sábado, 23 de outubro de 2010

Dois poemas de Eugénio de Andrade


ADEUS

Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mão à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.


Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.

Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava. 
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis. 


Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
no tempo em que os meus olhos
eram peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.


Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já se não passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,

tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração. 


Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.


Adeus.


NÃO O PROCURES

Não o procures perto do mar,
não o procures
nas colinas.
Se o não descobres nos fenos,
se o não pressentes nas fontes,
procura-o nesta canção.
O seu canto vem de outro rio,
a fêmea de outro lugar.
Só quem ama assim as aves
traz o sol todo na mão.
O pão alvo está na mesa,
as azeitonas, o vinho,
ao lado a rosa, também ela
trazida de outra canção.
Não tardará que o melro branco
venha comer contigo
e com a luz fina de abril.

Assim há-de cantar um dia
a terra
o seu coração pueril.

Eugénio de Andrade foi nome adotado por José Fontinhas desde quando iniciou sua carreira artística. Nasceu no dia 19 de janeiro de 1923, no Fundão, distrito de Póvoa de Atalaia; viveu em Lisboa e Coimbra antes de fixar residência no Porto, onde viveu até sua morte em 13 de junho de 2005. Publicou o primeiro livro, Narciso, em 1940, porta que se abriu para mais de duas dezenas de títulos entre poesia e prosa, além das participações em antologias. Trabalhou como tradutor e para o português verteu obras de poetas como Federico García Lorca. Dentre os diversos prêmios que recebeu estão o Vida Literária da Associação Portuguesa de Escritores e o Camões.


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