segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Dois poemas de Miguel Torga



DESFECHO

Um só que fosse, e já valia a pena
Aqui, no mundo, alguém que se condena
A não ser conivente
Na farsa do presente
Posta em cena!

Não podemos mudar a hora da chegada,
Nem talvez a mais certa,
A da partida.
Mas podemos fazer a descoberta
Do que presta
E não presta
Nesta vida.

E o que não presta é isto, esta mentira
Quotidiana.
Esta comédia desumana
E triste,
Que cobre de soturna maldição
A própria indignação
Que lhe resiste.Não tenho mais palavras.
Gastei-as todas a negar-te…
(Só a negar-te eu pudesse combater
O terror de ver
Em toda a parte).

Fosse qual fosse o chão da caminhada,
Era certa a meu lado
A divina presença impertinente
Do teu vulto calado
E paciente…

E lutei, como luta um solitário
Quando alguém lhe perturba a solidão.
Fechado num ouriço de recusas,
Soltei a voz, arma que tu não usas,
Sempre silencioso na agressão.

Mas o tempo moeu na sua mó
O joio amargo do que te dizia…
Agora somos dois obstinados,
Mudos e malogrados,
Que apenas vão a par da teimosia.


NÃO SEI QUANTOS SEREMOS, MAS QUE IMPORTA?

Um só que fosse, e já valia a pena
Aqui, no mundo, alguém que se condena
A não ser conivente
Na farsa do presente
Posta em cena!

Não podemos mudar a hora da chegada,
Nem talvez a mais certa,
A da partida.
Mas podemos fazer a descoberta
Do que presta
E não presta
Nesta vida.

E o que não presta é isto, esta mentira
Quotidiana.
Esta comédia desumana
E triste,
Que cobre de soturna maldição
A própria indignação
Que lhe resiste.

Miguel Torga nasceu no dia 12 de agosto de 1907 em Vila Real, distrito de São Martinho de Anta. Foi o nome artístico adotado para Adolfo Correia da Rocha. Com ele, se tornou um dos escritores mais importantes da literatura portuguesa do século XX. Escreveu contos, romance, peças de teatro, memórias e poemas. Morou no Brasil nos anos 1920, quando tinha só treze anos e veio trabalhar numa fazenda de café do tio em Minas Gerais; viveu três anos aqui, até voltar para seu país natal onde o mesmo tio financia seus estudos. A aposta rendeu. Miguel Torga entrou para a Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra – lugar onde conheceu vários nomes da literatura portuguesa de então, como José Régio, Gaspar Simões, Branquinho da Fonseca, entre outros. Em poesia, publicou mais de duas dezenas de títulos, incluindo Ansiedade, o livro de estreia em 1928, O outro livro de Job (1936), Lamentação (1943) e Orfeu rebelde (1958). Recebeu em 1989 o Prêmio Camões e em 1993 o Prêmio da Associação Portuguesa de Críticos Literários. Morreu no dia 17 de janeiro de 1995. 

Dois poemas de Almada Negreiros



A sombra sou eu

A minha sombra sou eu,
ela não me segue,
eu estou na minha sombra
e não vou em mim.
Sombra de mim que recebo a luz,
sombra atrelada ao que eu nasci,
distância imutável de minha sombra a mim,
toco-me e não me atinjo,
só sei do que seria
se de minha sombra chegasse a mim.
Passa-se tudo em seguir-me
e finjo que sou eu que sigo,
finjo que sou eu que vou
e não que me persigo.
Faço por confundir a minha sombra comigo:
estou sempre às portas da vida,

sempre lá, sempre às portas de mim!

*

Esperança:
isto de sonhar bom para diante
eu fi-lo perfeitamente,
Para diante de tudo foi bom
bom de verdade
bem feito de sonho
podia segui-lo como realidade

Esperança:
isto de sonhar bom para diante
eu sei-o de cor.
Até reparo que tenho só esperança
nada mais do que esperança
pura esperança
esperança verdadeira
que engana
e promete
e só promete.

Esperança:
pobre mãe louca
que quer pôr o filho morto de pé?

Esperança
único que eu tenho
não me deixes sem nada
promete
engana
engano que seja
engana
não me deixes sozinho
esperança.


Almada Negreiros nasceu em S. Tomé e Príncipe no dia 7 de abril de 1893. Escritor e artista plástico, ajudou a fundar a revista Orpheu, veículo de introdução do modernismo em Portugal. Como escritor é autor de vasta obra inovadora que inclui prosa, poesia e teatro. Morreu em 15 de julho de 1970 em Lisboa.