segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Três poemas de Margarida Ferra



ALGÉS

Para a Jussara Rowland

Não chegámos a ver a tempestade
e quase não vimos a feira de
coisas velhas — toldaram-se
as coisas com os preparativos
do fim. Rápidas, as mãos
dos comerciantes a apanhar
os objectos que regressavam
aos sacos, aos carros, aos intervalos.

Não tenho a certeza se
foram as pessoas que começaram
a correr quando caíram as primeiras
gotas, pesadas e distantes, se
foi o vento a crescer em espiral
e por isso os movimentos
me pareceram mais acelerados.
Ou se
durante a nossa fuga, sob os meus olhos,
passaram ainda mais coisas velhas, em trânsito
para dentro dos sacos,
para dentro dos carros.

Foi já no automóvel
que vimos as gaivotas fugidias,
desarrumadas entre os prédios,
brilhantes também,
sobre elas o mesmo sol.
Logo a seguir, as cores todas,
os dois arco-íris. Um dentro do outro, voltas
perfeitas, mais nítida a ilusão de dentro
do que a ténue sugestão de fora.

Deixámos o rio para trás, cinzento,
a nuvem carregada colada ao Tejo e, antes
do azul celeste de uma bonança superior,
o sol na nuvem branca, néon horizontal.

À medida que regressávamos à cidade,
foi desaparecendo tudo o que parecia ser.


REGA AUTOMÁTICA

Na esquerda, uma luva grossa
protege-me dos acentos agudos.
A direita, despida e guardada,
receio que se transforme em água,
ainda não foi urgente abri-la.
Tornou-se uma evidência que estas
mãos podiam um dia ficar
mais longe do prolongamento
dos ouvidos.
Deixei, nessa mesma tarde,
no colo as agulhas
e os fios, espessuras e números incompatíveis.
Nunca fui capaz de ensaiar
as dobras
meticulosas na folha branca.
Um só vinco geométrico, em papel
de máquina, podia disciplinar-me
todos os gestos (mesmo os
que afinal não foram).
Se fosse hábil de tacto,
rendia-me ao origami.



CULTIVO DOMÉSTICO

O cheiro da menta
no canteiro improvisado
entrou depressa demais
nos meus pulmões.
O ar tornou-se um silêncio incómodo
– pouco e frio. Essas palavras,
que íamos agora ouvir, a apagarem-se
diante dos meus olhos. E a acenderem-se
logo depois, debaixo das tuas pálpebras.
Os néons substituíram toda a mobília
do quarto: já não o vejo.
Descobrimos a seguir os vapores
que se levantavam das minhas
mãos, até todas as chávenas vazias.
E calámo-nos.
Quase nada do que foi plantado
resistiu ao domínio da hortelã.
Os outros versos nunca chegaram a existir.


Nasceu em Lisboa em 1977. É licenciada em Ciências da Comunicação pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Trabalhou numa pizzaria, num jornal, numa galeria de arte contemporânea, em duas livrarias e no Palácio da Ajuda. Seguiram-se sete anos de comunicação editorial. Publicou em 2010, na editora &etc, o livro de poemas Curso Intensivo de Jardinagem, finalista, no ano seguinte, do Prêmio Literário Casino da Póvoa. Em 2013, também com a &etc publicou Sorte de Principiante.