sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Dois poemas de Thiago de Mello




Fio da vida
na tarde em que as coronárias oclusas, entristecidas, me pedem para cantar, julho de 1998.

Já fiz mais do que podia
Nem sei como foi que fiz.
Muita vez nem quis a vida
a vida foi quem me quis.

Para me ter como servo?
Para acender um tição
na frágua da indiferença?
Para abrir um coração

no fosso da inteligência?
Não sei, nunca vou saber.
Sei que de tanto me ter,
acabei amando a vida.

Vida que anda por um fio,
diz quem sabe. Pode andar,
contanto (vida é milagre)
que bem cumprido o meu fio.


A fruta aberta
Sobrevoando a Cordilheira dos Andes, 1962

Agora sei quem sou.
Sou pouco, mas sei muito,
porque sei o poder imenso
que morava comigo,
mas adormecido como um peixe grande
no fundo escuro e silencioso do rio
e que hoje é como uma árvore
plantada bem alta no meio da minha vida.

Agora sei as coisa como são.
Sei porque a água escorre meiga
e porque acalanto é o seu ruído
na noite estrelada
que se deita no chão da nova casa.
Agora sei as coisas poderosas
que valem dentro de um homem.

Aprendi contigo, amada.
Aprendi com a tua beleza,
com a macia beleza de tuas mãos,
teus longos dedos de pétalas de prata,
a ternura oceânica do teu olhar,
verde de todas as cores
e sem nenhum horizonte;
com  tua pele fresca e enluarada,
a tua infância permanente,
tua sabedoria fabulária
brilhando distraída no teu rosto.

Grandes coisas simples aprendi contigo,
com o teu parentesco com os mitos mais terrestres,
com as espigas douradas no vento,
com as chuvas de verão
e com as linhas da minha mão.
Contigo aprendi
que o amor reparte
mas sobretudo acrescenta,
e a cada instante mais aprendo
com o teu jeito de andar pela cidade
como se caminhasses de mãos dadas com o ar,
com o teu gosto de erva molhada,
com a luz dos teus dentes,
tuas delicadezas secretas,
a alegria do teu amor maravilhado,
e com a tua voz radiosa
que sai da tua boca
inesperada como um arco-íris
partindo ao meio e unindo os extremos da vida,
e mostrando a verdade
como uma fruta aberta.

Thiago de Mello nasceu a 30 de março de 1926 em Barreirinha, Amazonas. Ainda na infância mudou-se com a família para Manaus, onde realizou seus primeiros estudos. Mais tarde, para o Rio de Janeiro e chega a ingressar na Faculdade de Medicina, mas nunca concluiu o curso. Passou, desde então, a se dedicar ao trabalho com a literatura; sua estreia acontece com o volume de poemas Coração da terra, em 1947. Pelo trabalho em veículos de oposição à ditadura de Getúlio Vargas, foi perseguido, preso e obrigado ao exílio; regressou ao Chile, onde havia trabalhado como adido cultural, e viveu neste país por mais de uma década. No retorno ao Brasil, volta a viver em Barreirinhas. Sua obra se desenvolve em contínuo diálogo com seu tempo, interessada pela renovação do homem em sua reintegração com a natureza, este último, um interesse feito exercício pelo próprio poeta que na terra de origem passa ao convívio e ao trabalho de luta com as comunidades ribeirinhas na região amazônica. É dele livros como Silêncio e palavra (1951), Narciso cego (1952), A lenda da rosa (1956), Faz escuro mas eu canto (1966 e sua Magnum Opus), Poesia comprometida com a minha e a tua vida (1975), Os estatutos do homem (1964, seu poema mais popular), Vento geral (1981), Horóscopo para os que estão vivos (1984), Mormaço na floresta (1984), Num campo de margaridas (1986), dentre outros. Também escreveu prosa (crítica e ensaio) e traduziu obras de nomes como T. S. Eliot, Pablo Neruda (com quem convive no Chile), Ernesto Cardenal, Cesar Vallejo, Eliseo Diego, entre outros. Thiago de Mello morreu no dia 14 de janeiro de 2022.