quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Dois poemas de Hilda Machado



MISCASTING

So you think salvation lies in pretending?
Paul Bowles


estou entregando o cargo
onde é que assino
retorno outros pertences
um pavilhão em ruínas
o glorioso crepúsculo na praia
e a personagem de mulher
mais Julieta que Justine
adeus ardor
adeus afrontas
estou entregando o cargo
onde é que assino

há 77 dias deixei na portaria
o remo de cativo nas galés de Argélia
uma garrafa de vodka vazia
cinco meses de luxúria
despido o luto
na esquina
um ovo
feliz ano novo
bem vindo outro
como é que abre esse champanhe
como se ri

mas o cavaleiro de espadas voltou a galope
armou a sua armadilha
cisco no olho da caolha
a sua vitória de Pirro
cidades fortificadas
mil torres
escaladas por memórias inimigas
eu, a amada
eu, a sábia
eu, a traída

agora finalmente estou renunciando ao pacto
rasgo o contrato
devolvo a fita
me vendeu gato por lebre
paródia por filme francês
a atriz coadjuvante é uma canastra
a cena da queda é o mesmo castelo de cartas
o herói chega dizendo ter perdido a chave
a barba de mais de três dias

vim devolver o homem
assino onde
o peito desse cavaleiro não é de aço
sua armadura é um galão de tinta inútil
similar paraguaio
fraco abusado
soufflé falhado e palavra fútil

seu peito de cavalheiro
é porta sem campainha
telefone que não responde
só tropeça em velhos recados
positivo
câmbio
não adianta insistir
onde não há ninguém em casa

os joelhos ainda esfolados
lambendo os dedos
procuro por compressas frias
oh céu brilhante do exílio
que terra
que tribo
produziu o teatrinho Troll colado à minha boca
onde é que fica essa tomada
onde desliga


CABO FRIO

Nuvens passageiras
miragens peregrinas enfunadas pelo Nordeste
queda de folhagem
muda retórica

O Sudoeste dá rédeas à repulsa
nuvens erráticas devoram rivais
Orfeu despedaçado por bacantes drapejadas de vapor

Em dia sem vento
a falta de engenho permite
purezas de sabão e macieiras em flor
talco no chão do banheiro
sorvete marca Aristófanes

Mas quase sempre ele pisa seus véus

Duas mãos de cinza desmaiado
sobre fundo esmaltado é perícia
renda
luxo magnífico e corrupto
realização elegante de algum mandarim
leque de plumas de avestruz tintas de rosa
levemente agitado diante da luz


* Poemas publicados na revista Inimigo Rumor, n.16.

domingo, 13 de fevereiro de 2011

Psicose

 
 
Não vou sair daqui.
Nada de obrigações.
Hoje sou clandestino,
sou evadido das horas
e  dos caminhos de tudo.


Levantei-me cedo
para ver nascer
e morrer o sol
no fundo do horizonte.


Música no violino do velho
(que é realmente cego, por acaso).

Hoje não tenho pressa para nada
desta vida  ou sequer da outra.
Vou deixar de olhar para o relógio
(de resto anda sempre por acertar)
e vou perder todos os comboios
certos ou mesmo atrasados.
Vou ficar aqui a apanhar
este solzinho de Outono acolhedor.

Tombam folhas da música do violino.

Passam pessoas apressadas
a cruzar em todos os sentidos,
com direcções únicas e certas
ou erradas (nada tenho com isso).
Passam operários sujos, costureiras,
corretores de bolsa, directores,
senhores obesos de automóvel,
senhoras muito bem vestidas,
senhoras muito bem senhoras,
marçanos, vendedores de jornais,
pessoas honestas, pessoas traidoras
(nada têm que dar-me conta dos seus actos),

          pessoas pessoas pessoas
          numa parada de gestos,
          numa parada de fatos,
          numa parada de sentimentos,
          numa parada de verdades,
          numa parada de mentiras,
          numa parada de sonhos,
          numa parada de certezas,

para o grande espectáculo do teatro quotidiano
com artistas certos nos seus verdadeiros papéis
certos ou errados — isso é lá com eles
(hoje fechei o coração ao sentimentalismo).


Música agitada no violino do velho
Hoje não! nem sequer o almoço.
Que o ponham na mesa e fiquem à espera
da minha presença física.
Que telefonem para a polícia,
para os hospitais, para a Morgue
a perguntar por mim.
(Nunca ninguém perguntou por mim,
excepto eu, já se vê).
Que dêem todos os meus sinais
(nunca serão completos — serão mesmo falsos,
posso garantir.
Além disso não trago a gravata branca.
Deitei-a fora e abri o colarinho.
não me podem descobrir pela coleira).


Todos vão para suas casas:
costureiras, operários,
co1egiais, professores,
empregados, marçanos,
«manicures», polícias, toda a gente
                                         toda a gente
                                         toda a gente
                                         — e até os cães vadios
No doce regresso ao lar.

Música de família no violino do velho.

Saem e entram a barra grandes navios.
Cai a noite e vêm vultos.
E eu uma sombra
identificada com a noite sem lua.

Não irei sequer bater à porta dela
(por que hei-de  ser sempre eu a ir ter com ela?).
Que se pinte, solte os cabelos,
vista o «robe de chambre» cor de rosa,
transparente, decotado e sensual.
Ponha no corpo esbelto e moreno
perfumes de estranhos orientes
e aguarde que eu chegue amante
e desespere e chore, se quiser.
Hoje fico indiferente à sua carne.

Música de amor no violino do velho.

Não! ainda não vou para casa.
Vou assistir agora a um grande espectáculo
de sombras do outro mundo,
ao grande espectáculo sem encenação.
Há-de passar Rogogine
com Natacha Fílipovna morta nos seus braços.
Há-de passar Nero com incêndios nos olhos,
Otelo louco de vingança,
Hamlet declamando uma única frase:
                        «To be or not to be»,
Ofélia cantando e morrendo flor,
Fernando Pessoa lendo em voz sonolenta
os seus «Thirty five sonnets»,
Sá-Carneiro na sua última casaca,
Voltaire em sinistras gargalhadas,
Fausto montado numa vassoura de 2 cornos,
D. Quixote correndo atrás dos moinhos de vento,
Cleópatra com uma víbora nos seios,
Edgar Pöe e um corvo sinistro,
Byron de braço dado em 1800
com a linda Margaret Parker,
Algernon Swinburne todo vestido de fogo,
Lorca entre «la guardia civil»,
Beethoven cheio de música nos cabelos,
Castro Alves e uma multidão de escravos,
Dante seguindo Beatrice entre nuvens.
Hão-de passar todos os grandes amorosos,
todos os grandes aventureiros,
todos os grandes loucos
para a grande peça trágico-cómico-dramática,
vestidos de todas as cores,
falando todas as línguas,
tocando todas as músicas
─ numa  confusão de loucura.


Música triste e alegre,
lenta e vertiginosa no violino do velho.


E depois, oh! depois, sim!
levantar-me-ei daqui.
Irei bater a todas as portas,
chamarei toda a gente para a rua
(ninguém ficará na cama:
nem velhos, nem coxos, nem cegos.
Ninguém!)
e farei as apresentações na língua de Rimbaud:
Monsieur Castro — Monsieur Goethe.
Monsieur Silva —  Monsieur Dostojevski.
Comment? Vous ne vous comprenez pas?
Par1ez fort, plus fort! Críez! Criez!

Ah! hei-de místurá-Ios todos, todos, todos
— numa confusão diabólica.
Chamarei todos os velhos dos violinos
para o estranho concerto sem partitura.

E depois, oh! depois, sim!
vou para casa e vou pôr-me à janela
para anunciar o primeiro e o último espectáculo
da peça sem autor,
o grande espectáculo das marionettes humanas.

E haverá música
                 músíca
                 músíca
                 música
no violino do tempo.


Quebrarei a ampulheta do tempo!
 
 
_____________
CARVALHO, Mendes. Satírica. Lisboa: Círculo de Leitores, 1974.
 

sábado, 12 de fevereiro de 2011

O dever



O dever
Do escritor, do poeta
Não é encerrar-se cobardementre num texto
Num livro, numa revista de onde nunca sairá,
Pelo contrário, é vir
Para o exterior
E sacudir,
Atacar
O espírito público.
Ou então para que serve?
Para que nasceu?



____________
Tradução de Soledade Santos. Publicado inicialmente na Revista Agio.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Dois poemas de Pedro Nava



EDUCAÇÃO SENTIMENTAL

Para Alberto Deodato

Mariquita fechou o Escrich
e teve vontade dum espanhol
com seu punhal
para matá-la...

* Revista de antropofagia, São Paulo, ano 1, n.9


SE EU SOUBESSE BRINCAR

Si eu tivesse seis anos si soubesse brincar
pedia ao Menino Jesus que viesse me dar
seus brinquedos coloridos

E ele dava mesmo dava tudo
dava brinquedos variados de todas as cores
brinquedos sortidos
dava bolas lustrosas pra mim soltar de noite e
mandar todas pro céu com minha reza

Dava bolas dava quitanda dava balas
e havia de ficar melado, todo doce de minha baba.

E dava homenzinhos, arvinhas, bichinhos, casinhas e
em minhas mãos ingênuas eu tirava o mundo novinho,
cheiroso de cola e verniz, das caixas nurembergue
pra recomeçar deslumbrando a brincadeira da
vida

O Menino Jesus dava tudo si eu fosse menino
si soubesse brincar pra brincar com ele.

* ANDRADE, Mário de. Correspondente contumaz: cartas a Pedro Nava, 1925/1944


segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Não é o coração




Não é o coração
mas esta carne
em seu rumor.

Não é o coração
mas teu silêncio
de intenso furor.

Não é o coração
mas as mãos
sem corpo, vazias.
Na grave melodia
de um instante
tu e eu
em desequilíbrio
na infame
consistência
de um absoluto
obstáculo.


domingo, 6 de fevereiro de 2011

À beira das salinas os homens declinam




À beira das salinas os homens declinam,
as cabeças como cometas fulminantes.

De longe a longe vêm os filhos,

trazem a solidão como um metal aceso nas costas
trazem um enxame de dardos.
E a memória é um pulso atravessado.

Quando partem fecham atrás de si as portas,

e os homens voltam a sentar-se sobre as estacas
e brilham.



Jorge Melícias
In A Luz nos Pulmões

sábado, 5 de fevereiro de 2011




Me passa a máscara: vou desfilar
De plebe; a rica escória do salão,
Em paetês e plumas de pavão,
Não há de me tomar por um de lá!

Maus modos e o baixíssimo calão
Me passa, eu vou vestir-me de gentalha!
Renego cada sílaba que saia
Da boca de um janota de plantão.

Assim, eu vou pulando o carnaval
Em meio a reis, valetes e rainhas,
Cumprimentando apenas o arlequim.

E todos seguem me lascando o pau.
Mas só retiro a máscara do rosto,
Quando acabar a farsa de mau gosto.


.................
Poema publicado no Portal Cronópios.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Três poemas de Teixeira de Pascoaes

 


ABISMOS
 
Por abismos sem fim, vou caminhando...
E o mais profundo abismo é o alto céu.
E que vertigens sempre sinto, quando
Me inclino sobre a luz que amanheceu!
 
É um abismo a oração que vou rezando.
É um mar sem fundo a flor que renasceu...
Nas palavras que vou pronunciando,
Cada ideia é tão alta como o céu!
 
Sobre abismos, caminho dia a dia...
Das suas negras trevas se irradia
Uma outra escuridão ainda maior...
 
Que a mim me diz, nas horas em que cismo,
Que é um abismo junto d’outro abismo,
Meu coração ao pé do seu amor!...
 
 
A ALMA
 
A alma não é mais
Que transcendente imagem
De tudo quanto abrange
A luz do nosso olhar.
É o retrato perfeito
E fiel duma paisagem:
Tem uma serra ao fundo, e, depois dela, o mar.
 
 
POETA
 
Quando a primeira lágrima aflorou
Nos meus olhos, divina claridade
A minha pátria aldeia alumiou
Duma luz triste, que era já saudade.
 
Humildes, pobres cousas, como eu sou
Dor acesa na vossa escuridade...
Sou, em futuro, o tempo que passou —
Em num, o antigo tempo é nova idade.
 
Sou fraga da montanha, névoa astral,
Quimérica figura matinal,
Imagem de alma em terra modelada.
 
Sou o homem de si mesmo fugitivo;
Fantasma a delirar, mistério vivo,
A loucura de Deus, o sonho e o nada.
 
Teixeira de Pascoaes nasceu a 2 de novembro de 1877, em Amarante. Sua trajetória pela literatura inicia com a publicação de Embriões, em 1895, uma estreia precoce mas que marcaria a poesia portuguesa do seu tempo. O livro, junto com Belo I e Belo II (editados em 1896 e 1897, respectivamente quando já era estudante de Direito em Coimbra), Sempre (1898) e Terra proibida (1899) são essenciais na composição de sua poética. Além de poesia, também escreveu prosa, destacando-se as biografias romanceadas de Napoleão, Camilo Castelo Branco, São Paulo, São Jerônimo e Santo Agostinho, além de ensaios, conferências e novelas. Um dos nomes da chamada Renascença Portuguesa, é de sua iniciativa com Leonardo Coimbra e Jaime Cortesão, a revista A águia. Pascoaes morreu a 14 de dezembro de 1952 em Gatão.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Um poema de Castro Alves



O NAVIO NEGREIRO


I
'Stamos em pleno mar... Doudo no espaço
Brinca o luar — dourada borboleta;
E as vagas após ele correm... cansam
Como turba de infantes inquieta. 

'Stamos em pleno mar... Do firmamento
Os astros saltam como espumas de ouro...
O mar em troca acende as ardentias,
— Constelações do líquido tesouro... 

'Stamos em pleno mar... Dois infinitos
Ali se estreitam num abraço insano,
Azuis, dourados, plácidos, sublimes...
Qual dos dous é o céu? qual o oceano?... 

'Stamos em pleno mar... Abrindo as velas
Ao quente arfar das virações marinhas,
Veleiro brigue corre à flor dos mares,
Como roçam na vaga as andorinhas... 

Donde vem? onde vai?  Das naus errantes
Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço?
Neste saara os corcéis o pó levantam, 
Galopam, voam, mas não deixam traço. 

Bem feliz quem ali pode nest'hora
Sentir deste painel a majestade!
Embaixo — o mar em cima — o firmamento...
E no mar e no céu — a imensidade! 

Oh! que doce harmonia traz-me a brisa!
Que música suave ao longe soa!
Meu Deus! como é sublime um canto ardente
Pelas vagas sem fim boiando à toa! 

Homens do mar! ó rudes marinheiros,
Tostados pelo sol dos quatro mundos!
Crianças que a procela acalentara
No berço destes pélagos profundos! 

Esperai! esperai! deixai que eu beba
Esta selvagem, livre poesia
Orquestra — é o mar, que ruge pela proa,
E o vento, que nas cordas assobia...
.......................................................... 
Por que foges assim, barco ligeiro?
Por que foges do pávido poeta?
Oh! quem me dera acompanhar-te a esteira
Que semelha no mar — doudo cometa! 

Albatroz!  Albatroz! águia do oceano,
Tu que dormes das nuvens entre as gazas,
Sacode as penas, Leviathan do espaço,
Albatroz!  Albatroz! dá-me estas asas.
 
II
    
Que importa do nauta o berço,
Donde é filho, qual seu lar?
Ama a cadência do verso
Que lhe ensina o velho mar!
Cantai! que a morte é divina!
Resvala o brigue à bolina
Como golfinho veloz.
Presa ao mastro da mezena
Saudosa bandeira acena
As vagas que deixa após. 

Do Espanhol as cantilenas
Requebradas de langor,
Lembram as moças morenas,
As andaluzas em flor!
Da Itália o filho indolente
Canta Veneza dormente,
— Terra de amor e traição,
Ou do golfo no regaço
Relembra os versos de Tasso,
Junto às lavas do vulcão! 

O Inglês — marinheiro frio,
Que ao nascer no mar se achou,
(Porque a Inglaterra é um navio,
Que Deus na Mancha ancorou),
Rijo entoa pátrias glórias,
Lembrando, orgulhoso, histórias
De Nelson e de Aboukir.. .
O Francês — predestinado —
Canta os louros do passado
E os loureiros do porvir! 

Os marinheiros Helenos,
Que a vaga jônia criou,
Belos piratas morenos
Do mar que Ulisses cortou,
Homens que Fídias talhara,
Vão cantando em noite clara
Versos que Homero gemeu ...
Nautas de todas as plagas,
Vós sabeis achar nas vagas
As melodias do céu! ...
 
III
    
Desce do espaço imenso, ó águia do oceano!
Desce mais ... inda mais... não pode olhar humano
Como o teu mergulhar no brigue voador!
Mas que vejo eu aí... Que quadro d'amarguras!
É canto funeral! ... Que tétricas figuras! ...
Que cena infame e vil... Meu Deus! Meu Deus! Que horror!
 
IV
     
Era um sonho dantesco... o tombadilho 
Que das luzernas avermelha o brilho.
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros... estalar de açoite... 
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar...

Negras mulheres, suspendendo às tetas 
Magras crianças, cujas bocas pretas 
Rega o sangue das mães: 
Outras moças, mas nuas e espantadas, 
No turbilhão de espectros arrastadas,
Em ânsia e mágoa vãs! 

E ri-se a orquestra irônica, estridente...
E da ronda fantástica a serpente 
Faz doudas espirais ...
Se o velho arqueja, se no chão resvala, 
Ouvem-se gritos... o chicote estala.
E voam mais e mais... 

Presa nos elos de uma só cadeia, 
A multidão faminta cambaleia,
E chora e dança ali!
Um de raiva delira, outro enlouquece, 
Outro, que martírios embrutece,
Cantando, geme e ri! 

No entanto o capitão manda a manobra,
E após fitando o céu que se desdobra,
Tão puro sobre o mar,
Diz do fumo entre os densos nevoeiros:
"Vibrai rijo o chicote, marinheiros!
Fazei-os mais dançar!..." 

E ri-se a orquestra irônica, estridente. . .
E da ronda fantástica a serpente
          Faz doudas espirais...
Qual um sonho dantesco as sombras voam!...
Gritos, ais, maldições, preces ressoam!
          E ri-se Satanás!... 
 
V
    
Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura... se é verdade
Tanto horror perante os céus?!
Ó mar, por que não apagas
Co'a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?...
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão! 

Quem são estes desgraçados
Que não encontram em vós
Mais que o rir calmo da turba
Que excita a fúria do algoz?
Quem são?   Se a estrela se cala,
Se a vaga à pressa resvala
Como um cúmplice fugaz,
Perante a noite confusa...
Dize-o tu, severa Musa,
Musa libérrima, audaz!... 

São os filhos do deserto,
Onde a terra esposa a luz.
Onde vive em campo aberto
A tribo dos homens nus...
São os guerreiros ousados
Que com os tigres mosqueados
Combatem na solidão.
Ontem simples, fortes, bravos.
Hoje míseros escravos,
Sem luz, sem ar, sem razão. . . 

São mulheres desgraçadas,
Como Agar o foi também.
Que sedentas, alquebradas,
De longe... bem longe vêm...
Trazendo com tíbios passos,
Filhos e algemas nos braços,
N'alma — lágrimas e fel...
Como Agar sofrendo tanto,
Que nem o leite de pranto
Têm que dar para Ismael. 

Lá nas areias infindas,
Das palmeiras no país,
Nasceram crianças lindas,
Viveram moças gentis...
Passa um dia a caravana,
Quando a virgem na cabana
Cisma da noite nos véus ...
... Adeus, ó choça do monte,
... Adeus, palmeiras da fonte!...
... Adeus, amores... adeus!... 

Depois, o areal extenso...
Depois, o oceano de pó.
Depois no horizonte imenso
Desertos... desertos só...
E a fome, o cansaço, a sede...
Ai! quanto infeliz que cede,
E cai p'ra não mais s'erguer!...
Vaga um lugar na cadeia,
Mas o chacal sobre a areia
Acha um corpo que roer. 

Ontem a Serra Leoa,
A guerra, a caça ao leão,
O sono dormido à toa
Sob as tendas d'amplidão!
Hoje... o porão negro, fundo,
Infecto, apertado, imundo,
Tendo a peste por jaguar...
E o sono sempre cortado
Pelo arranco de um finado,
E o baque de um corpo ao mar... 

Ontem plena liberdade,
A vontade por poder...
Hoje... cúm'lo de maldade,
Nem são livres p'ra morrer. .
Prende-os a mesma corrente
— Férrea, lúgubre serpente —
Nas roscas da escravidão.
E assim zombando da morte,
Dança a lúgubre coorte
Ao som do açoute... Irrisão!... 

Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus,
Se eu deliro... ou se é verdade
Tanto horror perante os céus?!...
Ó mar, por que não apagas
Co'a esponja de tuas vagas
Do teu manto este borrão?
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão! ...
 
VI
       
Existe um povo que a bandeira empresta
P'ra cobrir tanta infâmia e cobardia!...
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!...
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?
Silêncio.  Musa... chora, e chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto! ... 

Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra
E as promessas divinas da esperança...
Tu que, da liberdade após a guerra,
Foste hasteado dos heróis na lança
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!... 

Fatalidade atroz que a mente esmaga!
Extingue nesta hora o brigue imundo
O trilho que Colombo abriu nas vagas,
Como um íris no pélago profundo!
Mas é infâmia demais! ... Da etérea plaga
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo!
Andrada! arranca esse pendão dos ares!
Colombo! fecha a porta dos teus mares!



Castro Alves nasceu em Muritiba, Bahia, no dia 14 de março de 1847 e morreu em Salvador, Bahia, no dia 6 de julho de 1871. Foi membro da Academia Brasileira de Letras. Na época da Faculdade de Direito, que cursou no Recife, viveu sua melhor fase como poeta. Escreveu o drama Gonzaga em 1868; no mesmo ano transferiu-se para a Faculdade de Direito em São Paulo e o texto que escreveu é apresentado com enorme sucesso no teatro. Dois anos depois, quando com a saúde comprometida pela tuberculose, escreveu publicou seu primeiro livro, Espumas flutuantes, único que viu publicar. Seu maior trabalho, o poema “O escravos”, e outros textos como “A cachoeira de Paulo Afonso” também designado pelo poeta como uma continuação do seu poema mais famoso. Segundo o verbete para a ABL, “duas vertentes se distinguem na poesia de Castro Alves: a feição lírico-amorosa, mesclada de forte sensualidade, e a feição social e humanitária, em que alcança momentos de fulgurante eloquência épica”.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Dois poemas Machado de Assis



CÍRCULO VICIOSO

Bailando no ar, gemia inquieto vaga-lume:
“Quem me dera que eu fosse aquela loira estrela
Que arde no eterno azul, como uma eterna vela!”
Mas a estrela, fitando a lua, com ciúme:

“Pudesse eu copiar-te o transparente lume,
Que, da grega coluna à gótica janela,
Contemplou, suspirosa, a fronte amada e bela”
Mas a lua, fitando o sol com azedume:

“Mísera! Tivesse eu aquela enorme, aquela
Claridade imortal, que toda a luz resume”!
Mas o sol, inclinando a rútila capela:

Pesa-me esta brilhante auréola de nume…
Enfara-me esta luz e desmedida umbela…
Por que não nasci eu um simples vaga-lume?”


NO ALTO

O poeta chegara ao alto da montanha,
E quando ia a descer a vertente do oeste,
Viu uma cousa estranha,
Uma figura má.

Então, volvendo o olhar ao subtil, ao celeste,
Ao gracioso Ariel, que de baixo o acompanha,
Num tom medroso e agreste
Pergunta o que será.

Como se perde no ar um som festivo e doce,
Ou bem como se fosse
Um pensamento vão,

Ariel se desfez sem lhe dar mais resposta.
Para descer a encosta
O outro lhe deu a mão.


Machado de Assis nasceu a 21 de junho de 1839, no Rio de Janeiro. Reconhecido um dos mais importantes romancistas da literatura brasileira e universal, foi autor de vasta obra poética; publicou cinco antologias de poemas: Crisálidas (1864), Falenas (1870), Americanas (1880) e a reunião dessas obras mais inéditos em Poesias completas (1901). Este último título tem sido revisto de tempos e tempos com a constante descoberta de material inédito. O escritor morreu na sua cidade natal em 29 de setembro de 1908.