sábado, 13 de novembro de 2010



Eu nunca fui dos que a um sexo o outro

Eu nunca fui dos que a um sexo o outro
No amor ou na amizade preferiram.
Por igual amo, como a ave pousa
     Onde pode pousar.

Pousa a ave, olhando apenas a quem pousa
Pondo querer pousar antes do ramo;
Corre o rio onde encontra o seu retiro
     E não onde é preciso.

Assim das diferenças me separo
E onde amo, porque o amo ou nenhum amo,
Nem a inocência inata de quem ama
Julgo postergada nisto.

Não no objecto, no modo está o amor,
Logo que a ame, a qualquer coisa amo.
Meu amor nela não reside, mas
     Em meu amor.

Os deuses que nos deram este rumo
Do amor a que chamamos a beleza
Não na mulher só a puseram; nem
     No fruto apenas.



Uns, com os olhos postos no passado
Uns, com os olhos postos no passado,
Vêem o que não vêem; outros, fitos
Os mesmos olhos no futuro, vêem
O que não pode ver-se.
Porque tão longe ir pôr o que está perto —
A segurança nossa? Este é o dia,
Esta é a hora, este o momento, isto
É quem somos, e é tudo.
Perene flui a interminável hora
Que nos confessa nulos. No mesmo hausto
Em que vivemos, morreremos. Colhe
O dia, porque és ele.
.
28-8-1933


Cada coisa a seu tempo tem seu tempo 
Cada coisa a seu tempo tem seu tempo.
Não florescem no Inverno os arvoredos,
Nem pela Primavera
Têm branco frio os campos.
À noite, que entra, não pertence, Lídia,
O mesmo ardor que o dia nos pedia.
Com mais sossego amemos
A nossa incerta vida.
À lareira, cansados não da obra
Mas porque a hora é a hora dos cansaços,
Não puxemos a voz
Acima de um segredo,
E casuais, interrompidas sejam
Nossas palavras de reminiscência
(Não para mais nos serve
A negra ida do sol).
Pouco a pouco o passado recordemos
E as histórias contadas no passado
Agora duas vezes
Histórias, que nos falem
Das flores que na nossa infância ida
Com outra consciência nós colhíamos
E sob uma outra espécie
De olhar lançado ao mundo.
E assim, Lídia, à lareira, como estando,
Deuses lares, ali na eternidade
Como quem compõe roupas
O outrora compúnhamos
Nesse desassossego que o descanso
Nos traz às vidas quando só pensamos
Naquilo que já fomos,
E há só noite lá fora.
.
30-7-1914

Fernando Pessoa estabelece duas datas distintas para o nascimento de Ricardo Reis: em Páginas Íntimas e de Auto- Interpretação (p.385) diz este nasce no seu espírito no dia 29 de Janeiro de 1914: "O Dr. Ricardo Reis nasceu dentro da minha alma no dia 29 de Janeiro de 1914, pelas 11 horas da noite"; depois, numa carta a Adolfo Casais Monteiro datada de 13 de janeiro de 1935, altera a data deste nascimento afirmando que Ricardo Reis nascera no seu espírito em 1912. Só em março de 1914 que o autor das Odes inicia a sua produção, desde então continuada e intensa, e sempre coerente e inalterável, até 13 de Dezembro de 1933. Médico de profissão, monárquico, fato que o levou a viver emigrado alguns anos no Brasil, educado num colégio de jesuítas, recebeu, pois, uma formação clássica e latinista e foi imbuído de princípios conservadores, elementos que são transportados para a sua concepção poética.