segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Ode escrita em 1966



Ninguém é a pátria. Nem mesmo o ginete
que, alto na aurora de uma praça deserta,
leva um corcel de bronze tempo afora,
nem os outros que do mármore olham.
Nem os que sua bélica cinza espalharam
pelos campos da América
ou deixaram um verso ou uma façanha
no justo exercício dos dias.
Ninguém é a pátria. Nem mesmo os símbolos.

Ninguém é a pátria. Nem mesmo o tempo
carregado de batalhas, espadas e êxodos
e da lenta povoação de regiões
limítrofes da aurora e do ocaso,
e de rostos que vão envelhecendo
nos espelhos que se embaçam
e de sofridas agonias anônimas
que duram até a aurora
e da teia da chuva
sobre negros jardins.

A pátria, amigos, é um ato perpétuo
como o perpétuo mundo. (Se o Eterno
espectador deixasse de sonhar-nos
um só instante, nos fulminaria,
branco e brusco relâmpago, Seu olvido.)
Ninguém é a pátria, mas todos devemos
Ser dignos do antigo juramento
que prestaram aqueles cavalheiros
de ser o que ignoravam, argentinos,
de ser o que seriam pelo fato
De haver jurado nesta velha casa.

Somos o futuro desses varões,
a justificativa daqueles mortos;
nosso dever é a gloriosa carga
que a nossa sombra legam essas sombras
que devemos salvar.

Ninguém é a pátria, mas todos o somos.
Arda em meu peito e no vosso, incessante,
Esse límpido fogo misterioso.


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poema enviado pelo Jorge Elias por e-mail.

BORGES, Jorge. O outro, o mesmo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

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Um comentário:

  1. Hoje, o dia inteiro dediquei-me a ler da poesia e dos contos do querido Borges. Baita coincidência ser, hoje, o dia de seu nascimento haha!

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