terça-feira, 30 de novembro de 2010

Dois poemas de Geir Campos



A árvore

Ó árvore, quantos séculos levaste
a aprender a lição que hoje me dizes:
o equilíbrio, das flores às raízes,
sugerindo harmonia onde há contraste?

Como consegues evitar que uma haste
e outra se batam, pondo cicatrizes
inúteis sobre os membros infelizes?
Quando as folhas e os frutos comungaste?

Quantos séculos, árvore, de estudos
e experiências – que o vigor consomem
entre vigílias e cismares mudos –

demoraste aprendendo o teu exemplo,
no sossego da selva armada em templo,
E dize-me: há esperança para o Homem?


Tarefa


Morder o fruto amargo e não cuspir
mas avisar aos outros quanto é amargo,
cumprir o trato injusto e não falhar
mas avisar aos outros quanto é injusto,
sofrer o esquema falso e não ceder
mas avisar aos outros quanto é falso;
dizer também que são coisas mutáveis...
E quando em muitos a noção pulsar
— do amargo e injusto e falso por mudar —
então confiar à gente exausta o plano
de um mundo novo e muito mais humano

Geir Campos nasceu em São José do Calçado, Espírito Santo, em 1924. Poeta, dramaturgo, tradutor, editor, jornalista, ensaísta, contista e autor de literatura infantil e juvenil. Inicia a carreira de escritor nos anos 1940 divulgando na imprensa contos e poemas originais e traduzidos, ao mesmo tempo que trabalha como piloto da Marinha Mercante. Seu primeiro livro de versos, Rosa dos Rumos, é publicado em 1950. Organiza com o escritor Moacyr Félix, em 1962, a edição de Violão de Rua, da série Cadernos do Povo Brasileiro, coletânea de poemas engajados, editados pelo Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (CPC/UNE). Colabora em revistas literárias e jornais como Diário CariocaCorreio da ManhãÚltima HoraO EstadoDiário de NotíciasPara TodosLetras Fluminenses e Jornal de Letras. Traduziu Franz Kafka, Bertolt Brecht, Rainer Maria Rilke, Herman Hesse, Walt Whitman, William Shakespeare e Sófocles. (496 a 405 a.C.). Além de poesias, escreve ensaios, contos, peças teatrais, ficções infanto-juvenis e obras de referência. Morre em 1999, em Niterói, Rio de Janeiro.

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Três poemas do livro "Macau", de Paulo Henriques Britto




VÉSPERA 

No trivial do sanduíche a morte aguarda.
Na esquiva escuridão da geladeira
dorme a sono solto, imersa em mostarda.

A hora é lerda. A casa sonha. A noite inteira
algo cricrila sem parar - insetos?
O abacaxi impera na fruteira,

recende esplêndido, desperdiçando espetos.
A lua bate o ponto e vai-se embora.
Mesmo os ladrilhos ficam todos pretos.

A geladeira treme. Mas ainda não é hora.
Se houvesse um gato, ele seria pardo.
A morte ainda demora. O dia tarda.


ACALANTO

Noite após noite, exaustos, lado a lado,
digerindo o dia, além das palavras
e aquém do sono, nos simplificamos,

despidos de projetos e passados,
fartos de voz e verticalidade,
contentes de ser só corpos na cama;

e o mais das vezes, antes do mergulho
na morte corriqueira e provisória
de uma dormida, nos satisfazemos

em constatar, com uma ponta de orgulho,
a cotidiana e mínima vitória:
mais uma noite a dois, um dia a menos.

E cada mundo apaga seus contornos
ao aconchego de um outro corpo morno.


BAGATELA PARA A MÃO ESQUERDA

Escrever com a mão esquerda
é tarefa bem ingrata.
Não seria empreendida
se não fosse estritamente
necessária.

A mão esquerda é mais dura,
mais austera, e desconfia
desses gestos estouvados
que a mão direita, impensada, 
esbornia.

À mão esquerda é vedado
o recurso falso e fácil
de dispensar partitura,
a fraqueza (dita força)
do hábito.

Daí o jeito contido
das coisas que ela produz,
o ar desesperançado
de quem até nem precisa
vir à luz.

Paulo Henriques Britto nasceu no Rio de Janeiro a 12 de dezembro de 1951. Tradutor e autor de vários livros de poesia, entre eles Liturgia da matéria – sua obra de estreia –, Mínima líricaTardeMacau, obra com a qual recebeu o Prêmio Portugal Telecom Trovar claro.

Um poema de Rachel de Queiroz de "Mandacaru" mais dois inéditos



O ACRE

         Na ambição de encontrar mais borracha e mais ganho
                   de enricar mais depressa,
             a gente deixou atrás Manaus e o Rio Negro...

                   Foi-se trepando pela correnteza
                           na procura ansiosa do ouro elástico,
                   ver se cumpria o eterno fado dos êxodos:
         a fuga, a luta, o ganho e — coroando tudo 
                   a volta triunfante e endinheirada.

                   Lá acima, muito acima
         — já longe dos rios das icamiabas guerreiras —,
                   tinha uma terra salubre,
         onde a borracha corria livre nas veias da seringueira
                   sem saber de tigela e machadinha.

                   Os cearenses, aí, botaram a mochila no chão
                   e ficaram trabalhando.

         Depois, eles, que chegaram sozinhos, desamparados,
                   acharam umas índias bonitas
              que chamavam todo o mundo de usted...
         E elas trataram deles, quando veio o beribéri,
         e lhes deram muitos filhos entroncados e viçosos,
         que enchiam os barracões de algazarra e de alegria.

         E eles foram querendo bem àquela terra,
                   tão rica, tão sem dono,
         que dava tanto dinheiro e tanta felicidade...

                   Mas lá vem o ditado
         "Tudo no mundo se acaba,
                                     tudo no mundo tem fim".. .
                  E um belo dia
                            apareceu o dono...

         "—Vá-se embora, cearense, vá-se embora!
         Você veio desbravar este buraco de mundo
                   pra meu proveito e meu gozo!...
         A borracha, que lhe deve tanta noite mal dormida,
                   sou eu que quero vender!

                  Eu nunca abri estrada na seringa
          e agora vou andar nas que você abriu...
                   A barraca que você levantou quando brabo
         — ai! A tristeza do brabo que soluça de saudade, olhando o rio correr! —,
                   pois também sua barraca, filha da sua saudade,
                   eu quero tomar pra mim...

                   Eu nunca fazia nada,
         porque tinha medo dos bichos que rodeiam os barracões;
                   você aceirou em redor,
                   demarcou os seringais,
         e agora os bichos se amoitam com receio do seu rifle,
                   com medo do seu terçado.

         Vá! Volte pra sua terra! Volta pior do que veio...
         numa proa de navio, tão magro, tão empambado!
                   Chegando lá, que é que acha?
            A ramada do roçado, já queimaram nas coivaras;
                   sua barraca de taipa, o tempo já derrubou...
         E sua criaçãozinha? Mas você não comeu toda,
                            quando o legume faltou?...

         Lá mesmo na sua terra, quem se lembra de você?
         " — Aquele foi embarcado... morreu ou ficou por lá... "
         Vá! Só leve a sezão que apanhou por aqui
                   e a saudade de sua cunhã acreana,
                            dos seus curumins caboclos,
                   que eu também tomo pra mim..."

                   A resposta, qual seria?
                            Insolente e audacioso,
                            mostrou-lhe a ponta da língua,
                   mostrou-lhe a ponta da faca...

                   E, na luta pela terra,
                   o cearense fez mais um pouco
                   que tudo aquilo que os livros contam
                   na grande lista dos heroísmos...

                   Ah! O horror das trincheiras parecidas
         a sepulturas encarrilhadas num zigue-zague macabro!...
                          Nos matagais doentios, onde as maleitas têm casa
                              e devoram mais vidas do que as balas,
               nos combates lá no rio, na casca frágil das montarias,
         e que sempre acabavam em festim de jacarés...

                   Pobre dono escorraçado! Chorava de fazer dó!...

                 E o barão do Rio Branco teve pena
                   e deu-lhe, pra consolo, um bocado de libras esterlinas...
                            e ele agarrou no dinheiro
                                      e foi brincar de cara ou coroa...


GEOMETRIA DOS VENTOS

Eis que temos aqui a Poesia,
a grande Poesia.
Que não oferece signos
nem linguagem específica, não respeita
sequer os limites do idioma. Ela flui, como um rio.
como o sangue nas artérias,
tão espontânea que nem se sabe como foi escrita.
E ao mesmo tempo tão elaborada -
feito uma flor na sua perfeição minuciosa,
um cristal que se arranca da terra
já dentro da geometria impecável
da sua lapidação.
Onde se conta uma história,
onde se vive um delírio; onde a condição humana exacerba,
até à fronteira da loucura,
junto com Vincent e os seus girassóis de fogo,
à sombra de Eva Braun, envolta no mistério ao
                                       mesmo tempo
fácil e insolúvel da sua tragédia.
Sim, é o encontro com a Poesia. 


* Poema publicado no Jornal de Poesia. Arquivo de Álvaro Pacheco.


TELHA DE VIDRO

Quando a moça da cidade chegou
veio morar na fazenda,
na casa velha...
Tão velha!
Quem fez aquela casa foi o bisavô...
Deram-lhe para dormir a camarinha,
uma alcova sem luzes, tão escura!
mergulhada na tristura
de sua treva e de sua única portinha...

A moça não disse nada,
mas mandou buscar na cidade
uma telha de vidro...
Queria que ficasse iluminada
sua camarinha sem claridade...

Agora,
o quarto onde ela mora
é o quarto mais alegre da fazenda,
tão claro que, ao meio dia, aparece uma
renda de arabesco de sol nos ladrilhos
vermelhos,
que — coitados — tão velhos
só hoje é que conhecem a luz doa dia...
A luz branca e fria
também se mete às vezes pelo clarão
da telha milagrosa...
Ou alguma estrela audaciosa
careteia
no espelho onde a moça se penteia.

Que linda camarinha! Era tão feia!
— Você me disse um dia
que sua vida era toda escuridão
cinzenta,
fria,
sem um luar, sem um clarão...
Por que você na experimenta?
A moça foi tão vem sucedida...
Ponha uma telha de vidro em sua vida!


* Poema publicado no Jornal de Poesia.


Rachel de Queiroz nasceu em 17 de novembro de 1910 em Fortaleza. Quando jovem a família mudou-se para Quixadá, onde a escritora viveu boa parte de sua vida. Traduziu, escreveu para imprensa e romances importantes para a literatura brasileira, como O Quinze e Memorial de Maria Moura. Foi a primeira mulher a integrar a Academia Brasileira de Letras. Sua obra poética é esparsa e cobre os anos iniciais de sua escrita; deixou um inédito, Mandacaru, publicado postumamente, em 2010, pelo Instituto Moreira Salles e outra parte da sua poesia foi reunida por Ana Miranda na antologia Serenata (2010).

domingo, 28 de novembro de 2010

Dois poemas de Adolfo Caminha

NO BANHO

Ninfas do bosque, Náiades formosas,
Sátiros, Faunos, vinde vê-la agora,
Nua, no banho, esta ideal senhora,
Que em beleza e frescura excede as rosas.

Vinde todos depressa!... Ei-la que cora,
Ei-la que solta as tranças graciosas
Sobre as espáduas níveas, capitosas...
Ei-la que treme à loura luz da aurora...

Tinge-se o céu de cores purpurinas,
O sol desponta; as tímidas boninas
Mostram à luz os cálices dourados.

Vede-as, Ninfas, agora: os nacarados
Lábios, os seios túmidos, nevados,
Segredam coisas ideais, divinas.


A CRIANÇA SUICIDA

Pobre criança!... Pobre... Um pensamento impuro
apagou-te da mente os sonhos infantis...
Quanta dor! quanto amor no teu semblante puro
ao ver-te só no mundo entregue aos homens vis!...

E um dia a sociedade, esse vampiro enorme,
que o sangue chupa ao justo e poupa a tirania,
essa ave negra, viu-te, arroxeado e informe,
o corpo de criança, a alma... já não via!...

Como era triste o quadro! A boca se entreabria
como s’inda quisesse um ai! Soltar ao mundo.
A negra multidão te olhava e parecia
tocada de pavor e de um ódio profundo!

Via-se em cada rosto um riso de ironia,
como desafiando os céus e o mundo inteiro.
Uma criança loira os lábios entreabria
e apontava sorrindo o corpo do caixeiro!...
E o corpo, já sem vida, o vento balouçava!
Era como uma lâmpada sombria, negra,
alumiando o povo... A multidão sismava
e ouvia-se distante a voz da tontinegra...

Dezembro, 1885.

Adolfo Caminha nasceu em Aracati no dia 29 de maio de 1867. A vida breve não o impediu de construir uma obra significativa para a literatura brasileira. Ficou conhecido com romances como A normalista e Bom crioulo, importantes títulos para o naturalismo. Mas, sua estreia literária foi com o livro de poemas Voos incertos, único que publicou neste gênero. Morreu no Rio de Janeiro no dia 1º de janeiro de 1897.

sábado, 27 de novembro de 2010

Três poemas de Fiama Hasse Pais Brandão



GRAFIA 1 

Água significa ave

se

a sílaba é uma pedra álgida
sobre o equilíbrio dos olhos

se

as palavras são densas de sangue
e despem objectos

se

o tamanho deste vento é um triângulo na água
o tamanho da ave é um rio demorado

onde


as mãos derrubam arestas 
a palavra principia


A PORTA BRANCA

Por detrás desta porta,
uma de todas as portas que para mim se abrem e se fecham,
estou eu ou o universo que eu penso.
Deste meu lado, dois olhos que vigiam
os fenómenos naturais, incluindo a celeste mecânica
e as sociedades humanas, sedentárias e transumantes.

Mas podem os olhos fazer a sua enumeração,
e pode o pensado universo infindamente ir-se,
que para mim o que hoje importa
é aquela olhada vaga porta.

Que ela seja só como a vejo, a porta branca,
com duas almofadas em recorte,
lançada devagar sobre o vão do jardim,
onde o gato, por uma fenda aberta
pela sua pata, tenta ver-me,
tão alheio a versos e a universos.


MARÉ


Quando a maré baixa sob o céu róseo,
são a terra e a areia que absorvem
o infindo fumo e a neblina.

Além, um pescador; além, uma gaivota;
são os mesmos corpos movendo-se,
são a mesma inércia da morte.
O pescador revolve a areia
acocorado sobre algas douradas
em busca de mínimos seres vivos.
Um imenso bando de gaivotas intenta
separar de súbito o céu da terra
como se estas águas da ria,
tão lisas, fossem a antimatéria.

Fiama Hasse Pais Brandão nasceu no dia 15 de agosto de 1938, em Lisboa. Foi dramaturga, tradutora e poeta. Formada em Filologia Germânica na Universidade de Lisboa, exerceu atividade de pesquisa em Estudos Linguísticos e Literários. Seu primeiro livro foi Morfismos, publicado no âmbito da iniciativa Poesia 61, coletânea que refletia uma tendência poética atenta à palavra, à linguagem na sua opacidade, na busca de uma expressão depurada e não discursiva. "A criação poética de Fiama Hasse Pais Brandão impõe-se pela busca de uma expressão original, onde as palavras tentam evocar uma essência perdida, anterior à erosão do tempo e do uso corrente. A desconstrução das articulações do discurso e a sua metaforização provocam um estranhamento que conduz o leitor a despir a linguagem da sua convencionalidade e a entrever o acesso pela palavra pura a um tempo primordial", sublinha o verbete sobre a poeta editado pela Assírio & Alvim. Destacam-se na sua bibliografia, dentre outros títulos Novas visões do passado (1974), Área branca (1978), e Três rostos (1989). Morreu em Lisboa no dia 20 de Janeiro de 2006.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Cinco poemas de João Miguel Fernandes Jorge




OS AMARELOS DE NOVEMBRO

Não tem palavras a minha canção preferida. Tem antes
os amarelos queimados de novembro. Gosto de gente antiga e
obscura, gente culpada, jovem ou envelhecida para
quem a vida não passa de um contínuo de sombra
por isso sei abraçar por isso partem sem regresso.
Sombras que surpreendo — não quebres não
estragues o amarelo de novembro.

E aquele que está sentado à nossa frente é entre
todas as coisas
a ideia mais perfeita, a mais real, a mais sólida.
No instante seguinte nada sabemos.
É assim o nosso modo de ser e a própria
condição do amor. Destruir,
riscar até desaparecerem os amarelos de novembro.


OS DIAS DE BRUEGEL

Os campos estão lavrados, mesmo sob a
neve do inverno permanecem
estendem o horizonte de terra fértil e a ave
marinha voa sobre o íris amarelo

estão armados os cavaleiros d’áustria e de
filipe segundo, rei espanhol,
massacram os inocentes, o sentido das vidas
a história de imaginada Flandres

dão o passo sobre a branca paisagem os
caçadores, desliza na água do degelo
uma barca de improviso, mas logo

desce de novo a luz do outono sobre a aldeia e o
silêncio, cor do inverno. (Acontece,
há caminhos mais longos do que
outros. O destino a que

é suposto chegarmos está desenhado à
partida. Desculpa ser tão bruto – o destino,
triunfo da morte.)


PEQUENOS VIDROS AZUIS

Cobria a mesa com velas acesas
a macerada tarde do mês último —
e escrevia em rectângulo
de papel bem aparado,

depois rasgava. Todos o podiam ver
sentado a essa mesa no cimo do parque,
a casa,
o vidro azul da janela

canal de água a par do caminho. Foi
quando surgiu o levadeiro
— as velas de um sopro apagou —
caía a água na extensão da rocha

no perfume magoado de dezembro
entre o rumor do vento

a sombra não se movia nem se prendia ao
traço do corpo, não imitava os gestos
em doce modo apagou todas as velas
ao que escrevia sem qualquer sentido
ao muro branco do nevoeiro
a última folha da faia rubra prendia a

vazia escrita do desejo, seguia-o
com o passo de um ladrão e o tremor
de quem falta a secreto juramento.


CASTELO DE AGROMONTE

À distância da alta janela
era uma mulher sem idade. Estou em crer
era ainda rapariga
sob a trovoada e a chuva
seguia por entre os jazigos – góticas
capelas imperfeitas –
ia pelo caminho de saibro
ao encontro dos amados mortos. Abriu a torneira, a água
correu, lavou a jarra,
água para amarelos crisântemos. Água
límpida para os seus amados mortos
em véspera de todos-os-santos (amanhã é feriado,
reclamam-na os vivos
bem menos amados – dos vivos não pode dizer “seus” não
pode pousar
sobre a pedra branda dos leitos
a jarra, roxos crisântemos amarelos)
– Como se chama o cemitério, além
– Agromonte, senhor


ESCHSCHOLZIA

Além naquele requebro sobre o mar, ao passar o pinhal
e os cálices brancos da esteva (tão grandes nunca assim os vi
no continente) está o chão de amarelo Chamisso. É a eschscholzia.
Semelhante à vulgar papoila
se não fôra o amarelo intenso
sobre o mar da ilha
estremece ao menor sopro de vento
ferida de pele queimada que recorda vencedores e derrotados no plaino de [Waterloo.

Pôs o chapéu de palha e levou-me pelo caminho da casa velha,
acachorrada, campestre. Em voz medida, a flor do acaso
rente ao passar — eufórbia, trevo rosa, artemisa,
o azul da chicória, a sombra desenhada da bardana, o
caminho do herbário. Na despedida,
não sei porque me disse em castelhano Y
las más de las veces la excelencia
sólo está en los mimados por los dioses. O obscuro azul da noite
descia, triste cravo de bronze sobre a leal flor
do linho que vinga sem cuidado.


João Miguel Fernandes Jorge nasceu em Bombarral em 1943. Licenciado em Filosofia pela Universidade de Lisboa; em 1988 fundou com o irmão André Fernandes Jorge a editora Cotovia. Sua vasta obra no gênero poesia reúne títulos como Sob sobre voz (1971), Turvos dizeres (1973), Alguns círculos (1975), Direito de mentir (1978), O roubador de água (1981), Pelo fim da tarde (1989), entre outros. É autor ainda de textos de ficção e ensaios sobre arte.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Dois poemas de Gustavo Adolfo Bécquer



IV

Não digais que esgotado seu tesouro,
de assuntos falta, emudeceu a lira;
poderá não haver poetas; mas sempre
haverá poesia.

Enquanto as ondas da luz ao beijo
palpitem acesas,
enquanto o sol as desgarradas nuvens
de fogo e ouro vista,
enquanto o ar em seu regaço leve
perfumes e harmonias,
enquanto haja no mundo primavera,
haverá poesia!

Enquanto a ciência a descobrir não alcance
as fontes da vida,
e no mar ou no céu haja um abismo
que ao cálculo resista,
enquanto a humanidade sempre avançando
não saiba para onde caminha,
enquanto haja um mistério para o homem,
haverá poesia!

Enquanto se sinta que se ri a alma,
sem que os lábios se riam,
enquanto se chore, sem que o pranto acuda
a nublar a pupila;
enquanto o coração e a cabeça
baralhando prossigam,
enquanto haja esperanças e memórias,
haverá poesia!

Enquanto haja olhos que reflitam
outros olhos que os mirem,
enquanto responda o lábio suspirando
ao lábio que suspira,
enquanto sentir-se possam em um beijo
duas almas confundidas,
enquanto exista uma mulher formosa,
haverá poesia!


X

Os invisíveis átomos do ar
ao redor palpitam e se inflamam,
o céu desfaz-se em raios de ouro,
a terra se estremece alvoroçada,
ouço flutuando em ondas de harmonias
rumor de beijos e bater de asas,
minhas pálpebras se fecham ... Que sucede?
É o amor que passa!

Gustavo Adolfo Bécquer nasceu em 17 de fevereiro de 1836, em Sevilha. É considerado uma figura das mais importantes do romantismo espanhol. Sua obra resume-se a um volume de poemas publicado com o título de Rimas, um conjunto de textos em prosa, Lendas, e dois pequenos conjuntos de ensaios redigidos sob a forma epistolar, "Desde mi celda" e "Cartas literarias a una mujer". Teve uma vida breve: morreu em Madrid, sem completar trinta e cinco anos de idade, em 22 de dezembro de 1870. 


* Traduções de Márcia Sirotheau. Poemas publicados inicialmente no site do Antonio Miranda.
  


quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Dois poemas de Olavo Bilac



A UM POETA

Longe do estéril turbilhão da rua,
Beneditino escreve! No aconchego
Do claustro, na paciência e no sossego,
Trabalha e teima, e lima , e sofre, e sua!

Mas que na forma se disfarce o emprego
Do esforço: e trama viva se construa
De tal modo, que a imagem fique nua
Rica mas sóbria, como um templo grego

Não se mostre na fábrica o suplicio
Do mestre. E natural, o efeito agrade
Sem lembrar os andaimes do edifício:

Porque a Beleza, gêmea da Verdade
Arte pura, inimiga do artifício,
É a força e a graça na simplicidade.



OUVIR ESTRELAS

"Ora (direis) ouvir estrelas! Certo
Perdeste o senso!" E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las muita vez desperto
E abro as janelas, pálido de espanto…

E conversamos toda noite, enquanto
A Via Láctea, como um pálio aberto,
Cintila. E, ao vir o sol, saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céu deserto.

Direis agora: "Tresloucado amigo!
Que conversas com elas? Que sentido
Tem o que dizes, quando não estão contigo?"

E eu vos direi: "Amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas".


Olavo Bilac nasceu no Rio de Janeiro em 16 de dezembro de 1865. Jornalista, tradutor, contista, cronista e poeta; é um dos nomes principais do parnasianismo brasileiro. Membro fundador da Academia Brasileira de Letras. Dentre os títulos de poesia destaca-se Poesias (1888). Morreu 28 de dezembro de 1918. 


terça-feira, 23 de novembro de 2010

Três poemas de Alberto Caeiro



As bolas de sabão que esta criança
Se entretém a largar de uma palhinha
São translucidamente uma filosofia toda.
Claras, inúteis e passageiras como a Natureza,
Amigas dos olhos como as cousas,
São aquilo que são
Com uma precisão redondinha e aérea,
E ninguém, nem mesmo a criança que as deixa,
Pretende que elas são mais do que parecem ser.

Algumas mal se vêem no ar lúcido.
São como a brisa que passa e mal toca nas flores
E que só sabemos que passa
Porque qualquer cousa se aligeira em nós
E aceita tudo mais nitidamente.


*

Ao entardecer, debruçado pela janela,
E sabendo de soslaio que há campos em frente,
Leio até me arderem os olhos
O livro de Cesário Verde.

Que pena que tenho dele! Ele era um camponês
Que andava preso em liberdade pela cidade.
Mas o modo como olhava para as casas,
E o modo como reparava nas ruas,
E a maneira como dava pelas cousas,
É o de quem olha para árvores,
E de quem desce os olhos pela estrada por onde vai andando
E anda a reparar nas flores que há pelos campos...

Por isso ele tinha aquela grande tristeza
Que ele nunca disse bem que tinha,
Mas andava na cidade como quem anda no campo
E triste como esmagar flores em livros
E pôr plantas em jarros...


*

Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia,
Não há nada mais simples
Tem só duas datas  a da minha nascença e a da minha morte.
Entre uma e outra cousa todos os dias são meus.

Sou fácil de definir.
Vi como um danado.
Amei as cousas sem sentimentalidade nenhuma.
Nunca tive um desejo que não pudesse realizar, porque nunca ceguei.
Mesmo ouvir nunca foi para mim senão um acompanhamento de ver.
Compreendi que as cousas são reais e todas diferentes umas das outras;
Compreendi isto com os olhos, nunca com o pensamento.
Compreender isto corri o pensamento seria achá-las todas iguais.

Um dia deu-me o sono como a qualquer criança.
Fechei os olhos e dormi.
Além disso, fui o único poeta da Natureza.


Alberto Caeiro é considerado o "mestre", o nome em torno do qual se determinam os outros heterônimos criados por Fernando Pessoa. Nasceu em abril de 1889 em Lisboa, mas viveu grande parte da sua vida numa quinta no Ribatejo onde viria a conhecer Álvaro de Campos. A sua educação cingiu-se à instrução primária, o que combina com a simplicidade e naturalidade de que ele próprio se reclama. Louro, de olhos azuis, estatura média, um pouco mais baixo que Ricardo Reis, é dotado de uma aparência muito diferente dos outros dois heterônimos. É também frágil, embora não o aparente muito, e morreu, precocemente (tuberculoso), em 1915. O mestre é aquele de cuja biografia menos se ocupou Fernando Pessoa. A sua vida foram os seus poemas, como disse Ricardo Reis. É autor de O guardador de rebanhos, obra aparecida em março do ano anterior ao da sua morte.



segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Três poemas de Álvaro de Campos



Faróis

Faróis distantes,
De luz subitamente tão acesa,
De noite e ausência tão rapidamente volvida,
Na noite, no convés, que conseqüências aflitas!
Mágoa última dos despedidos,
Ficção de pensar…

Faróis distantes…
Incerteza da vida…
Voltou crescendo a luz acesa avançadamente,
No acaso do olhar perdido…

Faróis distantes…
A vida de nada serve…
Pensar na vida de nada serve…
Pensar de pensar na vida de nada serve…

Vamos para longe e a luz que vem grande vem menos grande.
Faróis distantes...



Ah a frescura na face de não cumprir um dever!

Ah a frescura na face de não cumprir um dever!
Faltar é positivamente estar no campo!
Que refúgio o não se poder ter confiança em nós!
Respiro melhor agora que passaram as horas dos encontros.
Faltei a todos, com uma deliberação do desleixo,
Fiquei esperando a vontade de ir para lá, que eu saberia que não vinha.
Sou livre, contra a sociedade organizada e vestida.
Estou nu, e mergulho na água da minha imaginação.
É tarde para eu estar em qualquer dos dois pontos onde estaria à mesma hora,
Deliberadamente à mesma hora…
Está bem, ficarei aqui sonhando versos e sorrindo em itálico.
É tão engraçada esta parte assistente da vida!
Até não consigo acender o cigarro seguinte… Se é um gesto,
Fique com os outros, que me esperam, no desencontro que é a vida.


Começo a conhecer-me. Não existo.

Começo a conhecer-me. Não existo.
Sou o intervalo entre o que desejo ser e os outros me fizeram,
Ou metade desse intervalo, porque também há vida…
Sou isso, enfim…
Apague a luz, feche a porta e deixe de ter barulho de chinelas no corredor.
Fique eu no quarto só com o grande sossego de mim mesmo.
É um universo barato.


Álvaro de Campos nasce em Tavira ou em Lisboa no dia 13 ou 15 de outubro de 1890 e morreu em 1935. Depois de “uma educação vulgar de liceu” foi “estudar engenharia, primeiro mecânica e depois naval” em Glasgow; realizou uma viagem ao Oriente, registrada no poema “Opiário” e trabalhou em Londres. Desempregado, teria voltado a Lisboa em 1926, mergulhando num pessimismo decadentista. Foi então que escreveu seu poema mais famoso “Tabacaria”. 



sábado, 20 de novembro de 2010

Um epigrama de Gregório de Matos


Epigrama (I)

Juízo anatômico dos achaques que padecia o corpo da República em todos os membros, e inteira definição do que em todos os tempos é a Bahia.

1.
Que falta nesta cidade?… Verdade.
Que mais por sua desonra?… Honra.
Falta mais que se lhe ponha?… Vergonha.

O demo a viver se exponha,
Por mais que a fama a exalta,
Numa cidade onde falta
Verdade, honra, vergonha.

2.
Quem a pôs neste socrócio?… Negócio.
Quem causa tal perdição?… Ambição.
E no meio desta loucura?… Usura.

Notável desaventura
De um povo néscio e sandeu,
Que não sabe que o perdeu
Negócio, ambição, usura.

3.
Quais são seus doces objetos?… Pretos.
Tem outros bens mais maciços?… Mestiços.
Quais destes lhe são mais gratos?… Mulatos.

Dou ao Demo os insensatos,
Dou ao Demo o povo asnal,
Que estima por cabedal,
Pretos, mestiços, mulatos.

4.
Quem faz os círios mesquinhos?… Meirinhos.
Quem faz as farinhas tardas?… Guardas.
Quem as tem nos aposentos?… Sargentos.

Os círios lá vem aos centos,
E a terra fica esfaimando,
Porque os vão atravessando
Meirinhos, guardas, sargentos.

5.
E que justiça a resguarda?… Bastarda.
É grátis distribuída?… Vendida.
Que tem, que a todos assusta?… Injusta.

Valha-nos Deus, o que custa
O que El-Rei nos dá de graça.
Que anda a Justiça na praça
Bastarda, vendida, injusta.

6.
Que vai pela clerezia?… Simonia.
E pelos membros da Igreja?… Inveja.
Cuidei que mais se lhe punha?… Unha

Sazonada caramunha,
Enfim, que na Santa Sé
O que mais se pratica é
Simonia, inveja e unha.

7.
E nos frades há manqueiras?… Freiras.
Em que ocupam os serões?… Sermões.
Não se ocupam em disputas?… Putas.

Com palavras dissolutas
Me concluo na verdade,
Que as lidas todas de um Frade
São freiras, sermões e putas.

8.
O açúcar já acabou?… Baixou.
E o dinheiro se extinguiu?… Subiu.
Logo já convalesceu?… Morreu.

À Bahia aconteceu
O que a um doente acontece:
Cai na cama, e o mal cresce,
Baixou, subiu, morreu.

9.
A Câmara não acode?… Não pode.
Pois não tem todo o poder?… Não quer.
É que o Governo a convence?… Não vence.

Quem haverá que tal pense,
Que uma câmara tão nobre,
Por ver-se mísera e pobre,
Não pode, não quer, não vence.



Gregório de Matos nasceu em 23 de dezembro de 1636 (?) e morreu em 26 de novembro de 1696. Advogado e poeta; considerado um dos nomes importantes para o Barroco no Brasil. Deixou vasta obra, catalogada pelos estudiosos como poesia amorosa, satírico-pornográfica  e religiosa. 

.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Três poemas de António Gedeão



Vidro côncavo

Tenho sofrido poesia
como quem anda no mar.
Um enjoo.
Uma agonia.
Saber a sal.
Maresia.
Vidro côncavo a boiar.

Dói esta corda vibrante
A corda que o barco prende
à fria argola do cais
Se uma onda que a levante
vem logo outra que a distende.
Não tem descanso jamais.


Poema do homem-rã

Sou feliz por ter nascido
no tempo dos homens-rãs
que descem ao mar perdido
na doçura das manhãs.
Mergulham, imponderáveis,
por entre as águas tranquilas,
enquanto singram, em filas,
peixinhos de cores amáveis.
Vão e vêm, serpenteiam,
em compassos de ballet.
Seus lentos gestos penteiam
madeixas que ninguém vê.

Com barbatanas calçadas
e pulmões a tiracolo,
roçam-se os homens no solo
sob um céu de águas paradas.

Sob o luminoso feixe
correm de um lado para outro,
montam no lombo de um peixe
como no dorso de um potro.

Onde as sereias de espuma?
Tritões escorrendo babugem?
E os monstros cor de ferrugem
rolando trovões na bruma?

Eu sou o homem. O Homem.
Desço ao mar e subo ao céu.
Não há temores que me domem
É tudo meu, tudo meu.


Poema no domingo de Páscoa

No domingo de Páscoa
vi um cego a almoçar num restaurante.
Levava o garfo à boca, e entretanto sorria,
candidamente,
como só os cegos sabem sorrir.
Comia frango, e ao servir-se do garfo ora trazia
comida nova, ora coisa nenhuma,
ora tendões e peles já antes mastigados,
ora tudo junto,
dependurado de qualquer maneira,
sorrindo sempre, candidamente.

Eu então levantei-me, e assim mesmo,
de sapatos castanhos,
calças e casaco da mesma cor,
alto, magro e bastante calvo,
aproximei-me do cego
e disse-lhe imperativamente:
– Abre os olhos!

Que ridículo!
Uma coisa que só aos deuses pertence.


António Gedeão nasceu em Lisboa em 24 de novembro de 1906. Foi professor de Físico-Química em Coimbra, acadêmico da Academia de Ciências de Lisboa e escreveu vários livros história da educação, prosa ficcional, teatro, ensaio e de poesia. Destes últimos pode-se destacar Movimento perpétuo, o primeiro título publicado em 1956, Máquina de fogo (1961) e Linhas de força (1967). Morreu na capital portuguesa em 19 de fevereiro de 1997. 

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Três poemas de Margarida Ferra



ALGÉS

Para a Jussara Rowland

Não chegámos a ver a tempestade
e quase não vimos a feira de
coisas velhas — toldaram-se
as coisas com os preparativos
do fim. Rápidas, as mãos
dos comerciantes a apanhar
os objectos que regressavam
aos sacos, aos carros, aos intervalos.

Não tenho a certeza se
foram as pessoas que começaram
a correr quando caíram as primeiras
gotas, pesadas e distantes, se
foi o vento a crescer em espiral
e por isso os movimentos
me pareceram mais acelerados.
Ou se
durante a nossa fuga, sob os meus olhos,
passaram ainda mais coisas velhas, em trânsito
para dentro dos sacos,
para dentro dos carros.

Foi já no automóvel
que vimos as gaivotas fugidias,
desarrumadas entre os prédios,
brilhantes também,
sobre elas o mesmo sol.
Logo a seguir, as cores todas,
os dois arco-íris. Um dentro do outro, voltas
perfeitas, mais nítida a ilusão de dentro
do que a ténue sugestão de fora.

Deixámos o rio para trás, cinzento,
a nuvem carregada colada ao Tejo e, antes
do azul celeste de uma bonança superior,
o sol na nuvem branca, néon horizontal.

À medida que regressávamos à cidade,
foi desaparecendo tudo o que parecia ser.


REGA AUTOMÁTICA

Na esquerda, uma luva grossa
protege-me dos acentos agudos.
A direita, despida e guardada,
receio que se transforme em água,
ainda não foi urgente abri-la.
Tornou-se uma evidência que estas
mãos podiam um dia ficar
mais longe do prolongamento
dos ouvidos.
Deixei, nessa mesma tarde,
no colo as agulhas
e os fios, espessuras e números incompatíveis.
Nunca fui capaz de ensaiar
as dobras
meticulosas na folha branca.
Um só vinco geométrico, em papel
de máquina, podia disciplinar-me
todos os gestos (mesmo os
que afinal não foram).
Se fosse hábil de tacto,
rendia-me ao origami.



CULTIVO DOMÉSTICO

O cheiro da menta
no canteiro improvisado
entrou depressa demais
nos meus pulmões.
O ar tornou-se um silêncio incómodo
– pouco e frio. Essas palavras,
que íamos agora ouvir, a apagarem-se
diante dos meus olhos. E a acenderem-se
logo depois, debaixo das tuas pálpebras.
Os néons substituíram toda a mobília
do quarto: já não o vejo.
Descobrimos a seguir os vapores
que se levantavam das minhas
mãos, até todas as chávenas vazias.
E calámo-nos.
Quase nada do que foi plantado
resistiu ao domínio da hortelã.
Os outros versos nunca chegaram a existir.


Nasceu em Lisboa em 1977. É licenciada em Ciências da Comunicação pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Trabalhou numa pizzaria, num jornal, numa galeria de arte contemporânea, em duas livrarias e no Palácio da Ajuda. Seguiram-se sete anos de comunicação editorial. Publicou em 2010, na editora &etc, o livro de poemas Curso Intensivo de Jardinagem, finalista, no ano seguinte, do Prêmio Literário Casino da Póvoa. Em 2013, também com a &etc publicou Sorte de Principiante.

sábado, 13 de novembro de 2010



Eu nunca fui dos que a um sexo o outro

Eu nunca fui dos que a um sexo o outro
No amor ou na amizade preferiram.
Por igual amo, como a ave pousa
     Onde pode pousar.

Pousa a ave, olhando apenas a quem pousa
Pondo querer pousar antes do ramo;
Corre o rio onde encontra o seu retiro
     E não onde é preciso.

Assim das diferenças me separo
E onde amo, porque o amo ou nenhum amo,
Nem a inocência inata de quem ama
Julgo postergada nisto.

Não no objecto, no modo está o amor,
Logo que a ame, a qualquer coisa amo.
Meu amor nela não reside, mas
     Em meu amor.

Os deuses que nos deram este rumo
Do amor a que chamamos a beleza
Não na mulher só a puseram; nem
     No fruto apenas.



Uns, com os olhos postos no passado
Uns, com os olhos postos no passado,
Vêem o que não vêem; outros, fitos
Os mesmos olhos no futuro, vêem
O que não pode ver-se.
Porque tão longe ir pôr o que está perto —
A segurança nossa? Este é o dia,
Esta é a hora, este o momento, isto
É quem somos, e é tudo.
Perene flui a interminável hora
Que nos confessa nulos. No mesmo hausto
Em que vivemos, morreremos. Colhe
O dia, porque és ele.
.
28-8-1933


Cada coisa a seu tempo tem seu tempo 
Cada coisa a seu tempo tem seu tempo.
Não florescem no Inverno os arvoredos,
Nem pela Primavera
Têm branco frio os campos.
À noite, que entra, não pertence, Lídia,
O mesmo ardor que o dia nos pedia.
Com mais sossego amemos
A nossa incerta vida.
À lareira, cansados não da obra
Mas porque a hora é a hora dos cansaços,
Não puxemos a voz
Acima de um segredo,
E casuais, interrompidas sejam
Nossas palavras de reminiscência
(Não para mais nos serve
A negra ida do sol).
Pouco a pouco o passado recordemos
E as histórias contadas no passado
Agora duas vezes
Histórias, que nos falem
Das flores que na nossa infância ida
Com outra consciência nós colhíamos
E sob uma outra espécie
De olhar lançado ao mundo.
E assim, Lídia, à lareira, como estando,
Deuses lares, ali na eternidade
Como quem compõe roupas
O outrora compúnhamos
Nesse desassossego que o descanso
Nos traz às vidas quando só pensamos
Naquilo que já fomos,
E há só noite lá fora.
.
30-7-1914

Fernando Pessoa estabelece duas datas distintas para o nascimento de Ricardo Reis: em Páginas Íntimas e de Auto- Interpretação (p.385) diz este nasce no seu espírito no dia 29 de Janeiro de 1914: "O Dr. Ricardo Reis nasceu dentro da minha alma no dia 29 de Janeiro de 1914, pelas 11 horas da noite"; depois, numa carta a Adolfo Casais Monteiro datada de 13 de janeiro de 1935, altera a data deste nascimento afirmando que Ricardo Reis nascera no seu espírito em 1912. Só em março de 1914 que o autor das Odes inicia a sua produção, desde então continuada e intensa, e sempre coerente e inalterável, até 13 de Dezembro de 1933. Médico de profissão, monárquico, fato que o levou a viver emigrado alguns anos no Brasil, educado num colégio de jesuítas, recebeu, pois, uma formação clássica e latinista e foi imbuído de princípios conservadores, elementos que são transportados para a sua concepção poética. 


sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Dois poemas de José Gomes Ferreira



Quero voar
– mas saem da lama
garras de chão
que me prendem os tornozelos.

Quero morrer
-mas descem das nuvens
braços de angústia
que me seguram pelos cabelos.

E assim suspenso
no clamor da tempestade
como um saco de problemas
– tapo os olhos com as lágrimas
para não ver as algemas...

(Mas qualquer balouçar ao vento me parece Liberdade.)


*

Porque é que este sonho absurdo
a que chamam realidade
não me obedece como os outros
que trago na cabeça?

Eis a grande raiva!
Misturem-na com rosas
e chamem-lhe vida.




José Gomes Ferreira nasceu em 9 de junho de 1900, no Porto. Escritor, poeta e ficcionista, formou-se em Direito em 1924, tendo sido cônsul na Noruega entre 1925 e 1929. Após o seu regresso a Portugal, enveredou pela carreira jornalística. Foi colaborador de vários jornais e revistas, tais como a Presença, a Seara Nova e Gazeta Musical e Todas as Artes. Esteve ligado ao grupo do Novo Cancioneiro, sendo geral o reconhecimento das afinidades entre a sua obra e o neo-realismo. Autor de obra vasta, de sua poesia se destacam títulos com Lírios do monte, o primeiro do gênero, apresentado precocemente em 1918, Longe (1921) e Poeta militante 1, 2 e 3 (1978). Morreu no dia 8 de fevereiro de 1985.   

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Desaparecido


Desaparecido

Sempre que leio nos jornais:
"De casa de seus pais desapar’ceu..."
Embora sejam outros os sinais,
Suponho sempre que sou eu.

Eu, verdadeiramente jovem,
Que por caminhos meus e naturais,
Do meu veleiro, que ora os outros movem,
Pudesse ser o próprio arrais.

Eu, que tentasse errado norte;
Vencido, embora, por contrário vento,
Mas desprezasse, consciente e forte,
O porto do arrependimento.

Eu, que pudesse, enfim, ser eu!
— Livre o instinto, em vez de coagido.
"De casa de seus pais desapar’ceu..."
Eu, o feliz desaparecido!

Sugestão

Sabe-me a sonho 
Estar aqui, 
De olhos fechados, 
Pensando em ti.

Isto recorda-me
Aquele dia 
Em que te olhava,
Mas não te via. 

Tu perguntaste: 
— Que estás a ver? 
Fechei os olhos 
Sem responder.

A tua voz ... 
Como a senti! 
Vinha de tudo, 
Menos de ti.

Carlos Queirós nasceu em Lisboa em 5 de abril de 1907. Poeta da chamada segunda geração modernista, identificado como um dos grandes nomes da revista Presença, desempenhou importante papel na ligação com os de sua geração e a de Orpheu, designadamente a primeira da cena modernista em Portugal.  Escreveu Desaparecido, publicado em 1935 e Breve tratado de não versificação, de 1948. Morreu em Paris no dia 27 ou 28 de outubro de 1949.