sábado, 8 de janeiro de 2011

Cinco poemas de Alberto da Cunha Melo


CASA VAZIA

Poema nenhum, nunca mais,
será um acontecimento:
escrevemos cada vez mais
para um mundo cada vez menos,

para esse público dos ermos
composto apenas de nós mesmos,

uns joões batistas a pregar
para as dobras de suas túnicas
seu deserto particular,

ou cães latindo, noite e dia,
dentro de uma casa vazia.


FILHOS DO NORTE

Durante toda falsa infância,
caíam dos céus chuvas demais
na terra inteira e, agora, quando
deve chover, não chove mais;

meninos sujos, nessa rua,
brincávamos com a lama crua;

quando anoitecia de vez,
dentro do copo de café
molhávamos o pão francês;

lá fora um deus, por trás de um muro,
devorava nosso futuro.


ESTAÇÃO TERMINAL

O céu parece revestido
de uma camada de cimento:
deixo as marquises porque sei
que esta chuva não passará.

Se esperasse um tempo de paz,
nem meu túmulo construiria.
Começo e recomeço a casa
de papelão em pleno inverno.

Um plano, um programa de ação
debaixo de uma árvore em prantos,
e voltar à primeira página
branca e ferida pela pressa.

A poesia já não seduz
a quem mais forte ultrapassou-a,
libertando um pouco de vida
e luz, da corrente de estrelas.

Toda renúncia nos convida
a recomeçar outra busca,
porque algo a inocência perdeu
no chão, para arrastar-se assim.


CONDENSAR/CONCERTAR

A vida aqui fala bem claro,
mas sem a eloquência da lágrima;
como a renda, como a poesia,
é uma linguagem concentrada;

é cloro na água da piscina
da cobertura, lá em cima,

onde Clara, uma pós-donzela,
posa nua para o helicóptero
que faz evoluções sobre ela;

e a luz do sol, como toalha,
só existe para enxugá-la.


RELÓGIO DE PONTO

Tudo que levamos a sério
torna-se amargo. Assim os jogos,
a poesia, todos os pássaros,
mais do que tudo: todo o amor.

De quando em quando faltaremos
a algum compromisso na Terra,
e atravessaremos os córregos
cheios de areia, após as chuvas.

Se alguma súbita alegria
retardar o nosso regresso,
um inesperado companheiro
marcará o nosso cartão.

Tudo que levamos a sério
torna-se amargo. Assim as faixas
da vitória, a própria vitória,
mais do que tudo: o próprio Céu.



De quando em quando faltaremos
a algum compromisso na Terra,
e lavaremos as pupilas
cegas com o verniz das estrelas.


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