segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Mensagem (fragmentos)



Segundo/ O das quinas

08/12/1928

Os deuses vendem quando dão.
Compra-se a glória com a desgraça.
Ai dos felizes, porque são
Só o que passa!

Baste a quem baste o que lhe basta
O bastante de lhe bastar!
A vida é breve, a alma é vasta;
Ter é tardar.

Foi com desgraça e com vileza
Que Deus ao Cristo definiu:
Assim o opôs à Natureza
E Filho o ungiu.

Quinta/ D Sebastião, rei de Portugal

Louco, sim, louco, porque quis grandeza 
Qual a Sorte a não dá.
Não coube em mim minha certeza;
Por isso onde o areal está
Ficou meu ser que houve, não o que há.

Minha loucura, outros que me a tomem
Com o que nela ia.
Sem a loucura que é o homem
Mais que a besta sadia,
Cadáver adiado que procria?

I. O infante

Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.
Deus quis que a terra fosse toda uma,
Que o mar unisse, já não separasse.
Sagrou-te, e foste desvendando a espuma,

E a orla branca foi de ilha em continente,
Clareou, correndo, até ao fim do mundo,
E viu-se a terra inteira, de repente,
Surgir, redonda, do azul profundo.

Quem te sagrou criou-te português.
Do mar e nós em ti nos deu sinal.
Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.
Senhor, falta cumprir-se Portugal!

X. Mar Português

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portuhal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.

Fernando Pessoa nasceu em 13 de junho de 1888, em Lisboa. Considerado um dos mais importantes poetas das literaturas de língua portuguesa, a sua poesia acabou por ser decisiva na evolução de toda a produção poética do século XX. Se nele é ainda notória a herança simbolista, Pessoa foi mais longe, não só quanto à criação (e invenção) de novas tentativas artísticas e literárias, mas também no que respeita ao esforço de teorização e de crítica literária. É um poeta universal, na medida em que nos foi dando, mesmo com contradições, uma visão simultaneamente múltipla e unitária da Vida. É precisamente nesta tentativa de olhar o mundo duma forma múltipla (com um forte substrato de filosofia racionalista e mesmo de influência oriental) que reside uma explicação plausível para ter criado os célebres heterônimos - Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis, sem contarmos ainda com o semi-heterônimo Bernardo Soares. Morreu em 30 de novembro de 1935.

sábado, 29 de janeiro de 2011

Dois poemas de Gilberto Mendonça Teles



PAIXÃO

— Quanto dura uma paixão?

Uma paixão não dura nada, apenas
a eternidade simples de um sorriso
que, por ser belo, e possuir antenas
capta constantemente o paraíso.

Uma paixão é sempre um peixe grande,
uma alegria que se torna amarga
quando se perde a noite e, na manhã
de sol, se perde o anzol na linha larga.

Nem adianta, aí, mudar de isca,
cevar o poço e procurar no fundo:
o peixe da paixão é sombra arisca
na melhor pescaria deste mundo.

Ela não dura muito e, por ser peixe,
não dura na emoção, não dura nada:
se se perde no fundo, é sempre um feixe
de luz
         — alguma escama nacarada,
caco de vidro, areia no sol quente
que cintila e se apaga, de repente.



FALAVRA

Ainda sei da fala e sei da lavra
e sei das pedras nas palavras áspedras.
E sei queo leito da linguagem leixa
pedregulhos na letra.
                                 É como o logro
da poeira na louça ou como o lixo
nos baldios do livro.
Ainda sei da língua e sei da linha
do luxo e suas luvas, amaciando
os calos e os dedais.
                                E sei da fala
e do ato de lavrá-la na falavra.


                 

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Três poemas de Cassiano Ricardo



Canção para poder viver
Dou-lhe tudo do que como,
e ela me exige o último gomo.

Dou-lhe a roupa com que me visto
e ela me interroga: só isto?

Se ela se fere num espinho,
O meu sangue é que é o seu vinho.

Se ela tem sede eu é que choro,
no deserto, para lhe dar água:

E ela mata a sua sede,
já no copo de minha mágoa

Dou-lhe o meu canto louco; faço
um pouco mais do que ser louco.

E ela me exige bis, "ao palco"!


Desejo
As coisas que não conseguem morrer
Só por isso são chamadas eternas.
As estrelas, dolorosas lanternas
Que não sabem o que é deixar de ser.

Ó força incognoscível que governas
O meu querer, como o meu não-querer.
Quisera estar entre as simples luzernas
Que morrem no primeiro entardecer.

Ser deus — e não as coisas mais ditosas
Quanto mais breves, como são as rosas
É não sonhar, é nada mais obter.

Ó alegria dourada de o não ser
Entre as coisas que são, e as nebulosas,
Que não conseguiu dormir nem morrer.


A física do susto
O espelho caiu a parede.
Caiu com ele o meu rosto.
Com o meu rosto a minha sede.
Com a minha sede eu desgosto.
O meu desgosto de olhar,
no espelho caído, o meu rosto.


quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Três




Não lhe contarei minha história.
a da vaquinha morta,
e não me deu o leite da vida:
urubus pastaram seus olhos.
E pastarão sobre mim.

Nem a história de mamãe-titia,
de meu pai-pequeno-e-feio,
de meu nascer-Chico
por simples fuxico.
Não houve melhor jeito.
Depois, morreremos de comer, de beber:
— o sono-inanição era todo nosso.

E o medo do outro (e de nós?)
e os desejos menos preciosos
que morriam?

o mundo antes de mim,
do alto do descaso,
jogou-me na grande roleta.
E bicho permaneço.

Não me deram nem carne nem osso,
nem cabeça — mundo deus, mundo diabo.
Deram-me tripa
muita tripa
e coração.

Assim subvivi para este sonho
entre aves de rapina
e frutos escassos,
cactos, espinhos, trapos,
despetalando a vida que não quis.

.....................
Publicado inicialmente no site Jornal de Poesia

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Cântico negro



"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!


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José Régio in Poemas de Deus e do Diabo.

domingo, 23 de janeiro de 2011

Poema do silêncio



Sim, foi por mim que gritei,
Declamei,
Atirei frases em volta,
Cego de angústia e de revolta.

Foi em meu nome que fiz,
A carvão, a sangue, a giz,
Sátiras e epigramas nas paredes
Que não vi serem necessárias e vós vedes.

Foi quando compreendi
Que nada me dariam do infinito que pedi,
Que ergui mais alto o meu grito
E pedi mais infinito!

Eu, o meu eu rico de baixas e grandezas,
Eis a razão das épi-trági-cómicas empresas
Que, sem rumo,
Levantei com sarcasmo, sonho, fumo...

O que buscava
Era, como qualquer, ter o que desejava.
Febres de Mais, ânsias de Altura e Abismo,
Tinham raízes banalíssimas de egoísmo.

Que só por me ser vedado
Sair deste meu ser formal e condenado,
Erigi contra os céus o meu imenso Engano
De tentar o ultra-humano, eu que sou tão humano!

Senhor meu Deus em que não creio!
Nu a teus pés, abro o meu seio:
Procurei fugir de mim,
Mas sei que sou meu exclusivo fim.






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Publicado inicialmente em Instituto Camões.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

carta

um detalhe,
um canto mais amargo do seu sorriso
sob a lua da cidade,
palavras sugeridas num sarro dos ombros
enquanto as sombras da noite nos ultrapassavam,

de pouco me recordo, as imagens se apagam,
mesmo a sua ao telefone, indiferente,
à partida, ao nosso desejo, ao corte de tudo,
- triste representação!

até logo, uma cerveja, um baseado,
dois, três, cinco cigarros e a parede suja
do quarto quando nada mais parece adiantar,
os ridículos milhares de quilômetros,
este inverno turco,
os pulmões encardidos,
este beco sem saída,

e você?


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Publicado inicialmente no blog O único e verdadeiro Deus vivo.

Um poema de António Botto





Poema de cinza

À Memória de Fernando Pessoa

Se eu pudesse fazer com que viesses
Todos os dias, como antigamente,
Falar-me nessa lúcida visão –
Estranha, sensualíssima, mordente;
Se eu pudesse contar-te e tu me ouvisses,
Meu pobre e grande e genial artista,
O que tem sido a vida – esta boemia
Coberta de farrapos e de estrelas,
Tristíssima, pedante, e contrafeita,
Desde que estes meus olhos numa névoa
De lágrimas te viram num caixão;
Se eu pudesse, Fernando, e tu me ouvisses,
Voltávamos à mesma: Tu, lá onde
Os astros e as divinas madrugadas
Noivam na luz eterna de um sorriso;
E eu, por aqui, vadio da descrença,
Tirando o meu chapéu aos homens de juízo...
Isto por cá vai indo como dantes;
O mesmo arremelgado idiotismo
Nuns Senhores que tu já conhecias
– Autênticos patifes bem falantes...
E a mesma intriga: as horas, os minutos,
As noites sempre iguais, os mesmos dias,
Tudo igual! Acordando e adormecendo
Na mesma cor, do mesmo lado, sempre
O mesmo ar e em tudo a mesma posição
De condenados, hirtos, a viver
Sem estímulo, sem fé, sem convicção...
Poetas, escutai-me. Transformemos
A nossa natural angústia de pensar –
Num cântico de sonho!, e junto dele,
Do camarada raro que lembramos,
Fiquemos uns momentos a cantar!




António Botto nasceu em 1897, no concelho de Abrantes. Aos 24 anos escreve Canções, obra mais importante de sua poética. Viveu algum tempo em Angola onde trabalhou funcionário como público; no regresso, toma posse no Governo Civil de Lisboa e depois é nomeado escriturário de 2ª classe do Arquivo geral de Registo Criminal e Policial. Em 1942 foi demitido da função pública – demissão e não aposentação compulsiva, o que não lhe deu direito a qualquer pensão – por fatos que foram subsumidos ao conceito indeterminado de "falta de idoneidade moral". No ano de 1947, decide partir para o Brasil; morreu no Rio de janeiro, como consequência de acidente, em 1959.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Sensações de Baltimore (incompleto)

Cidade triste entre as tristes,
Oh Baltimore!
Mal eu diria que na terra existes
Cidade dos Poetas e dos Tristes,
Com teus sinos clamando «Never-more.»

Os comboios relampagos voando,
Pela cidade de Baltimore,
Levam uns sinos que de quando em quando
Ferem os ares, o coração magoando
E os sinos clamam «Never-more, never-more».
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Baltimore, 1897.




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Disponível em Projecto Gutenberg

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Um dos poemas mais marcantes de Almada Negreiros





A CENA DO ÓDIO



A Álvaro de Campos

a dedicação intensa
de todos os meus avatares

Ergo-Me Pederasta apupado d' imbecis,
divinizo-me Meretriz, ex-líbris do Pecado.
e odeio tudo o que não Me é por Me rirem o Eu!
Satanizo-Me Tara na Vara de Moisés!
O castigo das serpentes é-Me riso nos dentes,
Inferno a  arder o Meu cantar!
Sou Vermelho-Niagara dos sexos escancarados nos chicotes dos cossacos!
Sou Pan-Demónio-Trifauce enfermiço de Gula!
Sou Génio de Zaratrustra em Taças de Maré-Alta!
Sou Raiva de Medusa e Danação do Sol!
Ladram-Me a Vida por vivê-la
e só Me deram Uma!
Hão-de lati-La por sina!
Agora quero vivê-La!
Hei-de poeta cantá-La em Gala sonora e dina!
Hei-de Glória desanuviá-la!
Hei-de Guindaste içá-la esfinge
da Vala pedestre onde Me querem rir!
Hei-de trovão-clarim leva-La Luz
às Almas-Noites do jardim das Lágrimas!
Hei-de bombo rufá-la pompa de Pompeia
nos Funerais de Mim!
Hei-de Alfange-Mahoma
cantar Sodoma na Voz de Nero!
Hei-de ser Fuas sem Virgem do Milagre,
hei-de ser galope opiado e doido, opiado e doido…,
hei-de Átila, hei-de Nero, hei-de Eu,
cantar Átila, cantar Nero, cantar Eu!

Sou Narciso do Meu Ódio!
— O Meu Ódio é  Lanterna de Diógenes,
é cegueira de Diógenes,
é cegueira da Lanterna!
(O Meu Ódio tem tronos de Herodes,
histerismos de Cleópatra, perversões de Catarina!)
O Meu Ódio é Dilúvio Universal sem Arcas de Noé: só Dilúvio Universal,
e mais Universal ainda:
Sempre a crescer, sempre a subir...,
até apagar o Sol!

Sou trono de Abandono, mal-fadado.
nas iras dos bárbaros, meus Avós.
Oiço ainda da Berlinda d'Eu ser sina
gemidos vencidos de fracos,
ruídos famintos de saque,
ais distantes do Maldição eterna em Voz antiga!
Sou ruínas rasas, inocentes
Como as asas de rapinas afogadas.
Sou relíquias de mártires impotentes
sequestradas em antros do Vício.
Sou clausura de Santa professa,
Mãe exilada do Mal,
Hóstia d'Angústia no Claustro,
freira demente e donzela,
virtude sozinha da tela
em penitência do sexo!
Sou rasto espezinhado d'Invasores
que cruzaram o meu sangue, desvirgando-o.
Sou a Raiva atávica dos Távoras
o sangue bastardo de Nero,
o ódio do último instante
do condenado inocente!
A podenga do Limbo mordeu raivosa
as pernas nuas da minh'Alma sem baptismo...
Ah! que eu sinto, claramente, que nasci
de uma praga de ciúmes!
Eu sou as sete pragas sobre o Nilo
E a Alma dos Bórgías a penar!

Tu, que te dizes Homem!
Tu, que te alfaiatas em modas
e fazes cartazes dos fatos que vestes
pra que se não vejam as nódoas de baixo!
Tu qu'inventaste as Ciências e as Filosofias.
as Políticas, as Artes e as Leis.
e outros quebra-cabeças de sala
e outros dramas de grande espectáculo...
Tu, que aperfeiçoas a arte de matar...
Tu que descobriste o cabo da Boa-Esperança
e o Caminho-Marítimo da Índia
e as duas Grandes Américas,
e que levaste a chatice a estas terras
e que trouxeste de lá  mais Chatos pr’aqui
e qu'inda por cima cantaste estes Feitos...
Tu, qu'inventaste a chatice e o balão,
e que farto de te chateares no chão
te foste chatear no ar,
e qu'índa foste inventar submarinos
pra te chateares também por debaixo d' água...
Tu, que tens a mania das Invenções e das Descobertas
e que nunca descobriste que eras bruto,
e que nunca inventaste a maneira de o não seres...
Tu consegues ser cada vez  mais besta
e a este progresso chamas Civilização!

Vai vivendo a bestialidade na Noite dos meus olhos,
Vai inchando a tua ambição-toiro
'té que a barriga te rebente rã.
Serei Vitória um dia
— Hegemonia de Mim!
e tu nem derrota, nem morto, nem nada.
Século-dos-Séculos virá um dia
e a burguesia será escravatura
se for capaz de sair de cavalgadura!
Hei-de, entretanto, gastar a garganta
a insultar-te, ó besta!
Hei-de morder-te a ponta do rabo
e pôr-te as mãos no chão, no seu lugar!
Aí! Saltimbanco-bando de bandoleiros nefastos!
Quadrilheiros contrabandistas da Imbecilidade!
Aí! Espelho-aleijão do Sentimento,
macaco-intruja do Alma-realejo
Aí! maquerelle da Ignorância!
Silenceur do Génio-Tempestade!
Spleen da Indigestão!
Aí! Meia-tigela, travão das Ascensões!
Aí! Povo judeu dos Cristos mais que Cristo!
Ó burguesia! Ó ideal com i pequeno!
Ó ideal ricocó dos Mendes e Possidónios!
Ó cofre d'indigentes
cuja personalidade é a moral de todos!
Ó geral da mediocridade!
Ó claque ignóbil do vulgar, protagonista do normal!
Ó catitismo das lindezas d'estalo!
Aí! lucro do fácil,
cartilha-cabotina dos limitados, dos restringidos!
Aí! dique-impecilho do Canal da Luz!
Ó coito d' impotentes
a corar ao sol no riacho da Estupidez!
Aí! Zero-barómetro da Convicção!
bitola dos chega, dos basta, dos não quero mais!
Ai! plebeísmo aristocratizado no preço do panamá!
erudição de calça de xadrez!
competência de relógio d’oiro
e corrente com suores do Brasil,
e berloques de cornos de búfalo!
E eu vivo aqui desterrado e Job
da Vida-gémea d' Eu ser feliz!
E eu vivo aqui sepultado vivo
na Verdade de nunca ser Eu!
Sou apenas o Mendigo de Mim-próprio,
órfão da Virgem do meu sentir.
E como queres que eu faça fortuna
Se Deus, por escárnio, me deu inteligência,
e não tenho, sequer, irmãs bonitas
nem uma mãe que se venda para mim?
(Pesam quilos no Meu querer
as salas-de-espera de Mim.
Tu chegas sempre primeiro...
Eu volto sempre amanhã…
Agora vou esperar que morras.
Mas tu és tantos que não morres..,
Vou deixar d'esp'rar que morras
— Vou deixar d’esp’ar por mim!)
Ah! que eu sinto, claramente, que nasci
de uma praga de ciúmes!
Eu sou as sete pragas sobre o Nilo
e a alma dos Bórgias a penar!
E tu, também, vieille-roche, castelo medieval
fechado por dentro das tuas ruínas!
Fiel epitáfio das crónicas aduladoras!
E tu também, ó sangue azul antigo
que já nasceste co'a biografia feita!
Ó pajem loiro das cortesias-avozinhas!
O pergaminho amarelo-múmia
das grandes galas brancas das paradas
e das vitórias dos torneios-lotarias
com donzelas-glórias!
O resto de ceptros, fumo de cinzas!
Ó lavas frias do vulcão pirotécnico
com chuvas d'oiros e cabeleiras prateadas!
Ó estilhaços heráldicos de vitrais
despegados lentamente sobre o tanque do silêncio!
Ó cedro secular
debruçado no muro da Quinta sobre a estrada
a estorvar o caminho da Mala-posta!

E vós também, ó gentes de Pensamento,
ó Personalidades, ó Homens!
Artistas de todas as partes, cristãos sem pátria.
Cristos vencidos por serem só Um!
E vós, ó Génios da Expressão,
e vós também, ó Génios sem Voz!
Ó além-infinito sem regressos, sem nostalgias,
espectadores gratuitos do Drama-Imenso de Vós-Mesmos!
Profetas clandestinos
do Naufrágio de Vossos Destinos!

E vós também, teóricos-irmãos-gémeos
do meu sentir internacional!
Ó escravos da Independência!
Vós que não tendes prémios
por se ter passado a vez de os ganhardes,
e famintos e covardes
entreteis a fome em revoltas do Mau-Génio
na boémia da bomba e da  pólvora!

E tu também, ó Beleza Canalha
co'a sensibilidade manchada de vinho!
Ó  lírio bravo da Floresta-Ardida
à meia-porta da tua Miséria!
Ó fado da Má-Sina
com ilustrações a giz
e letra da Maldição!
Ó fera vadia das vielas açaimada na lei!
Ó  xale e lenço a resguardar a tísica!
Ó franzinas do fanico
co'a sífilis ao colo por essas esquinas!
Ó  nu d'aluguer
na meia-luz dos cortinados corridos!
Ó oratório da meretriz, a mendigar gorjetas
prà sua Senhora da Boa-Sorte!
Ó gentes tatuadas do calão!
Ó carro vendado da Penitenciária!

E tu também, ó Humilde ó Simples!
Enjaulados na vossa ignorância!
Ó pé descalço a calejar o cérebro!
Ó músculos da saúde de ter fechada a casa de pensar!
Ó alguidar de açorda fria
na ceia-fadiga da dor-candeia!
Ó esteiras duras pra dormir e fazer filhos!
Ó carretas da Voz do Operário
com gente de preto a pé e filarmónica atrás!
Ó campas rasas engrinaldadas,
com chapões de ferro e balões de vidro!
Ó bota rota de mendigo abandonada no pó do caminho!
Ó metamorfose-selvagem das feras da cidade!
Ó geração de bons ladrões crucificados na Estupidez!

Ó sanfona-saloia do fandango dos campinos!
Ó  pampilho das Lezírias inundadas de Cidade!
Ó trouxa d'aba larga da minha lavadeira,
ó rodopio azul da saia azul de Loures!

E vós varinas que sabeis a sal
e que trazeis o Mar no vosso avental,
as Naus da Fenícia ainda não voltaram?!
E vós também, ó moças da Província
que trazeis o verde dos campos
no vermelho das latas pintadas!
E tu também, ó mau gosto
co’a a saia de baixo a ver-se
e a falta d'educação!
Ó oiro de pechisbeque (esperteza dos ciganos)
a luzir no vermelho verdadeiro da blusa de chita!
Ó  tédio do domingo com botas novas
e música n'Avenida!
Ó santa Virgindade
a garantir a falta de lindeza!
Ó bilhete postal ilustrado
com aparições de beijos ao lado!
E vós ó gentes que tendes patrões,
autómatos do dono a funcionar barato!
Ó criadas novas chegadas de fora pra todo o serviço!
Ó costureiras mirradas,
emaranhadas na vossa dor!
Ó  reles caixeiros, pederastas do balcão,
a quem o patrão exige modos lisonjeiros
e maneiras agradáveis prós fregueses!
Ó Arsenal-ladista de ganga azul e coco socialista!
Ó saídas pôr-do-sol das Fábricas d'Agonia!
E vós também, ó toda a gente,
que todos tendes patrões!
E vós também, nojentos da Política
que explorais eleitos o Patriotismo!
Maquereaux da Pátria que vos pariu ingénuos
e vos amortalha infames!
E vós também, pindéricos jornalistas
que fazeis cócegas e outras coisas
à opinião pública!
E tu também roberto fardado:
Futrica-te espantalho engalonado
apeia-te das patas de barro,
larga a espada de matar
e põe o penacho no rabo!
Ralha-te mercenário asceta da Crueldade!
Espuma-te no chumbo da tua Valentia!
Agoniza-te Rilhafoles armado!
Desuniversidaliza-te da doutorança da chacina,
da ciência da matança!
Groom fardado da Negra.
pária da Velha!
Encaveira-te nas esporas luzidias de seres fera!
Despe-te da farda,
desenfia-te da Impostura, e põe-te nu, ao léu
que ficas desempregado!
Acouraça-te de senso,
vomita de vez o morticínio,
enche o pote de raciocínio,
aprende a ler corações,
que há muito mais que fazer
do que fazer revoluções!
Ruína com tuas próprias peças-colossos
as tuas próprias peças colossais,
que de 42 a 1 é meio-caminho andado!
Rebusca no seres selvagem,
no teu cofre do extermínio
o teu calibre máximo!
Põe ele parte a guilhotina,
dá férias ao garrote!
Não dês língua aos teus canhões,
nem ecos às pistolas,
nem vozes às espingardas!
— São coisas fora de moda!
Põe-te a fazer uma bomba
que seja uma bomba tamanha
que tenha dez raios da Terra.
Põe-lhe dentro a Europa inteira,
os dois pólos e as Américas,
a Palestina, a Grécia, o mapa
e, por favor, Portugal!
Acaba de vez com este planeta,
Faze-te Deus do Mundo em dar-lhe fim!
(Há tanta coisa que fazer, Meu Deus!
e esta  gente distraída em guerras!)

Eu  creio na transmigração das almas
por isto de Eu viver aqui em Portugal.
Mas, eu não me lembro o mal que fiz
durante o Meu avatar de burguês.
Oh! Se eu soubesse que o Inferno
não era como os padres mo diziam —
uma fornalha de nunca se morrer —,
mas sim um Jardim da Furopa
à beira-mar plantado...
Eu teria tido certamente mais juízo,
teria sido até o mártir São Sebastião!
E. ainda há quem faça propaganda disto:
a pátria onde Camões morreu de fome
e onde todos enchem a barriga de Camões!
Se ao menos isto tudo se passasse
numa Terra de mulheres bonitas!
Mas as mulheres portuguesas
são a minha impotência!

E tu, meu rotundo e pançudo-sanguessugo.
meu desacreditado burguês apinocado
da rua dos bacalhoeiros do meu ódio
co'a Felicidade em casa a servir aos dias!
Tu tens em teu favor a glória fácil
igual á de outros tantos teus pedaços
que andam desajuntados neste Mundo,
desde a invenção do mau cheiro,
a estorvar o asseio geral.
Quanto mais penso em ti, mais tenho Fé e creio
que Deus perdeu de vista o Adão de Barro
e com pena fez, outro de bosta de boi
por lhe faltar o barro e a inspiração!
E enquanto este Adão dormia
os raios roeram-lhe os miolos
e das caganitas nasceu a Eva burguesa!

Tu arreganhas os dentes quando te falam d’Orpheu
e pões-te a rir, tomo os pretos, sem saber porquê.
E chamas-me doido a Mim que sei e sinto o que Eu escrevi!
Tu que dizes que não percebes;
rir-te-ás de não perceberes?

Olha Hugo! Olha Zola! Cervantes e Camões,
e outros que não são nada por te cantarem a ti!
Olha Nietzsche! Wilde! Olha Rimbaud e Dowson!
Cesário, Antero e outros tantos mundos!
Beethoven, Wagner e outros tantos génios
que não fizeram nada,
que deixaram este mundo tal qual!
Olha os grandes o que são estragados por ti!
O teu máximo é ser besta e ter bigodes.
A questão é estar instalado.
Se te livras de burguês e sobes a talento, a génio,
a seres alguém,
o Bem que tu fizeres é um décimo de seres fera!
E de que serve o livro e a ciência
se a experiência da vida
é que faz compreender a ciência e o livro?
Antes não ter ciências!
Ames não ter livros!
Ames não ter Vida!

Eu queria cuspir-te a cara e os bigodes,
quando te vejo apalermado plas esquinas
a dizeres piadas ás meninas,
e a gostares das mulheres que não prestam
e a fazer-lhes a corte
e a apalpar-lhes o rabo,
esse  tão cantado belo cu.
que creio ser melhor o teu ideal
que a própria mulher de cu grande!
E casaste-te com Ela,
porque o teu ideal veio pegado a Ela,
e agora à brocha limpas a calva em pinga
â coca de cunhas pró Cunha, examinador
do teu décimo nono filho
dezanove vezes parvo!
(É o caso mais exemplar de constância e fidelidade
a tua história sexual co'a Felisberta.
desde o teu primogénito tanso
'té ao décimo nono idiota.)
'té no matrimónio te maldigo, infame cobridor!
Espécie de verme das lamas dos pântanos
que, de tanto se encharcar em gozos,
o seu corpo se atrofiou
e o sexo elefantizado foi todo o seu corpo!

Em toda a parte tu és o admirador
e em toda a parte a tua ignorância
tem a cumplicidade da incompetência
dos que te falam 'té dos lugares sagrados.
Sim! Eu sei que tu és juiz
e qu'inda ontem prometeste à tua amante,
despedindo-a num beijo de impotente,
a condenação dos réus que tivesses
se Ela faltasse â matinée da Boa-Hora!
Pulha! E és tu que do púlpito
dessa barriga d’Água da Curia
dás a ensinança de trote
aos teus dezanove filhos?!
Cocheiros, contai: dezanove!!!
Zut! bruto-parvo-nada
que Me roubaste tudo
'té Me roubaste a Vida
nem Me deixaste a Morte!
Zut! poeira-pingo-micróbio
que gemes pequeníssimos gemidos gigantes,
grávido de uma dor profeta colossal!
Zut! elefante-berloque parasita do não presta!
Zut! bugiganga-celulóide-bagatela!
Zut! besta!
Zut! bácoro!!
Zut! merda!!!

Em toda a parte o teu papel é admirar,
mas (caso inf’liz)
nunca acertas numa admiração feliz.
Lês os jornais e admiras tudo do princípio ao fim
e se por desgraça vem um dia sem jornais.
tens de ficar em casa nos chinelos
porque nesse dia, felizmente,
não tens opinião pra levares à rua.
Mas nos outros dias lá estás a discutir,
É que a Natureza é compensadora:
quem não tem dinheiro pra ir ao Coliseu
deve ter cá fora razões pra se rir.
Só te oiço dizeres dos outros
a inveja de seres como eles.
Nem ao menos, pobre fadista,
a veleidade de seres mais bruto?
Até os tens desejos são avaros
como as tuas unhas sujas e ratadas.
Ó  meu gordo pelintrão,
água-morna suja, broa do outro v'rão!
Os homens são na proporção dos seus desejos
e é por isso que eu tenho a concepção do Infinito…
Não te cora ser grande o teu avô
e tu apenas o seu neto, e tu apenas o seu esperma?
Não te dói Adão mais que tu?
Não te envergonha o teres antes de ti
outros muito maiores que tu
Jamais eu quereria vir a ser um dia
o que o maior de todos já o tivesse sido.
Eu quero sempre muito mais
e mais ainda muito pr'além-demais-Infinito...
Tu não sabes, meu bruto, que nós vivemos tão pouco
que ficamos sempre a meio-caminho do Desejo?

Em toda a parte o bicho se propaga,
em toda a parte o nada tem estalagem.
O meu suplício não é somente de seres meu patrício
ou o de ver-te meu semelhante:
tu, mesmo estrangeiro, és besta bastante.
Foi assim que te encontrei na Rússia
como vegetas aqui e por toda a parte,
e em todos os ofícios
e em todas as idades.
Lá suportei-te muito! Lá falavas russo
e eu só sabia o francês.
Mas na França, em Paris — a Grande capital,
apesar de fortificada,
foi assolada por esta espécie animal.
E andam plos cafés como as pessoas
e vestem-se na moda como elas,
e de tal maneira domésticos
que até vão às mulheres
e até vão aos domésticos.
Felizmente que na minha pátria.
a minha verdadeira mãe, a minha santa Irlanda,
apenas vivi uns anos d'infância
apenas me acodem longinquamente
as testas ensuoradas do priest da minha aldeia.
apenas ressuscitam sumidamente
as asfixias da tísica-mater,
apenas soam como revoltas
as pistolas do suicídio de meu pai,
apenas sinto infantilmente
no leito de uma morta
o gelo de umas unhas verdes,
um frio que não é do Norte,
um beijo grande como a vida de um tísico a morrer.
Ó Deus! Tu que que mos levaste é que sabias
o Ódio que eu lhes teria
se não tivessem ficado por ali!
Mas antes, mil vezes antes,
aturar os burgueses da My Ireland
que estes desta Terra
que parece a pátria deles!
Ó Horror! os burgueses de Portugal
têm de pior que os outros
0 serem portugueses!

A Terra vive desde que um dia
deixou de ser bola do ar
pra ser solar de burgueses.
Houve homens de talento, génios e imperadores.
Precisaram-se de ditadores,
que foram sempre os maiores.
Cansou-se o mundo a estudar
e os sábios morreram velhos
fartos de procurar remédios,
e nunca acharam o remédio de parar.
E'inda hoje eu vivo no século XX
a ver desfilar burgueses
trezentas e sessenta e cinco vezes ao ano,
e a saber que um dia
são vinte e quatro horas de chatice
e cada hora sessenta minutos de tédio
e cada minuto sessenta segundos de spleen!
Ora bolas para os sábios e pensadores!
Ora bolas pra todas as épocas e todas as idades!
Bolas prós homens ele todos os tempos,
e prà intrujice da Civilização e da Cultura!
Eu invejo-te a ti, ó coisa que não tem olhos de ver!
Eu queria como tu sentir a beleza de um almoço pontual
e a f’ licidade de um jantar cedinho
co'as bestas da família.
Eu queria gostar das revistas e das coisas que não prestam
porque são muitas mais que as boas
e enche-se o tempo mais!
Eu queria, como tu, sentir o bem-estar
que te dá a bestialidade!
Eu queria, como tu, viver enganado da vida e da mulher,
e sem o prazer de seres inteligente pessoalmente!
Eu queria, como tu, não saber que os outros não valem nada
pra os poder admirar como tu!
Eu queria que a Vida fosse tão divinal
como tu a supões, como tu a vives!
Eu invejo-te, ó pedaço de cortiça
a boiar à tona d’água, à mercê dos ventos,
sem nunca saber que fundo que é o Mar!

Olha para ti!
Se te não vês, concentra-te, procura-te!
Encontrarás primeiro o alfinete
que espetaste na dobra do casaco,
e depois não percas o sítio,
porque estás decerto ao pé do alfinete.
Espeta-te nele pra não te perderes de novo,
e agora observa-te!
Não te escarneças! Acomoda-te em sentido!
Não te odeies ainda qu' inda agora começaste!
Enjoa-te no teu nojo, mastodonte!
Indigesta-te na palha dessa tua civilização!
Desbesunta-te dessa vermência!
Destapa a tua decência, o teu imoral pudor!
Albarda-te em senso! estriba-te em Ser!
Limpa-te do cancro amarelo e podre
do lazareto de seres burro!
Desatrela-te do cérebro-carroça!
Desata o nó cego da vista!
Desilustra-te, descultiva- te, despole-te,
que mais vale ser animal que besta!
Deixa antes crescer os cornos que outros adornos da civilização
Queria-te antes antropófago porque comias os teus
— talvez o mundo fosse Mundo
e não a retrete que é!
Aí! excremento do Mal, avergonha-te
no infinitamente pequeno de ti com o teu papagaio:
Ele fala como tu e diz coisas que tu dizes
e se não sabe mais é por tua culpa, meu mandrião!
E tu, se não fossem os teus pais,
davas guinchos, meu saguim!
— Tu és o papagaio de teus pais!
Mas há mais, muito mais
que a tua ignorância-miopia te cega.
Empresto-te a minha Inteligência.
Toma!
Vê agora e não desmaies ainda!
Então eu não tinha razão?
Pra que me chamavas doido
quando eu m'enjoava de ti?
Ah! Já tens medo?
Porque te rias da vida
e ias ensuorar as vrilhas nos fauteuils das revistas
co' as pernas fogo de vistas
das coristas de petróleo?
Porque davas palmas aos compères e actorecos
pelintras e fantoches
antes do palco, no palco e depois do palco?
Ora dize-Me com franqueza:
Era por eles terem piada?
Então era por a não terem:
Ah! Era pra tu teres piada, meu bruto?!
Porque mandaste de castigo os teus filhos pràs Belas-Artes
quando ficaram mal na instrução primária?
Porque é que dizes a toda a gente que o teu filho idiota
estuda pra  poeta?
Porque te casaste com a tua mulher
se dormes mais vezes co' a tua criada.?
Porque bateste no teu filho quando a mestra
te contou as indecências na aula?
Não te lembras das que tu fizeste
Com a própria mestra de moral?
Ou queres tu ser decente —
tu, que tens dezanove filhos?
Porque choraste tanto quando te desonraram a filha?
Porque lhe quiseste matar o amante?
Não achas isto natural? não achas isto interessante?
Porque não choraste também pelo amante?...
Deixa! deixa! eu não te quero morto com medo de ti-próprio!
Eu quero-te vivo, muito vivo, a sofrer!
Não te despetes do alfinete!
Eu abro a janela pra não cheirar mal!
Galopa a tua bestialidade
na memória que eu faço dos teus coices,
cavalga o teu insecticismo na tua sela de D. Duarte!
Arreia-te de Bom-Senso um segundo! peço-te de joelhos.
Encabresta-te de Humanidade
e eu passo-te uma zoologia para as mãos
pra te inscreveres na divisão dos Mamíferos.
Mas anda primeiro ao jardim Zoológico!
Vem ver os chimpanzés!
Acorpanzila-te neles se te ousas!
Sagra-te de cu-azul a ver se eles te querem!
Lá porque aprendeste a andar de mãos no ar
não quer dizer que sejas mais chimpanzé que eles!
Larga a cidade masturbadora, febril,
rabo decepado de lagartixa,
labirinto cego de toupeiras,
raça de ignóbeis míopes, tísicos, tarados.
anémicos, cancerosos e arseniados!
Larga a cidade!
Larga a infâmia das ruas e dos boulevards.
esse vaivém cínico de bandidos mudos.
esse mexer esponjoso de carne viva,
esse ser-lesma nojento e macabro.
esse zig-zag de chicote auto-fustigante,
esse ar expirado e espiritista,
esse Inferno de Dante por cantar,
esse ruído de sol prostituído, impotente e velho,
esse silêncio pneumónico
de lua enxovalhada sem vir a lavadeira!
Larga a cidade e foge!
Larga a cidade!
Vence as lutas da família na vitória de a deixar.
Larga a casa, foge dela, larga tudo!
Nem te prendas com lágrimas que lágrimas são cadeias!
Larga a casa e verás — vai-se-te o Pesadelo!
A família é lastro: deita-a fora e vais ao céu!
Mas larga tudo primeiro, ouviste:
Larga tudo!
— Os outros, os sentimentos, os instintos,
e larga-te a ti também, a ti principalmente!
Larga tudo e vai para o campo
e larga o campo também, larga tudo!
— Põe-te a nascer outra vez!
Não queiras ter pai nem mãe,
não queiras ter outros nem Inteligência!
A Inteligência é o meu cancro:
eu sinto-A na cabeça com falta d’ar!
A Inteligência é a febre da Humanidade
e ninguém a sabe regular!
E já há inteligência a mais: pode parar por aqui!
Depois põe-te a viver sem cabeça,
vê só o que os olhos virem,
cheira os cheiros da Terra,
come o que a Terra der,
bebe dos rios e dos mares,
— Põe-te na natureza!
Ouve  a Terra, escuta-A.
A natureza à vontade  SÓ sabe rir cantar!
Depois põe-te à coca dos que nascem
e não os deixes nascer.
Vai depois pela noite nas sombras
e ronba a tod
Mas tu nem vives nem deixas viver os mais,
Crápula do Egoísmo, cartola d'espanta-pardais!
Mas hás-de pagar-Me a febre-rodopio
novelo emaranhado da minha dor!
Mas hás-de pagar-Me a febre-calafrio
abismo-descida de Eu não querer descer!
Hás-de pagar-Me o Absinto e a Morfina!
Hei-de ser cigana da tua sina!
Hei-de ser a bruxa do teu remorso!
Hei-de desforra-dor cantar-te a buena-dicha
em águas-fortes de Goya
e no cavalo de Tróia
e nos poemas de Poe!
Hei-de feiticeira a galope na vassoira
largar-te os meus lagartos e a Peçonha!
Hei-de vara mágica encantar-te arte de ganir!
Hei-de reconstruir em ti a escravatura negra!
Hei-de despir-te a pele a pouco e pouco
e depois na carne viva deitar fel,
e depois na carne viva semear vidros,
semear gumes,
lumes.
e tiros.
Hei-de gozar em ti as poses diabólicas
dos teatrais venenos trágicos do persa Zoroastro!
Hei-de rasgar-te as vrilhas com forquilhas e croques,
e desfraldar-te nas canelas mirradas
0 negro pendão dos piratas!
Hei-de corvo marinho beber-te os olhos vesgos!
Hei-de bóia do Destino ser em brasa
e tu náufrago das galés sem horizontes verdes!
E mais do que isto ainda, muito mais:
Hei-de ser a mulher que tu gostes,
hei-de ser Ela sem te dar atenção!

Ah! que eu sinto claramente que nasci
de uma praga de ciúmes.
Eu sou as sete pragas sobre o Nilo
e a Alma dos Bórgias a penar!


Lisboa, 14 de maio de 1915.


Almada Negreiros nasceu em S. Tomé e Príncipe no dia 7 de abril de 1893. Escritor e artista plástico, ajudou a fundar a revista Orpheu, veículo de introdução do modernismo em Portugal. Como escritor é autor de vasta obra inovadora que inclui prosa, poesia e teatro. Morreu em 15 de julho de 1970 em Lisboa. 


Publicado inicialmente no site da Casa Fernando Pessoa.

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Dois poemas de Adolfo Casais Monteiro




COMO SE FOSSE CADA VEZ UM VENENO NOVO

A tua morte é sempre nova em mim.
Não amadurece. Não tem fim.
Se ergo os olhos dum livro, de repente
tu morreste.
Acordo, e tu morreste.
Sempre, cada dia, cada instante,
a tua morte é nova em mim,
sempre impossível.

E assim, até à noite final
irás morrendo a cada instante
da vida que ficou fingindo vida.
Redescubro a tua morte como outros
redescobrem o amor,
porque em cada lugar, cada momento,
tu estás viva.

Viverei até à hora derradeira a tua morte.
Aos goles, lentos goles. Como se fosse
cada vez um veneno novo.
Não é tanto a saudade que dói, mas o remorso.
O remorso de todo o perdido em nossa vida,
coisas de antes e depois, coisas de nunca,
palavras mudas para sempre, um gesto
que sem remédio jamais teve destino,
o olhar que procura e nunca tem resposta.

O único presente verdadeiro é teres partido.

POETA

Poeta: uma criança em frente do papel.
Poema: os jogos inocentes,
Invenções do menino aborrecido e só.
A pena joga com palavras ocas,
Atira-as ao ar a ver se ganha ao jogo.
Os dados caem: são o poema. Ganhou.

Adolfo Casais Monteiro nasceu a 4 de julho de 1904 no Porto. Foi poeta, tradutor e crítico e prosador. Afastado das funções como professor e presos por diversas vezes por motivos políticos, exilou-se no Brasil. Foi diretor da revista Presença juntamente com José Régio e João Gaspar Simões; atuou ainda como colaborador com a revista de cinema Movimento, Sudoeste, Prisma, Variante e Litoral. Casais Monteiro morreu a 24 de julho de 1972 em São Paulo.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Arte poética

Gostaria de começar com uma pergunta
ou então com o simples facto
das rosas que daqui se vêem
entrarem no poema.

O que é então o poema?
um tecido de orifícios por onde entra o corpo
sentado à mesa e o modo
como as rosas me espreitam da janela?

Lá fora um jardineiro trabalha,
uma criança corre, uma gota de orvalho
acaba de evaporar-se e a humidade do ar
não entra no poema.

Amanhã estará murcha aquela rosa:
poderá escolher o epitáfio, a mão que a sepulte
e depois entrar num canteiro do poema,
enquanto um botão abre em verso livre
lá fora onde pulsa o rumor do dia.

O que são as rosas dentro e fora
do poema? Onde estou eu no verso em que
a criança se atirou ao chão cansada de correr?
E são horas do almoço do jardineiro!
Como se fosse indiferente a gota de orvalho
ter ou não entrado no poema!

________
BRANCO, Rosa Alice. Soletrar do dia - obra poética. Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2002.

domingo, 16 de janeiro de 2011

Plano

Trabalho o poema sobre uma hipótese: o amor
que se despeja no copo da vida, até meio, como se
o pudéssemos beber de um trago. No fundo,
como o vinho turvo, deixa um gosto amargo na
boca. Pergunto onde está a transparência do
vidro, a pureza do líquido inicial, a energia
de quem procura esvaziar a garrafa; e a resposta
são estes cacos que nos cortam as mãos, a mesa
da alma suja de restos, palavras espalhadas
num cansaço de sentidos. Volto, então, à primeira
hipótese. O amor. Mas sem o gastar de uma vez,
esperando que o tempo encha o copo até cima,
para que o possa erguer à luz do teu corpo
e veja, através dele, o teu rosto inteiro.


______________
Publicado inicialmente no site As tormentas.

sábado, 15 de janeiro de 2011

Cinco poemas de Pedro Tamen




SALTO À CORDA

O cordão que nos abre
aos acres ventos de humidade e sombra,
a luva dura nos abriga
ou é que nos enforca, nos afoga?
Mal saltamos à terra,
dela nos soltam como às aves
da espécie das galinhas.
Mas o fantasma duma linha cinza,
esse nos fecha os olhos
e diz: saltai à corda.
E é questão então a de saber
se temos pés azuis
ou sangue negro e goma
que nos cape. O pé direito sobe,
oh, que vitória, no verdadeiro ar.
Mas que invisível fio
o puxa e traz à pequenez do outro?
Que terror canaliza
cada comparação? De que margem,
de que maresia mesmo o cheiro nos agrada?
Que pátria e que dolores?

Que malfeição?
(Um aceno insular
habita o nosso olhar.
Uma pílula pink
dá-se ao dente que a trinque.
E que ternura é esta,
rosa de sal, giesta,
serra aberta de pinhas,
toque de campainhas?)


(WASHINGTON, D.C.)

Como um velho     como um cão
sentado num parque frente aos desportistas
ressentindo Pessoa     o Campos     como ele
como um velho     como um cão
sentado num parque ao sol
a não pensar em nada ou repensando
as coisas sem interesse e sem razão

Deixar correr o tempo sem memória
entre memoriais de tudo quanto houve
valendo-me assim do que os outros lembram
para nada lembrar     não tanto
como um velho sentado num parque:
como um cão.


DISCURSO DO PAPAGAIO DE PAPEL

para José de Guimarães

Do alto vos falo, onde
acrescento azul de muitas cores
ao outro azul que os olhos vossos vêem
quando outra coisa não há no chão que ver.
Do alto me assobio,
vertendo em vós silêncio alçado
por cima dos ventos nos buracos
que a vossa vida minam.
Do alto assumo ser
preso ao chão que me solta
e estar como um farol assinalando
a possível e vera liberdade.


LINNEU

A minha profissão é dar-lhes nomes.
Tal como o outro, passados os seis dias,
foi tudo achando bem, e disse
que era bom, e o chamou,
assim, no bom ou mau,
eu dou nomes à vida, digo
esta é a rosa dos ventos, digo
esta é a flor das águas, digo
esta é a planta do teu pé.

Apenas digo nomes: tudo existe
muito senhor de si,
tudo existe insolente,
independente.

Não era necessário eu ter nascido.
 

PALAVRAS MINHAS

Palavras que disseste e já não dizes,
palavras como um sol que me queimava,
olhos loucos de um vento que soprava
em olhos que eram meus, e mais felizes.

Palavras que disseste e que diziam
segredos que eram lentas madrugadas,
promessas imperfeitas, murmuradas
enquanto os nossos beijos permitiam.

Palavras que dizias, sem sentido,
sem as quereres, mas só porque eram elas
que traziam a calma das estrelas
à noite que assomava ao meu ouvido...

Palavras que não dizes, nem são tuas,
que morreram, que em ti já não existem
– que são minhas, só minhas, pois persistem
na memória que arrasto pelas ruas.
 
Pedro Tamen nasceu em Lisboa, onde passou toda sua vida, a 1.º de dezembro de 1934. Estudou Direito na Universidade de Lisboa; foi editor na Moraes, casa onde fez sua estreia literária; tradutor de autores como Gabriel García Márquez, Reinaldo Arenas, Gustave Flaubert, Marcel Proust. Na literatura, se destaca como poeta com Poemas para todos os dias (1956), O sangue, a água e o vinho (1958), Escrito de memória e Os quarenta e dois sonetos (1973), Princípio de sol (1982), Guião de Caronte (1997), Memória indescritível (2000), Um teatro às escuras (2011) e Rua de nenhures (2013). Vários desses títulos permitiram-no acessar alguns dos importantes prêmios em seu país, como Prêmio D. Dinis (1981) e o Prêmio da Crítica da Associação Portuguesa de Críticos Literários (1991). Pedro Tamen morreu no dia 29 de julho de 2021.
 

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Cinco poemas de Charles Baudelaire



A musa venal

Ó musa de minha alma, amante dos palácios,
Terás, quando janeiro desatar seus ventos,
No tédio negro dos crepúsculos nevoentos,
Uma brasa que esquente os teus dois pés violáceos?

Aquecerás teus níveos ombros sonolentos
Na luz noturna que os postigos deixam coar?
Sem um níquel na bolsa e seco o paladar,
Colherás o ouro dos cerúleos firmamentos?

Tens que, para ganhar o pão de cada dia,
Esse turíbulo agitar na sacristia,
Entoar esses Te Deum que nada têm de novo,

Ou, bufão em jejum, exibir teus encantos
E teu riso molhado de invisíveis prantos
Para desopilar o fígado do povo.


Elevação

Por sobre os pantanais, os vales orvalhados,
As montanhas, os bosques, as nuvens, os mares,
Para além do ígneo sol e do éter que há nos ares,
Para além dos confins dos tetos estrelados,

Flutuas, meu espírito, ágil peregrino,
E, como um nadador que nas águas afunda,
Sulcas alegremente a imensidão profunda
Com um lascivo e fluido gozo masculino.

Vai mais, vai mais além do lodo repelente,
Vai te purificar onde o ar se faz mais fino,
E bebe, qual licor translúcido e divino,
O puro fogo que enche o espaço transparente.

Depois do tédio e dos desgostos e das penas
Que gravam com seu peso a vida dolorosa,
Feliz daquele a quem uma asa vigorosa
Pode lançar às várzeas claras e serenas;

Aquele que, ao pensar, qual pássaro veloz,
De manhã rumo aos céus liberto se distende,
Que paira sobre a vida e sem esforço entende
A linguagem da flor e das coisas sem voz!


O convite à viagem

Minha doce irmã,
Pensa na manhã
Em que iremos, numa viagem,
Amar a valer,
Amar e morrer
No país que é a tua imagem!
Os sóis orvalhados
Desses céus nublados
Para mim guardam o encanto
Misterioso e cruel
De teu olho infiel
Brilhando através do pranto.

Lá, tudo é paz e rigor,
Luxo, beleza e langor.

Os móveis polidos,
Pelos tempos idos,
Decorariam o ambiente;
As mais raras flores
Misturando odores
A um âmbar fluido e envolvente,
Tetos inauditos,
Cristais infinitos,
Toda uma pompa oriental,
Tudo aí à alma
Falaria em calma
Seu doce idioma natal.

Lá, tudo é paz e rigor,
Luxo, beleza e langor.

Vê sobre os canais
Dormir junto aos cais
Barcos de humor vagabundo;
É para atender
Teu menor prazer
Que eles vêm do fim do mundo.
– Os sangüíneos poentes
Banham as vertentes,
Os canis, toda a cidade,
E em seu ouro os tece;
O mundo adormece
Na tépida luz que o invade.

Lá, tudo é paz e rigor,
Luxo, beleza e langor.


Os gatos

Os amantes febris e os sábios solitários
Amam de modo igual, na idade da razão,
Os doces e orgulhosos gatos da mansão,
Que como eles têm frio e cismam sedentários.

Amigos da volúpia e devotos da ciência,
Buscam eles o horror da treva e dos mistérios;
Tomara-os Érebo por seus corcéis funéreos,
Se a submissão pudera opor-lhes à insolência.

Sonhando eles assumem a nobre atitude
Da esfinge que no além se funde à infinitude,
Como ao sabor de um sonho que jamais
                                        termina;

Os rins em mágicas fagulhas se distendem,
E partículas de ouro, como areia fina,
Suas graves pupilas vagamente acendem.


A uma passante

A rua em torno era um frenético alarido.
Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa,
Uma mulher passou, com sua mão suntuosa
Erguendo e sacudindo a barra do vestido.

Pernas de estátua, era-lhe a imagem nobre e fina.
Qual bizarro basbaque, afoito eu lhe bebia
No olhar, céu lívido onde aflora a ventania,
A doçura que envolve e o prazer que assassina.

Que luz... e a noite após! – Efêmera beldade
Cujos olhos me fazem nascer outra vez,
Não mais hei de te ver senão na eternidade?

Longe daqui! tarde demais! "nunca" talvez!
Pois de ti já me fui, de mim tu já fugiste,
Tu que eu teria amado, ó tu que bem o viste!

Charles Baudelaire nasceu a 9 de abril de 1821 em Paris. Autor de uma das obras fundamentais da poesia ocidental, o autor se tornou um dos expoentes da literatura simbolista e uma das influências de toda uma geração de modernistas. Sua Magnum opus, As flores do mal. Baudelaire morreu a 31 de agosto de 1867.



* Tradução de Ivan Junqueira.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Três poemas de Lúcio Cardoso




Amanhecer

A noite está dentro de mim,
girando no meu sangue.
Sinto latejar na minha boca,
as pupilas cegas da lua.
Sinto as estrelas, como dedos
movendo a solidão em que caminho.
Logo o perfume da poesia
sobe aos meus olhos trêmulos, cerrados,
ouço a música das coisas que acordam
sobre o corpo negro da terra
e a voz do vento distante
e a voz das palmeiras abertas em raios
e a voz dos rios viajantes.

E a noite está dentro de mim.
Como um pássaro,
meu sonho ergue as asas no coração da sombra.
Ouço a música das flores que tombam,
o tropel das nuvens que passam
e a minha voz que se eleva
como uma prece na planície solitária.

Então sinto a noite fugindo de mim,
sinto a noite fugindo dos homens
e o sol que avança na garupa do mar
e as nuvens curvas que enchem o céu
como grandes corcéis de fogo cor-de-rosa
desaparecendo sugadas pela treva.


Em tom de rosa

Rasga, tira, teu suavíssimo esplendor.
Rasga, insone, o teu veludo cor de sândalo,
antes que a dura pauta enfureça
ao chegar do teu calor.
Rasga. Antes que seja carne
a tua ilusória memória
de inocente.
Rasga o teu odor,
fende tua ilharga, cera e sangue,
destrói - oh destrói a alma que te habita.
Que viver perdura,
e que existe que não sofra
a ânsia de morrer?
Destrói, rosa, teu próprio ser:
configure-se branco, o que é cor -
e antes do amanhecer
sobrevenha em cinza:
todo rosa não é mais do
que uma invenção
do vento.

O exilado

Quem me dera ser o que fui
antes de ser eu mesmo;
imortal paciência, a de esperar
ser antes de mim o ser talvez
voltado a uma primícia de verão.
O verão não há. Sucedem tempos
onde sem consolo tomba a neve.
Imagino outro país, brasil
ardendo em chama de cristal.
Impossível país, céu vencido
e olhado através deste ser ausente.
Sou eu, é ele? Que importa:
se existe o país, eu não existo
e neste afã de relembrar
identifico o ser e o não ser -
não sou - sendo o ser
deste país que sou.