segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Dois poemas de "Raiz de orvalho", de Mia Couto




Identidade

Preciso ser um outro
para ser eu mesmo

Sou grão de rocha
Sou o vento que a desgasta

Sou pólen sem insecto

Sou areia sustentando
o sexo das árvores

Existo onde me desconheço
aguardando pelo meu passado
ansiando a esperança do futuro

No mundo que combato morro
no mundo por que luto nasço



Raiz de Orvalho


Sou agora menos eu
e os sonhos
que sonhara ter
em outros leitos despertaram

Quem me dera acontecer
essa morte
de que não se morre
e para um outro fruto
me tentar seiva ascendendo
porque perdi a audácia
do meu próprio destino
soltei ânsia
do meu próprio delírio
e agora sinto
tudo o que os outros sentem
sofro do que eles não sofrem
anoiteço na sua lonjura
e vivendo na vida
que deles desertou
ofereço o mar
que em mim se abre
à viagem mil vezes adiada

De quando em quando
me perco
na procura a raiz do orvalho
e se de mim me desencontro
foi porque de todos os homens
se tornaram todas as coisas
como se todas elas fossem
o eco as mãos
a casa dos gestos
como se todas as coisas
me olhassem
com os olhos de todos os homens

Assim me debruço
na janela do poema
escolho a minha própria neblina
e permito-me ouvir
o leve respirar dos objectos
sepultados em silêncio
e eu invento o que escrevo
escrevendo para me inventar
e tudo me adormece
porque tudo desperta
a secreta voz da infância

Amam-me demasiado
as cosias de que me lembro
e eu entrego-me
como se me furtasse
à sonolenta carícia
desse corpo que faço nascer
dos versos
a que livremente me condeno


Mia Couto nasceu em Moçambique em 1955. Formado em Biologia, exerceu várias profissões, além da sua área de formação, como a de jornalista e a de professor. É autor de vasta obra que transita entre a prosa e a poesia e com a qual já recebeu alguns importantes prêmios como o Camões (2013). Em poesia publicou Raiz de orvalho,  Tradutor de chuvasIdades, cidades, divindades e Vagas e lumes.

Ode escrita em 1966



Ninguém é a pátria. Nem mesmo o ginete
que, alto na aurora de uma praça deserta,
leva um corcel de bronze tempo afora,
nem os outros que do mármore olham.
Nem os que sua bélica cinza espalharam
pelos campos da América
ou deixaram um verso ou uma façanha
no justo exercício dos dias.
Ninguém é a pátria. Nem mesmo os símbolos.

Ninguém é a pátria. Nem mesmo o tempo
carregado de batalhas, espadas e êxodos
e da lenta povoação de regiões
limítrofes da aurora e do ocaso,
e de rostos que vão envelhecendo
nos espelhos que se embaçam
e de sofridas agonias anônimas
que duram até a aurora
e da teia da chuva
sobre negros jardins.

A pátria, amigos, é um ato perpétuo
como o perpétuo mundo. (Se o Eterno
espectador deixasse de sonhar-nos
um só instante, nos fulminaria,
branco e brusco relâmpago, Seu olvido.)
Ninguém é a pátria, mas todos devemos
Ser dignos do antigo juramento
que prestaram aqueles cavalheiros
de ser o que ignoravam, argentinos,
de ser o que seriam pelo fato
De haver jurado nesta velha casa.

Somos o futuro desses varões,
a justificativa daqueles mortos;
nosso dever é a gloriosa carga
que a nossa sombra legam essas sombras
que devemos salvar.

Ninguém é a pátria, mas todos o somos.
Arda em meu peito e no vosso, incessante,
Esse límpido fogo misterioso.


.........................
poema enviado pelo Jorge Elias por e-mail.

BORGES, Jorge. O outro, o mesmo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

.