maior confissão
Que jamais fez um vagabundo.

Não é à toa que eu ando despenteado,
Cabeça como lâmpada de querosene sobre os ombros.
Me agrada iluminar na escuridão
O outono sem folhas de vossas almas,
Me agrada, quando as pedras dos insultos
Voam sobre mim, granizo vomitado pelo vento.
Então limito-me a apertar mais com as mãos
A bolha oscilante dos cabelos.

Como eu me lembro bem então
Do lago cheio de erva e do som rouco do amieiro
E que nalgum lugar vivem meu pai e minha mãe,
Que pouco se importam com meus versos,
Que me amam como a um campo, como a um corpo,
Como à chuva que na primavera amolece o capim.
Eles, com seus forcados, viriam aferrar-vos
A cada injúria lançada contra mim.

Pobres, pobres camponeses,
Por certo, estão velhos e feios,
E ainda temem a Deus e aos espíritos do pântano.
Ah, se pudessem compreender
Que o seu filho é, em toda a Rússia,
O seu melhor poeta!
Seus corações não temiam por ele
Quando molhava os pés nos charcos outonais?
Agora ele anda de cartola
E sapatos de verniz.

Mas sobrevive nele o antigo fogo
De aldeão travesso.
A cada vaca, no letreiro dos açougues,
Ele saúda à distância.
E quando cruza com um coche numa praça,
Lembrando o odor de esterco dos campos nativos,
Lhe dá vontade de suster o rabo dos cavalos
Como a cauda de um vestido de nooiva.

Amo a terra.
Amo demais a minha terra!
Embora a entristeça o mofo dos salgueiros,
Me agradam os focinhos sujos dos porcos
E, no silêncio das noites, a voz alta dos sapos.
Fico doente de ternura com as recordações da infância.
Sonho com a névoa e a umidade das tardes de abril,
Quando o nosso bordo se acocorava
Para aquecer os ossos no ocaso.
Ah, quantos ovos nos ninhos das gralhas,
Trepando nos seus galhos, não roubei!
Será ainda o mesmo, com a copa verde?
Sua casca será rija como antes?

E tu, meu caro
E fiel cachorro malhado?!
A velhice te fez cego e resmungão.
Cauda caída, vagueias no quintal,
Teu faro não distingue o estábulo da casa.
Como recordo as nossas travessuras,
Quando eu furtava o pão de minha mãe
E mordíamos, um de cada vez,
Sem nojo um do outro.

Sou sempre o mesmo.
Meu coração é sempre o mesmo.
Como as centáureas no trigo, florem no rosto os olhos.
Estendendo as esteiras douradas de meus versos
Quero falar-vos com ternura.

Boa noite!
Boa noite a todos!
Terminou de soar na relva a foice do crepúsculo…
Eu sinto hoje uma vontade louca
De mijar, da janela, para a lua.

Luz azul, luz tão azul!
Com tanto azul, até morrer é zero.
Que importa que eu tenha o ar de um cínico
Que pendurou uma lanterna no traseiro!
Velho, bravo Págaso exausto,
De que me serve o teu trote delicado?
Eu vim, um mestre rigoroso,
Para cantar e celebrar os ratos,
Minha cabeça, como agosto,
Verte o vinho espumante dos cabelos.

Eu quero ser a vela amarela
Rumo ao país para o qual navegamos.


OUTONO
Égua rubra alisando as crinas:
O outono na calma dos zimbros.

Sobre a margem terrosa e áspera,
o tinido azul dos seus cascos.

Monge-vento, passo medido,
Pisa as folhagens do caminho.

E beija o Não-Visível-Cristo,
Chagas vermelhas entre arbustos.


*
Pobre escrevinhador, é tua
A sina de cantar a lua?
Há muito o meu olhar definho
No amor, nas cartas e no vinho.

Ah, a lua entra pelas grades,
A luz tão forte corta os olhos.
Eu joguei na dama de espadas
E só me veio o ás de ouros. 


* Tradução de Augusto de Campos
.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Três poemas de António Reis


1
Deu meia-noite
és livre
os guardas olham as montras

vêem o preço dos coturnos
e dos lenços

não mais se lembrarão de ti

só se o luar nascer
ou a manhã

ou se gritares


12
Há sempre um rapaz triste
em frente a um barco

a água é sempre azul
e sempre fresca

Em que país encontraria
um emprego e esquecimento

em que país encontraria
amor e compreensão

em que país
sentiriam
a sua vida e a sua morte

Não respondem as gaivotas
porque voam

Há sempre um rapaz triste
com lágrimas nos olhos
em frente a um barco


16
Chega a ter gosto
a chuva
vista dos cafés

caindo sobre as estátuas
e a nostalgia

chega a ser morna

com fumo e álcool
na garganta

Até os homens passarem
junto aos vidros

reais
molhados

sem emoções instruídas

pensando em remédios
e prestações

grisalhos
sem serem velhos

e falando sós

sem serem loucos

António Reis nasceu em 27 de agosto de 1927 em Valadares e morreu em Lisboa em 10 de setembro de 1991. Foi cineasta e poeta. Em poesia publicou Poemas quotidianos (1957) e Novos poemas quotidianos (1959).

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Três poemas de Álvaro Moreyra



DESTINO

Todo mundo ama porque
todo mundo sempre amou.
É só por imitação.
Todo mundo ama porque
ninguém ainda inventou,
desde a anedota de Adão,
coisa melhor para a gente
trocar por uma alegria
que vem e vai de repente
a pobre melancolia
que nunca mais deixa a gente...


MISTÉRIO

Chamam certas mulheres de infelizes.
E dizem que elas são da vida alegre...


A MANGUEIRA E O SABIÁ

O sabiá pousou em cima da mangueira e cantou,
cantou uma semana inteira.
Depois foi-se embora, nunca mais voltou.
A mangueira ficou triste mas toda cheia de
mangas.
Mangas doces, tão bonitas, a mangueira nunca
deu.
Deu agora de saudade, porque a mangueira
sofreu.
Quanta mulher sabiá!
E quanto homem mangueira!...



• 
Álvaro Moreyra nasceu no dia 23 de novembro de 1888, em Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Foi para o Rio de Janeiro em 1910, onde concluiu o curso de Direito. Depois de uma estadia na Europa encetou a carreira jornalística no Rio, tendo sido redator de publicações como Fon-FonBahia IlustradaA HoraBoa NovaIlustração BrasileiraDom CasmurroDiretrizes e Para Todos. Da sua obra, destacam-se os títulos: Degenerada, Elegia da bruma, O outro lado da vida e Cocaína. Álvaro Moreyra morreu no Rio de Janeiro no dia 12 de setembro de 1964.