segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Aviso aos navegantes sobre algumas readaptações do Caderno-revista 7faces




Desde a primeira edição, foi escolhido disponibilizar o periódico na plataforma DocsToc, mas devido a burocracia com o download (para ter acesso ao PDF, o interessado tem por obrigação de construir uma conta), achamos por bem utilizar outra plataforma, mais prática: a 4Shared. Estaremos dispostos a continuar com as modificações que forem necessárias a fim de garantir o acesso prático e livre às edições; qualquer outra informação publicaremos neste blog.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Quatro poemas de Chacal




SETE PROVAS E NENHUM CRIME

Havia a mancha de sangue no jaleco
E nenhum corpo
Havia o olhar rútilo, o rosto crispado
E nenhum motivo
Havia o cheiro impregnado no corpo
E nenhuma digital
Havia o vírus, o bilhete, a arma branca
E nenhum assassinato
Havia em vão a confissão
E nenhum ilícito
Havia a cadeira de rodas vazia
E nenhum suspeito
Havia um gato emborcado no aquário
E peixe nenhum


TEMPO

no início era o começo.
o depois veio vindo devagar.
o antes veio depois do depois.
só quando esse se estabeleceu.
no princípio era o agora.
isso demorou até que
tudo virou antes e depois.
então numa revolução peluda
o agora voltou ao trono.
antes e depois viraram
falta do que fazer.
e tanto fizeram
que o agora virou tudo
e o tudo, nada.
de volta ao princípio
o agora agora congelou.
o antes fica pra depois.


ESSE ANIMAL

o poeta é de carne e osso
tem olhos, boca, nariz, pescoço
tem pressa, humor, desejo e calma
o poeta é de corpo e alma

o poeta é de osso e carne
sendo a vida vivida o osso
a carne o que lhe dá a palavra
o poeta é alguém que se lavra

tem poeta mais carne que osso
tem o tecido adiposo de quem
entre livros letras ditados
vê a vida passar ao largo

tem poeta carne de pescoço
traz o esqueleto no rosto
não sabe dar carne ao poema
preso no fundo do poço

o poeta é um animal que fuma


CARA DE CAVEIRA

minha cara é de caveira
meus olhos são de vidro
e vocês não me dizem nada

no meu corpo tem um sangue
amargo e verde
meu coração é à prova de choque
e vocês não sabem de nada

tenho pés de andar em qualquer chão
as mãos livres sem argolas
e vocês tremem por nada

minha memória guarda coisas bem curtidas
eu sou minha memória bem curtido
e vocês não são de nada

Chacal (Ricardo de Carvalho Duarte) nasceu a 24 de maio de 1951, no Rio de Janeiro. Foi um dos primeiros poetas da década de 1970 que fez do mimeógrafo instrumento para circulação de poesia; estreou com o livro Muito prazer, Ricardo. Depois deste título vieram, entre outros, Preço da passagem, América, Quampérius, Olhos vermelhosNariz anis, Boca roxa, Drops de abril, Comício de tudo, e Belvedere, antologia publicada pela Cosac Naify e 7 Letras no âmbito da coleção Ás de Colete, reunindo obra de 1971 e 2007. 

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Dois poemas de Bernardo Guimarães

 


À SEPULTURA DE UM ESCRAVO
 
Também do escravo a humilde sepultura
Um gemido merece de saudade:
Uma lágrima só corra sobre ela
De compaixão ao menos.
Filho da África, enfim livre dos ferros
Tu dormes sossegado o eterno sono
Debaixo dessa terra que regaste
De prantos e suores.
 
Certo, mais doce te seria agora
Jazer no meio lá dos teus desertos
À sombra da palmeira — não faltara
Piedoso orvalho de saudosos olhos
Que te regasse a campa;
Lá muita vez, em noites d’alva lua,
Canção chorosa, que ao tanger monótono
De rude lira teus irmãos entoam,
Teus manes acordara:
Mas aqui — tu aí jazes como a folha
Que caiu na poeira do caminho,
Calcada sob os pés indiferentes
Do viajor que passa.
 
Porém que importa — se repouso achaste,
Que em vão buscavas neste vale escuro,
Fértil de pranto e dores;
Que importa — se não há sobre esta terra
Para o infeliz asilo sossegado?
E desses ídolos que a fortuna incensa,
E que, ébrios de orgulho,
Passam, sem ver que com as velozes rodas
Seu carro de ouro esmaga um mendicante
No lodo do caminho!
Mas o céu é daquele na vida
Sob o peso da cruz passa gemendo;
É de quem sobre as chagas do inditoso
Derrama o doce bálsamo das lágrimas;
É o órfão infeliz, do ancião pesado,
Que da indigência no bordão se arrima;
É do pobre cativo, que em trabalhos
No rude afã exala o alento extremo;
— O céu é da inocência e da virtude,
O céu é do infortúnio.
 
Repousa agora em paz, fiel escravo,
Que na campa quebraste os ferros teus,
No seio dessa terra que regaste
De prantos e suores,
E vós, que vindes visitar da morte
O lúgubre aposento,
Deixai cair ao menos uma lágrima
De compaixão sobre essa humilde cova;
Aí repousa a cinza do Africano,
— O símbolo do infortúnio.
 
 
À SAIA BALÃO
 
Balão, balão, balão! cúpula errante,
Atrevido cometa de ampla roda,
Que invades triunfante
Os horizontes frívolos da moda;
Tenho afinado já para cantar-te
Meu rude rabecão;
Vou teu nome espalhar por toda parte,
Balão, balão, balão!
 
E para que não vá tua memória
Do esquecimento ao pélago sinistro,
Teu nome hoje registro
Da poesia nos galantes fastos,
E para receber teu nome e glória,
Do porvir te franqueio os campos vastos.
 
Em torno ao cinto de gentil beldade
Desdobrando o teu âmbito estupendo,
As ruas da cidade
Co’a longa cauda ao longe vais varrendo;
E nessas vastas roçagantes pregas
De teu túmido bojo,
Nesse ardor de conquistas em que ofegas,
O que encontras, levando vais de rojo,
Qual máquina de guerra,
Que inda os mais fortes corações aterra.
 
Quantas vezes rendido e fulminado
Um pobre coração,
Não vai por essas ruas arrastado
Na cauda de um balão.
Mal despontas, a turba numerosa
À direita e à esquerda,
De tempo sem mais perda
Amplo caminho te abre respeitosa;
E com esses requebros sedutores
Com que saracoteias,
A chama dos amores
Em mais de um coração a furto ateias.
 
Sexo lindo e gentil, — foco de enigmas! —
Quanto és ambicioso,
Que o círculo espaçoso
De teus domínios inda em pouco estimas;
Queres mostrar a força onipotente
De teu mimoso braço;
De render corações já não contente,
Inda pretendes conquistar o espaço!...
 
Outrora já c’os atrevidos pentes
E as toucas alterosas,
As regiões buscavas eminentes,
Onde giram as nuvens tormentosas;
Como para vingar-te da natura,
Que assim te fez pequena de estatura.
 
Mudaste enfim de norte,
E aumentando o diâmetro pretendes
Avantajar-te agora de outra sorte
Na cauda do balão, que tanto estendes.
Queres em torno espaço,
Té onde possas desdobrar teu braço.
 
Assim com tuas artes engenhosas
Sem medo de estourar tu vais inchando,
E os reinos teus co’as vestes volumosas
Ao longe sem limites dilatando,
Conquistas na largura
O que não podes conseguir na altura.
 
Mas ah! por que o meneio gracioso
De teu airoso porte Sepultas por tal sorte
Nesse mundo de saias portentoso?
Por que razão cuidados mil não poupas
Para ver tua beleza tão prezada
Sumir-se-te afogada
Nesse pesado pélago de roupas?
 
Sim, de que serve ver as crespas ondas
De túrgido balão
A rugirem bojudas e redondas
Movendo-se em contínua oscilação;
— Vasto sepulcro, onde a beleza cega
Seus encantos sepulta sem piedade,
— Empavezada nau, em que navega
A todo pano a feminil vaidade? —
 
De que serve enfeitar da vasta roda
Os estufados flancos ilusórios
Com esses infinitos acessórios,
Que vai criando a inesgotável moda,
De babados, de gregas, fitas, rendas,
De franjas, de vidrilhos,
E outros mil badulaques e fazendas,
Que os olhos enchem de importunos brilhos.
Se no seio de tão tofuda mouta
Mal se pode saber que ente se acouta?!
 
De uma palmeira à graciosa imagem,
Que flácida se arqueia
Ao sopro d’aura, quando lhe meneia
A trêmula ramagem,
Comparam os poetas
As virgens de seus sonhos mais diletas.
Mas hoje onde achar pode a poesia
Imagem, que as bem pinte e as enobreça,
Depois que deu-lhes singular mania
De atufarem-se em roupa tão espessa;
Se eram antes esbeltas qual palmeiras,
Hoje podem chamar-se — gameleiras.
 
Também o cisne, que garboso fende
De manso lago as ondas azuladas,
E o níveo colo estende
Por sobre as águas dele enamoradas,
Dos poetas na vívida linguagem
De uma bela retrata a pura imagem.
 
Mas hoje a moça, que se traja à moda,
Só se pode chamar peru de roda.
 
Quais entre densas nuvens conglobadas
Em hórrido bulcão
Vão perder-se as estrelas afogadas
Em funda escuridão,
Tal da beleza a sedutora imagem
Some-se envolta em túmida roupagem.
 
Balão, balão, balão! — fatal presente,
Com que brindou das belas a inconstância
A caprichosa moda impertinente,
Sepulcro da elegância,
Tirano do bom gosto, horror das graças,
Render-te os cultos meus não posso, não;
Roam-te sem cessar ratos e traças,
Balão, balão, balão.
 
***
 
Ó tu, que eu amaria, se na vida
De amor feliz restasse-me esperança,
E cuja linda imagem tão querida
Eu trago de contínuo na lembrança,
Tu, que no rosto e no ademão singelo
Das filhas de Helen és vivo modelo;
 
Nunca escondas teu gesto peregrino,
E da estreita cintura o airoso talhe,
E as graças desse teu porte divino,
Nesse amplo detalhe
De roupas, que destroem-te a beleza
Dos dons de que adornou-te a natureza.
 
De que serve entre véus, toucas e fitas,
Ao peso dos vestidos varredores,
De marabouts, de rendas e de flores
Tuas formas trazer gemendo aflitas,
A ti, que no teu rosto tão viçosas
De tua primavera tens as rosas?...
 
Pudesse eu ver-te das belezas gregas,
Quais as figuram mármores divinos,
Na túnica gentil, não farta em pregas,
Envolver teus contornos peregrinos;
E ver dessa figura, que me encanta,
O altivo porte desdobrando a aragem
De Diana, de Hero, ou de Atalanta
A clássica roupagem!...
 
Em simples trança no alto da cabeça,
As fúlgidas madeixas apanhadas;
E a veste pouco espessa
Desenhando-te as formas delicadas,
Ao sopro das aragens ondulando,
Teus puros membros mórbida beijando.
 
E as nobres linhas do perfil correto
De importunos ornatos destoucadas,
Em toda a luz de seu formoso aspecto
Fulgindo iluminadas
Por sob a curva dessa fronte bela,
Em que tanto esmerou-se a natureza;
E o braço nu, e a túnica singela
Com broche de ouro aos alvos ombros presa
 
Mas não o quer o mundo, onde hoje impera
A moda soberana; —
Esquivar-se para sempre, oh! quem pudera
À sua lei tirana!...
 
Balão, balão, balão! — fatal presente,
Com que brindou das belas a inconstância
A caprichosa moda impertinente,
Sepulcro da elegância,
Tirano do bom gosto, horror das graças!...
Render-te os cultos meus não posso, não;
Roam-te sem cessar ratos e traças,
Balão, balão, balão.
 
Rio de Janeiro, 18 de julho de 1859
 
Bernardo Guimarães nasceu a 15 de agosto de 1825 em Ouro Preto. Ficou reconhecido na literatura brasileira por obras como A escrava Isaura e O seminarista. Também se dedicou à poesia de ordem variada, entre elas, a poesia burlesco-satírica e nonsense, o que o faz, segundo Haroldo de Campos, um precursor do surrealismo no Brasil. Parte da sua obra poética é formada por Cantos da solidão (1852), Inspirações da tarde (1858), Poesias diversas (1865), Poesias (do mesmo ano, reunindo os três primeiros livros e o poema “A Baía de Botafogo”); outra antologia que compila sua obra do gênero é Novas poesias (1876). Morreu a 10 de março de 1884.