terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Três poemas de Gonçalves Dias



O QUE MAIS DÓI NA VIDA

I cannot but remember such things were,
And were most dear to me.
William Shakespeare

O que mais dói na vida não é ver-se
Mal pago um benefício,
Nem ouvir dura voz dos que nos devem
Agradecidos votos,
Nem ter as mãos mordidas pelo ingrato,
Que as devera beijar!

Não! o que mais dói não é do mundo
A sangrenta calúnia,
Nem ver como s'infama a ação mais nobre,
Os motivos mais justos,
Nem como se deslustra o melhor feito,
A mais alta façanha!

Não! o que mais dói não é sentir-se
As mãos dum ente amado
Nos espasmos da morte resfriadas,
E os olhos que se turvam,
E os membros que entorpecem pouco e pouco,
E o rosto que descora!

Não! não é ouvir daqueles lábios,
Doces, tristes, compassivas,
Sobre o funéreo leito soluçadas
As palavras amigas,
Que tanto custa ouvir, que lembram tanto,
Que não s'esquecem nunca!

Não! não são as queixas amargadas
No triunfar da morte;
Que, se se apaga a luz da vida escassa,
Mais viva a luz rutila;
Luz da fé que não morre, luz que espanca
As trevas do sepulcro.

O que dói, mas de dor que não tem cura,
O que aflige, o que mata,
Mas de aflição cruel, de morte amara,
É morrermos em vida
No peito da mulher que idolatramos,
No coração do amigo!

Amizade e amor! — laço de flores,
Que prende um breve instante
O ligeiro batel à curva margem
De terra hospitaleira;
Com tanto amor se enastra, e tão depressa,
E tão fácil se rompe!

À mais ligeira ondulação dos mares,
Ao mais ligeiro sopro
Da viração — destrançam-se as grinaldas;
O baixel se afasta,
Veleja, foge, até que em plaga estranha
Naufragado soçobre!

Talvez permite Deus que tão depressa
Estes laços se rompam,
Por que nos pese o mundo, e os seus enganos
Mais sem custo deixemos:
Sem custo assim a brisa arrasta a planta,
Que jaz solta na terra!


CANÇÃO DO EXÍLIO 

Kennst du das Land, wo die Citronen blühen,
Im dunkeln Laub die Gold-Orangen glühen?
Kennst du es wohl? — Dahin, dahin!
Möchtl ich... ziehn.
Goethe

Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá;
As aves, que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.

Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores.

Em cismar, sozinho, à noite,
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Minha terra tem primores,
Que tais não encontro eu cá;
Em cismar — sozinho, à noite —
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Não permita Deus que eu morra,
Sem que eu volte para lá;
Sem que desfrute os primores
Que não encontro por cá;
Sem qu'inda aviste as palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Coimbra - julho 1843.


SE SE MORRE DE AMOR!

Meere und Berge und Horizonte zwischen
den Liebenden - aber die Seelen versetzen
sich aus dem staubigen Kerker und treffen
sic im Paradiese der Liebe.
Schiller, Die Räuber

Se se morre de amor! – Não, não se morre,
Quando é fascinação que nos surpreende
De ruidoso sarau entre os festejos;
Quando luzes, calor, orquestra e flores
Assomos de prazer nos raiam n’alma,
Que embelezada e solta em tal ambiente
No que ouve e no que vê prazer alcança!

Simpáticas feições, cintura breve,
Graciosa postura, porte airoso,
Uma fita, uma flor entre os cabelos,
Um quê mal definido, acaso podem
Num engano d’amor arrebentar-nos.
Mas isso amor não é; isso é delírio
Devaneio, ilusão, que se esvaece
Ao som final da orquestra, ao derradeiro

Clarão, que as luzes ao morrer despedem:
Se outro nome lhe dão, se amor o chamam,
D’amor igual ninguém sucumbe à perda.
Amor é vida; é ter constantemente
Alma, sentidos, coração – abertos
Ao grande, ao belo, é ser capaz d’extremos,
D’altas virtudes, té capaz de crimes!

Compreender o infinito, a imensidade
E a natureza e Deus; gostar dos campos,
D’aves, flores,murmúrios solitários;
Buscar tristeza, a soledade, o ermo,
E ter o coração em riso e festa;
E à branda festa, ao riso da nossa alma
fontes de pranto intercalar sem custo;
Conhecer o prazer e a desventura
No mesmo tempo, e ser no mesmo ponto
O ditoso, o misérrimo dos entes;
Isso é amor, e desse amor se morre!

Amar, é não saber, não ter coragem

Pra dizer que o amor que em nós sentimos;
Temer qu’olhos profanos nos devassem
O templo onde a melhor porção da vida
Se concentra; onde avaros recatamos
Essa fonte de amor, esses tesouros
Inesgotáveis d’lusões floridas;
Sentir, sem que se veja, a quem se adora,
Compreender, sem lhe ouvir, seus pensamentos,
Segui-la, sem poder fitar seus olhos,
Amá-la, sem ousar dizer que amamos,
E, temendo roçar os seus vestidos,
Arder por afogá-la em mil abraços:
Isso é amor, e desse amor se morre!


Gonçalves Dias nasceu em Caxias, no dia 10 de agosto de 1823 e morreu em Guimarães, em 3 de novembro de 1864. Foi poeta, advogado, jornalista, etnógrafo e teatrólogo. Figura entre os principais nomes do romantismo no Brasil e da tradição literária definida pela crítica como Indianismo. Escreveu vasta obra poética, incluindo a fação de um curto poema épico – “I-Juca Pirama”.