quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Dois poemas de Manuel Bandeira



OS SAPOS

Enfunando os papos,
Saem da penumbra,
Aos pulos, os sapos.
A luz os deslumbra.

Em ronco que aterra,
Berra o sapo-boi:
- "Meu pai foi à guerra!"
- "Não foi!" - "Foi!" - "Não foi!".

O sapo-tanoeiro,
Parnasiano aguado,
Diz: - "Meu cancioneiro
É bem martelado.

Vede como primo
Em comer os hiatos!
Que arte! E nunca rimo
Os termos cognatos.

O meu verso é bom
Frumento sem joio.
Faço rimas com
Consoantes de apoio.

Vai por cinqUenta anos
Que lhes dei a norma:
Reduzi sem danos
A fôrmas a forma.

Clame a saparia
Em críticas céticas:
Não há mais poesia,
Mas há artes poéticas..."

Urra o sapo-boi:
- "Meu pai foi rei!"- "Foi!"
- "Não foi!" - "Foi!" - "Não foi!".

Brada em um assomo
O sapo-tanoeiro:
- A grande arte é como
Lavor de joalheiro.

Ou bem de estatuário.
Tudo quanto é belo,
Tudo quanto é vário,
Canta no martelo".

Outros, sapos-pipas
(Um mal em si cabe),
Falam pelas tripas,
- "Sei!" - "Não sabe!" - "Sabe!".

Longe dessa grita,
Lá onde mais densa
A noite infinita
Veste a sombra imensa;

Lá, fugido ao mundo,
Sem glória, sem fé,
No perau profundo
E solitário, é

Que soluças tu,
Transido de frio,
Sapo-cururu
Da beira do rio...


O ÚLTIMO POEMA

Assim eu quereria meu último poema
Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.



Manuel Bandeira nasceu no Recife no dia 19 de abril de 1886. Ingressou em 1903 na Escola Politécnica, pretendendo tornar-se arquiteto; à noite estuda desenho e pintura com o arquiteto Domenico Rossi no Liceu de Artes e Ofícios. No final do ano de 1904, o fica sabendo que está tuberculoso, abandona suas atividades e volta para o Rio de Janeiro e em busca de melhores climas para sua saúde, passa temporadas em diversas cidades – Campanha, Teresópolis, Maranguape, Uruquê, Quixeramobim. Em 1917 publica seu primeiro livro, A cinza das horas, numa edição de 200 exemplares custeada pelo autor. Depois disso, sua obra se expande em vias diversas: além da poesia, cultiva a crônica e o ensaio. Dos títulos vale citar Carnaval, Libertinagem, Estrela da manhã (poesia), Crônicas da província do Brasil, Andorinha, Andorinha (crônica), Apresentação da poesia brasileira, História das literaturas, Itinerário de Pasárgada (ensaio). Bandeira morreu em 13 de outubro de 1968. 

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Três poemas de Diva Cunha

para João Cabral de Melo Neto


Aflita
com as mãos molhadas
entro no poema

não tenho, amigo
a ciência
com que secas o afeto

sou antes
um lenço
torcido de tanta dor

*

Que gesto é esse que me abraça
puro fogo alastrado
sobre a carne passageira?

que corpo é esse onde habito?
de quem a voz que me devora
quando não digo o inominável nome?

como conter num mínimo ponto no espaço
esse deus que cresce incontido?

*

O corpo contém
o pequeno mundo de cada dia

casa de um Deus
que se teme amesquinhar
a cada gesto

para alcançá-lo
cultivo em silêncio
borboletas e formigas

Diva Cunha nasceu a 10 de dezembro de 1947 em Natal. Estudou no Colégio Imaculada Conceição e se graduou em Letras na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Na PUC-Rio, cursou pós-graduação. Foi professora de Literatura Portuguesa na UFRN e de Literatura do Rio Grande do Norte na Universidade Potiguar. Entre os livros publicados estão Canto de página (1986), A palavra estampada (1993), Coração de lata (1996) e Resina (2009). Escreveu ainda ensaio e crítica literária.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Três poemas de Fernando Pessoa




Nas margens do rio verde
Que por verdes margens corre
Meu pensamento se perde.
Como se a alma o deserde,
Meu saber que penso morre.

Tão lento, tão afastado
Do propósito de um curso
Vai o rio, que o meu fado
Parece bem figurado
Nesse insciente percurso.

Nada lastimo nem peço.
Nada desejo nem creio.
No rio verde me esqueço
Até de que sou possesso
Da ausência do meu enleio.

Nada, nem remos nem velas,
Turvam a água do rio.
E, quando anoitece, aquelas
Ondas vão sob as estrelas
No seu mesmo nada a fio.

Nada? Não. No meu olhar
E no que penso por ver
É que há um rio a mudar,
É que há esperança de um mar,
Mas não desejo de o ter.


*
Cada palavra dita é a voz de um morto.
Aniquilou-se quem se não velou
Quem na voz, não em si, viveu absorto.
Se ser Homem é pouco, e grande só
Em dar voz ao valor das nossas penas
E ao que de sonho e nosso fica em nós
Do universo que por nós roçou
Se é maior ser um Deus, que diz apenas
Com a vida o que o Homem com a voz:
Maior ainda é ser como o Destino
Que tem o silêncio por seu hino
E cuja face nunca se mostrou.

*
Quando eu era criança,
Vivi, sem saber,
Só para hoje ter
Aquela lembrança.

É hoje que sinto
Aquilo que fui.
Minha vida flui,
Feita do que minto,

Mas nesta prisão,
Livro único, leio
O sorriso alheio
De quem fui então.



Fernando Pessoa nasceu em 13 de junho de 1888, em Lisboa. Considerado um dos mais importantes poetas das literaturas de língua portuguesa, a sua poesia acabou por ser decisiva na evolução de toda a produção poética do século XX. Se nele é ainda notória a herança simbolista, Pessoa foi mais longe, não só quanto à criação (e invenção) de novas tentativas artísticas e literárias, mas também no que respeita ao esforço de teorização e de crítica literária. É um poeta universal, na medida em que nos foi dando, mesmo com contradições, uma visão simultaneamente múltipla e unitária da Vida. É precisamente nesta tentativa de olhar o mundo duma forma múltipla (com um forte substrato de filosofia racionalista e mesmo de influência oriental) que reside uma explicação plausível para ter criado os célebres heterônimos - Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis, sem contarmos ainda com o semi-heterônimo Bernardo Soares. Morreu em 30 de novembro de 1935.

sábado, 25 de setembro de 2010

Quatro poemas de "Pauliceia desvairada", de Mário de Andrade




O REBANHO

Oh! minhas alucinações!
Vi os deputados, chapéus altos,
sob o pálio vesperal, feito de mangas-rosas,
saírem de mãos dadas do Congresso...
Como um possesso num acesso em meus aplausos
aos salvadores do meu estado amado!...

Desciam, inteligentes, de mãos dadas,
entre o trepidar dos táxis vascolejantes,
a rua Marechal Deodoro...
Oh! minhas alucinações!
Como um possesso num acesso em meus aplausos
aos heróis do meu estado amado!

E as esperanças de ver tudo salvo!
Duas mil reformas, três projetos...
Emigram os futuros noturnos...
E verde, verde, verde!...
Oh! minhas alucinações!
Mas os deputados, chapéus altos,
mudavam-se pouco a pouco em cabras!
Crescem-lhes os cornos, descem-lhes as barbinhas...

E vi que os chapéus altos do meu estado amado,
com os triângulos de madeira no pescoço,
nos verdes esperanças, sob as franjas de oiro da tarde,
se punham a pastar
rente do palácio do senhor presidente...
Oh! minhas alucinações!


TIETÊ

Era uma vez um rio...
Porém os Borbas-Gatos dos ultra-nacionais esperiamente!

Havia nas manhãs cheias de Sol do entusiasmo
as monções da ambição...
E as giganteas vitórias!
As embarcações singravam rumo do abismal Descaminho...
Arroubos... Lutas... Setas... Cantigas... Povoar!
Ritmos de Brecheret!... E a santificação da morte!
Foram-se os ouros!... E o hoje das turmalinas!...

– Nadador! vamos partir pela via dum Mato-Grosso?
– Io! Mai!... (Mais dez braçadas.
Quina Migone. Hat Stores. Meia de seda.)
Vado a pranzare con la Ruth.


PAISAGEM N. 1

Minha Londres de neblinas finas!
Pleno verão. Os dez mil milhões de rosas paulistanas.
Há neve de perfumes no ar.
Faz frio, muito frio...
E a ironia das pernas das costureirinhas
parecidas com bailarinas...
O vento é como uma navalha
nas mãos dum espanhol. Arlequinal!...
Há duas horas queimou Sol.
Daqui a duas horas queima Sol.

Passa um São Bobo, cantando, sob os plátanos,
um tralálá... A guarda-cívica! Prisão!
Necessidade a prisão
para que haja civilização?
Meu coração sente-se muito triste...
Enquanto o cinzento das ruas arrepiadas
dialoga um lamento com o vento...

Meu coração sente-se muito alegre!
Este friozinho arrebitado
dá uma vontade de sorrir!
E sigo. E vou sentindo,
a inquieta alacridade da invernia,
como um gosto de lágrimas na boca...


ODE AO BURGUÊS 

Eu insulto o burguês! O burguês-níquel,
o burguês-burguês!
A digestão bem-feita de São Paulo!
O homem-curva! o homem-nádegas!
O homem que sendo francês, brasileiro, italiano,
é sempre um cauteloso pouco-a-pouco!

 
Eu insulto as aristocracias cautelosas!
Os barões lampiões! os condes Joões! os duques zurros!
que vivem dentro de muros sem pulos;
e gemem sangues de alguns mil-réis fracos
para dizerem que as filhas da senhora falam o francês
e tocam os "Printemps" com as unhas!

 
Eu insulto o burguês-funesto!
O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições!
Fora os que algarismam os amanhãs!
Olha a vida dos nossos setembros!
Fará Sol? Choverá? Arlequinal!
Mas à chuva dos rosais
o êxtase fará sempre Sol!

 
Morte à gordura!
Morte às adiposidades cerebrais!
Morte ao burguês-mensal!
ao burguês-cinema! ao burguês-tílburi!
Padaria Suissa! Morte viva ao Adriano!
"– Ai, filha, que te darei pelos teus anos?
– Um colar... – Conto e quinhentos!!!
Mas nós morremos de fome!"

 
Come! Come-te a ti mesmo, oh gelatina pasma!
Oh! purée de batatas morais!
Oh! cabelos nas ventas! oh! carecas!
Ódio aos temperamentos regulares!
Ódio aos relógios musculares! Morte à infâmia!
Ódio à soma! Ódio aos secos e molhados!
Ódio aos sem desfalecimentos nem arrependimentos,
sempiternamente as mesmices convencionais!
De mãos nas costas! Marco eu o compasso! Eia!
Dois a dois! Primeira posição! Marcha!
Todos para a Central do meu rancor inebriante!

Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio!
Morte ao burguês de giolhos,
cheirando religião e que não crê em Deus!
Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico!
Ódio fundamento, sem perdão!

 
Fora! Fu! Fora o bom burguês!... 

 
Mário de Andrade nasceu em São Paulo a 9 de outubro de 1893. Foi figura central da cultura literária de nos anos vinte paulista, aparecendo em quase todas as frentes relacionadas com o modernismo, como a Semana de Arte Moderna realizada em 1922. Multicriativo, sua presença está na poesia, na prosa, na crítica literária, na música e na ambição de compreender as manifestações folclóricas do Brasil. Autor de vasta obra, da qual é possível destacar Pauliceia desvairada (poesia, 1922) e Macunaíma (romance, 1928) como os dois trabalhos mais lembrados. Morreu em São Paulo a 25 de fevereiro de 1945. 



sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Três poemas eróticos de E. M. de Melo e Castro



CANTIGA DE COR-TESÃO

Quanto mais amo
minha amo
mais mama
mamo

– é assim é que é

Quanto mais como
tua cama
mais cono
como

– é assim é que é

Quanto mais cavo
no teu cu
mais cravo
sou

– é assim é que é

Quanto mais é assim
mais me venho
a mim

– é assim é que é

e o pé?


COLHE OS COLHÕES A BOCA

colhe os colhões a boca
o barco a flor o mastro
a língua louca louca
o astro glande monstro

que a água que mostro
laiva o sabor do ouro
álcool que vem do mosto
leite que sabe a louro

pêlo de pele colhida
jeito informe que pica
alga onda comprida
que treme e foge e fica

colhe no ar e foge
a árvore da vida


FALA

falar do falo
é uma fácil falácia

do príapo é mais própria
a prosápia

quanto ao caralho
não é pau de carvalho

mas engrossa a piça
o chouriço enchoiriça
e a piça incha e estica

mas o tesão
não se compra nem se vende

a cona destes versos
é que o fode!


quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Dois poemas de Lábios-espelhos, de Marize Castro




OLOR 

O tempo de despedida chegou.
Mas Deus me quer forte.
Estranha flor.

Mil casas dentro desta casa.
Cada uma com seu anátema.
Oráculo.
Olor.


ESTRANGEIRA

Abriga-me em suas coxas
pois perdi a rota.
Por erro, talvez.
Raro destino, quem sabe.

Fui além de mim.

Afastei-me de casa.
Confundi-me com outras.
Surpreendi-me.

Os fios que teci na sua escuridão
tornaram-me seta e luz.

Mais estrangeira do que sempre fui. 

 

Marize Castro nasceu em Natal em 1962. Entre os diversos livros publicados estão Marrons Crepons Marfins (1984), Rito (1993), poço. festim. mosaico (1996), Esperado ouro (2005) e Lábios-espelhos (2009). 


segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Três poemas de Hart Crane


A PLANTA DO AR
Grand Cayman
Esse tufo que nasce de um salobro nada,
Polvo invertido, braços para o céu,
Rebento ressequido de palmeira de angra,
Quase ave – de ave quase um escarcéu,
É pulmonar ao vento que lhe move
Os tentáculos num meneio traiçoeiro.
A goela do lagarto, absorto com a mosca,
Infla-se, cauta, nesse trêmulo poleiro.
Serras e acúleos do cactus sangram
Leite da terra quando os vão cortar,
Mas este, sem espinhos, não espalha sangue,
Quase nem sombra, só a fala do ar.
Dínamo angelical! Ventríloquo do azul!
Enquanto o mar, covil de tubarões, se esgueira
Na praia, que conjuração dos ventos urde
O furacão – a apoteose derradeira!

Ó ILHA DO CARIBE!
A tarântula trôpega diante de um lírio,
Por entre os pés dos mortos, postos na areia branca
À beira dos corais – caranguejos cabriolas
Em zigzag na estrada (que saqueiam, subvertem
E anagramatizam teu nome) – Não, nada aqui,
Sob o torpor que um eucalipto alteia
Em sombras rotas – chora.
                                                             Mas, e se eu contar
Os dons de nácar dessas tropicais necroses,
Colares brutos, conchas, ao redor das tumbas
Crenadas com cuidado. Então
À areia branca hei de dizer um nome, fértil
Ainda que em língua estranha. Nomes de árvores, de flores
Negam a frágil cripta funerária. Devagar
O vento que se algema numa grande morte
Se dobra e se retrai. Sílabas pedem ar.
Mas onde o Capitão dos dobrões desta ilha
Sem cercas? Quem, salvo esses escribas caranguejos,
Patrulha as virilhas secas dos abrolhos?
Que homem, ou o Que
É o Fiscal do bolor para a tocaia dos sentidos?
A álgebra do Caribe enreda as lentes tórridas dos olhos!
Sob a poinciana, ao sol ou ao sol-posto,
Que os grãos de fogo em coágulos de luz
Filtrem o meu fantasma, branco e preto no ar,
Até encontrar o cômico anfitrião do azul.
Que o peregrino não se veja mais
Toda manhã no cais pregado como as grandes tartarugas
Para a lenta evisceração, os olhos duros de salmoura;
– Presas, de costa: que trovão em sua luta!
Bicos em cãibra à espera da maré vindoura!
Lixo do furacão, arrastado em seu fluxo,
Congelo-me entre ocasos, em cetim e ócio.
Dá-me a concha, Satã, – carbônico amuleto,
Selo de sal que o sol explode no oceano.

JARDIM ABSTRATO
A maçã no seu galho é tudo o que ela quer, ―
Suspensão cintilante, mímica do sol.
O ramo arrebatou-lhe o sopro, e sua voz,
Mudamente cingida aos declives e alturas
De ramo a ramo acima, turva-lhe a visão,
Prisioneira da árvore e seus dedos verdes.
E ela se sonha enfim a própria árvore.
O vento, que a possui, tece-lhe as veias jovens,
Retendo-a para o céu e seu rápido azul,
E afoga a febre de suas mãos no sol.
Ela não tem memória, medo ou esperança
Além da grama e sombras a seus pés.
* Traduções de Augusto de Campos


sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Dois poemas de Adélia Prado




CASAMENTO


Há mulheres que dizem
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como "este foi difícil"
"prateou no ar dando rabanadas"
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.



PRA COMER DEPOIS 

Na minha cidade, nos domingos de tarde,
As pessoas se põem na sombra com faca e laranjas.
Tomam a fresca e riem do rapaz de bicicleta,
A campainha desatada, o aro enfeitado de laranjas:
‘Eh bobagem!’
Daqui a muito progresso tecno-ilógico,
Quando for impossível detectar o domingo
Pelo sumo das laranjas no ar e bicicletas,
Em meu país de memória e sentimento,
Basta fechar os olhos:
É domingo, é domingo, é domingo.


Adélia Prado nasceu a 13 de dezembro de 1935 em Divinópolis, Minas Gerais. Da sua obra, que inclui prosa e poesia, destaca-se esse último gênero, do qual publicou títulos como Bagagem (1975), Terra de Santa Cruz (1981), A faca no peito (1968), Oráculos de maio (1999), A duração do dia (2010).  

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Dois poemas de Fagundes Varela



NÉVOAS

Nas horas tardias que a noite desmaia
Que rolam na praia mil vagas azuis,
E a lua cercada de pálida chama
Nos mares derrama seu pranto de luz,

Eu vi entre os flocos de névoas imensas,
Que em grutas extensas se elevam no ar,
Um corpo de fada — sereno, dormindo,
Tranquila sorrindo num brando sonhar.

Na forma de neve — puríssima e nua —
Um raio da lua de manso batia,
E assim reclinada no túrbido leito
Seu pálido peito de amores tremia.

Oh! filha das névoas! das veigas viçosas,
Das verdes, cheirosas roseiras do céu,
Acaso rolaste tão bela dormindo,
E dormes, sorrindo, das nuvens no véu?

O orvalho das noites congela-te a fronte,
As orlas do monte se escondem nas brumas,
E queda repousas num mar de neblina,
Qual pérola fina no leito de espumas!

Nas nuas espáduas, dos astros dormentes
— Tão frio — não sentes o pranto filtrar?
E as asas, de prata do gênio das noites
Em tíbios açoites a trança agitar?

Ai! vem, que nas nuvens te mata o desejo
De um férvido beijo gozares em vão!...
Os astros sem alma se cansam de olhar-te,
Nem podem amar-te, nem dizem paixão!

E as auras passavam — e as névoas tremiam
— E os gênios corriam — no espaço a cantar,
Mas ela dormia tão pura e divina
Qual pálida ondina nas águas do mar!

Imagem formosa das nuvens da Ilíria,
— Brilhante Valquíria — das brumas do Norte,
Não ouves ao menos do bardo os clamores,
Envolto em vapores — mais fria que a morte!

Oh! vem; vem, minh'alma! teu rosto gelado,
Teu seio molhado de orvalho brilhante,
Eu quero aquecê-los no peito incendido,
— Contar-te ao ouvido paixão delirante!...

Assim eu clamava tristonho e pendido,
Ouvindo o gemido da onda na praia,
Na hora em que fogem as névoas sombrias
– Nas horas tardias que a noite desmaia.

E as brisas da aurora ligeiras corriam.
No leito batiam da fada divina...
Sumiram-se as brumas do vento à bafagem,
E a pálida imagem desfez-se em — neblina!


JUVENÍLIA VII

Ah! quando face a face te contemplo,
E me queimo na luz de teu olhar,
E no mar de tua alma afogo a minha,
E escuto-te falar;

Quando bebo no teu hálito mais puro
Que o bafejo inefável das esferas,
E miro os róseos lábios que aviventam
Imortais primaveras,

Tenho medo de ti!... Sim, tenho medo
Porque pressinto as garras da loucura,
E me arrefeço aos gelos do ateísmo,
Soberba criatura!

Oh! eu te adoro como a noite
Por alto mar, sem luz, sem claridade,
Entre as refegas do tufão bravio
Vingando a imensidade!

Como adoro as florestas primitivas,
Que aos céus levantam perenais folhagens,
Onde se embalam nos coqueiros presas

Como adoro os desertos e as tormentas,
O mistério do abismo e a paz dos ermos,
E a poeira de mundos que prateia
A abóbada sem termos! ...

Como tudo o que é vasto, eterno e belo;
Tudo o que traz de Deus o nome escrito!
Como a vida sem fim que além me espera
No seio do infinito.

Fagundes Varela nasceu a 17 de agosto de 1841 em São João Marcos. De acordo com a historiografia da literatura brasileira, o poeta integra a segunda geração do Romantismo. Frequentou por quatro anos o curso de Direito nas faculdades de São Paulo e do Recife; o abandono do curso integra-o noutros projetos: casa-se pela primeira vez aos vinte e um anos e depois da morte do prematura do primeiro filho, vai viver em Paris; retorna ao Brasil sete anos depois e se casa pela segunda vez. Sua obra de estreia é publicada em 1860, Noturnas; depois vieram Vozes da América (1864), Cantos e fantasias (1865), Cantos meridionais (1869), Canto do ermo e da cidade (1869) e os póstumos Anchieta ou O Evangelho das selvas (1875), Cantos religiosos (1878, antologia organizada pelo amigo Otaviano Hudson) e Diário de Lázaro (1880). Morreu a 18 de fevereiro de 1875, em Niterói.


quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Cinco poemas de Ferreira Gullar



Uma pedra é uma pedra

uma pedra
(diz
o filósofo, existe
em si,
não para si
como nós)
uma pedra
é uma pedra
matéria densa
sem qualquer luz
não pensa
ela é somente sua
materialidade
de cousa:
não ousa
enquanto o homem é uma
aflição
que repousa
num corpo
que ele
de certo modo
nega
pois que esse corpo morre
e se apaga
e assim
o homem tenta
livrar-se do fim
que o atormenta
e se inventa


Toada à toa

A vida, apenas se sonha
que é plena, bela ou o que for.
Por mais que nela se ponha
é o mesmo que nada por.
Pois é certo que o vivido
– na alegria ou desespero –
como o gás é consumido...
Recomeçamos de zero.


Off price

Que a sorte me livre do mercado
e que me deixe
continuar fazendo (sem o saber)
fora de esquema
meu poema
inesperado
e que eu possa
cada vez mais desaprender
de pensar o pensado
e assim poder
reinventar o certo pelo errado


Nem aí...

Indiferente
ao suposto prestígio literário
e ao trabalho
do poeta
à difícil faina
a que se entrega para
inventar o dizível,
sobe à mesa
o gatinho
se espreguiça
e deita-se e
adormece
em cima do poema


Perplexidades

a parte mais efêmera
de mim
é esta consciência de que existo 

e todo o existir consiste nisto
é estranho!

e mais estranho
ainda
me é sabê-lo

e saber
que esta consciência dura menos
que um fio de meu cabelo 

e mais estranho ainda
que sabê-lo
é que
enquanto dura me é dado
o infinito universo constelado
de quatrilhões e quatrilhões de estrelas
sendo que umas poucas delas
posso vê-las
fulgindo no presente do passado


Ferreira Gullar nasceu a 10 de setembro de 1930, em São Luís, Maranhão. Sua carreira se compôs com produções na crítica, no ensaio, na ficção, na dramaturgia e na poesia. Publicou o primeiro livro ainda aos dezenove anos, Um pouco acima do chão, que seria renegado mais tarde quando organizou sua poesia completa. O poeta considera a A luta corporal (1954) sua verdadeira estreia. Depois vieram títulos como O formigueiro (1955), Poema sujo (1976) e Muitas vozes (2000). Em 2010 recebeu o mais importante prêmio concedido a autores de língua portuguesa, o Camões. Morreu a 4 de dezembro de 2016.


Os  poemas foram coletados do Portal Literal.


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terça-feira, 14 de setembro de 2010

Dois poemas de Mário de Sá-Carneiro


ALÉM-TÉDIO

Nada me expira já, nada me vive -
Nem a tristeza nem as horas belas.
De as não ter e de nunca vir a tê-las,
Fartam-me até as coisas que não tive.

Como eu quisera, enfim de alma esquecida,
Dormir em paz num leito de hospital...
Cansei dentro de mim, cansei a vida
De tanto a divagar em luz irreal.

Outrora imaginei escalar os céus
À força de ambição e nostalgia,
E doente-de-Novo, fui-me Deus
No grande rastro fulvo que me ardia.

Parti. Mas logo regressei à dor,
Pois tudo me ruiu... Tudo era igual:
A quimera, cingida, era real,
A própria maravilha tinha cor!

Ecoando-me em silêncio, a noite escura
Baixou-me assim na queda sem remédio;
Eu próprio me traguei na profundura,
Me sequei todo, endureci de tédio.

E só me resta hoje uma alegria:
É que, de tão iguais e tão vazios,
Os instantes me esvoam dia a dia
Cada vez mais velozes, mais esguios...


QUASE

Um pouco mais de sol - eu era brasa,
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num grande mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dor! - quase vivido...

Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim - quase a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo ... e tudo errou...
- Ai a dor de ser - quase, dor sem fim...
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou...

Momentos de alma que,desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...

Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...

Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...

Um pouco mais de sol - e fora brasa,
Um pouco mais de azul - e fora além.
Para atingir faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...



Mário de Sá-Carneiro nasceu a 19 de maio de 1890 em Lisboa. Um dos financiadores de Orpheu, a revista literária em torno da qual se formou o grupo modernista português, sua obra é vária e esparsa em dois gêneros: prosa e poesia. Do primeiro, destacam-se Princípio (1912), A confissão de Lúcio (1914) e Céu em foto (1915). Sua poesia aparece reunida pela primeira vez em Dispersão (1914); em 1985, é organizada postumamente uma edição que compila toda sua poesia. Suicidou-se em Paris no dia 26 de abril de 1916.

* Os poemas aqui publicados seguem os da antologia Poemas organizada por Teresa Sobral Cunha (São Paulo: Companhia das Letras, 2004).

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segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Quatro poemas de Paulo Leminski



O olho da rua vê
o que não vê o seu.
Você, vendo os outros,
pensa que sou eu?
Ou tudo que teu olho vê
você pensa que é você?


contranarciso

em mim
eu vejo o outro
e outro
e outro
enfim dezenas
trens passando
vagões cheios de gente

o outro
que há em mim
é você
você
e você

assim como
eu estou em você
eu estou nele
em nós
e só quando
estamos em nós
estamos em paz
mesmo que estejamos a sós


*
um poema
que não se entende
é digno de nota

a dignidade suprema
de um navio
perdendo a rota


*
cansei da frase polida
por anjos da cara pálida
palmeiras batendo palmas
ao passarem paradas
agora eu quero a pedrada
chuva de pedras palavras
distribuindo pauladas


Paulo Leminski nasceu em Curitiba no dia 24 de agosto de 1944. Escreveu prosa e poesia, foi tradutor e compositor. É autor de títulos como Catatau e Distraídos venceremos. Morreu no dia 7 de junho de 1989.

domingo, 12 de setembro de 2010

Poemas de José Saramago


Vertigem

Não vai o pensamento aonde o corpo
Não vai. Emparedado entre penedos,
Até o próprio grito se contrai.
E se o eco arremeda uma resposta,
São coisas da montanha, são segredos
Guardados entre as patas duma aranha
Que tece a sua teia de miséria
Sobre a pedra suspensa da encosta.

* SARAMAGO, José. Os poemas possíveis. 3a. ed. Lisboa: Caminho, 1981.



Na ilha por vezes habitada 

Na ilha por vezes habitada do que somos, há noites,
manhãs e madrugadas em que não precisamos
de morrer.
Então sabemos tudo do que foi e será.
O mundo aparece explicado definitivamente e entra
em nós uma grande serenidade, e dizem-se as
palavras que a significam.
Levantamos um punhado de terra e apertamo-la nas
mãos.
Com doçura.
Aí se contém toda a verdade suportável: o contorno, a vontade e os limites.
Podemos então dizer que somos livres, com a paz e o
sorriso de quem se reconhece e viajou à roda do
mundo infatigável, porque mordeu a alma até aos
ossos dela.
Libertemos devagar a terra onde acontecem milagres
como a água, a pedra e a raiz.
Cada um de nós é por enquanto a vida.
Isso nos baste.

* SARAMAGO, José. Provavelmente Alegria. 3a. ed. Lisboa: Caminho, 1987.


Os mais velhos

São de pedra, os mais velhos. Ermos, sós.
O gesto hirto. As mãos perdidas
Da remota brandura, como pranto
Vidrado e recolhido, água rasa:
Nada o mundo vos deu: (sois vós, e basta).
Inocente da morte que aceitais,
Recolho dessas mãos de cardos secos
A herança dos nardos imortais.

Poema publicado em 1971, 4ª ed., Revista Contravento

José Saramago nasceu em 16 de novembro de 1922, no interior de Portugal. Sua obra, mais conhecida pela prosa, também se constitui de uma variedade de outras formas, dentre elas, a poesia. Neste gênero publicou Os poemas possíveis, na importante coleção portuguesa Poetas de Hoje, Provavelmente alegria e O ano de 1993. O escritor recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1998. Morreu em Lanzarote, uma ilha das Canárias, onde viveu desde 1993, a 18 de junho de 2010.

sábado, 11 de setembro de 2010

Um poema de César Vallejo


OS PASSOS REMOTOS

O meu pai dorme. O seu nobre semblante
é como um coração apaziguado;
está tão doce agora...
se há nele algo de amargo, serei eu.

Há solidão na casa; e reza-se;
e dos filhos não houve hoje notícias.
Meu pai acorda, considera
a fuga para o Egito e um suspenso adeus.
Está agora tão perto;
se há nele algo distante, serei eu.

E minha mãe passeia além na horta,
saboreando um sabor já sem sabor.

Está agora tão suave,
tão longínqua, tão amorosa e nítida.

Há solidão no lar sem reboliço,
sem notícias, sem verdes criancices.
E se há algo quebrado nesta tarde
que diminui e crepita
são dois velhos caminhos brancos, curvos.

Por eles vai a pé meu coração.

César Vallejo nasceu em Santiago de Chuco, a 16 de março de 1892. Integrado às vanguardas do século XX, é considerado um dos mais importantes poetas hispano-americanos. O peruano começa sua vida literária com Los heraldos negros (1918) e na poesia publica ainda Trilce (1922) e Poemas humanos (1939). Também escreveu romance, conto, crônica, ensaio e teatro. Morreu em Paris no dia 15 de abril de 1938. 

* Tradução de Nicolau Saião