segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Três poemas de Paulo Mendes Campos



Neste soneto

Neste soneto, meu amor, eu digo,
Um pouco à moda de Tomás Gonzaga,
Que muita coisa bela o verso indaga
Mas poucos belos versos eu consigo.

Igual à fonte escassa no deserto,
Minha emoção é muita, a forma é pouca.
Se o verso errado sempre vem-me à boca,
Só no meu peito vive o verso certo.

Ouço uma voz soprar à frase dura
Umas palavras brandas, entretanto,
Não sei caber as falas de meu canto

Dentro de forma fácil e segura.
E louvo aqui aqueles grandes mestres
Das emoções do céu e das terrestres.


Sentimento do tempo

Os sapatos envelheceram depois de usados
Mas fui por mim mesmo aos mesmos descampados
E as borboletas pousavam nos dedos de meus pés.
As coisas estavam mortas, muito mortas,
Mas a vida tem outras portas, muitas portas.
Na terra, três ossos repousavam
Mas há imagens que não podia explicar: me ultrapassavam.
As lágrimas correndo podiam incomodar
Mas ninguém sabe dizer por que deve passar
Como um afogado entre as correntes do mar.
Ninguém sabe dizer por que o eco embrulha a voz
Quando somos crianças e ele corre atrás de nós.
Fizeram muitas vezes minha fotografia
Mas meus pais não souberam impedir
Que o sorriso se mudasse em zombaria
Sempre foi assim: vejo um quarto escuro
Onde só existe a cal de um muro.
Costumo ver nos guindastes do porto
O esqueleto funesto de outro mundo morto
Mas não sei ver coisas mais simples como a água.
Fugi e encontrei a cruz do assassinado
Mas quando voltei, como se não houvesse voltado,
Comecei a ler um livro e nunca mais tive descanso.
Meus pássaros caíam sem sentidos.
No olhar do gato passavam muitas horas
Mas não entendia o tempo àquele tempo como agora.
Não sabia que o tempo cava na face
Um caminho escuro, onde a formiga passe
Lutando com a folha.
O tempo é meu disfarce.


Camafeu 

A minha avó morreu sem ver o mar. Suas mãos, arquipélago  de nuvens,  
Matavam as galinhas com asseio; o mar também dá sangue  quando o peixe  
Vem arrastado ao mundo (o nosso mundo); no entanto no mar  é muito diferente.  
As gaivotas, mergulhando, indicam o caminho mais curto entre  dois sonhos  
Mas minha avó era feliz e doce como um nome pintado em uma barca.  
Sua ternura eterna não temia a trombeta do arcanjo e o Dies lrae:  
Sentada na cadeira de balanço, olhava com humor os vespertinos.
Sua figura pertenceu à terra, porém o mar, rainha impaciente,  
0 mar é uma figura de retórica. No porto de Cherburgo, há muitos anos,  
Ouvi na cerração o mar aos gritos, mas minha avó jamais ergueu a voz:  
Penélope cristã, enviuvada, fazia colchas de retalhos fulvos.  
0 mar é uma louça que se parte contra as penhas, enquanto minha avó  
Fechava a geladeira com um jeito suave, anterior às geladeiras.  
Igual ao mar, os dedos da manhã a despertavam num rubor macio;  
Pelo seu corpo quase centenário a invisível vaga do sol se espraiava,  
A carne se aquecia na torrente dos constelados glóbulos do sangue,  
As pombas aclamavam outro dia da crônica do mundo (o nosso mundo)  
E de uma criatura que se orvalha em suas bodas com a terra dos pássaros  
Matutinos, das frutas amarelas, da rosa ensangüentando de vermelho  
0 verde, o miosótis, o junquilho, e em tudo um rumor fresco de águas novas,  
Um verdejar de abóboras, pepinos, um leite grosso e tenro, e minha avó  
Com tímida alegria indo, vindo, a prever e ordenhar um dia a mais,  
Assim como as abelhas determinam mais 24 horas de doçura.  
E enfim no litoral destes brasis, o mar afogueado amando a terra  
Com seu amor insaciável, dando um mundo ao mundo (o nosso mundo)  
E a gravidade intransigente do mistério. Mas minha avó morreu sem ver o mar. 



segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Chamada para a 4ª edição do caderno-revista 7faces



Está aberta desde sexta-feira, dia 14 de outubro de 2011, chamada para publicação na 4ª edição do caderno-revista 7faces, edição prevista para ser lançada em janeiro de 2012. Aceitam-se trabalhos inéditos de poetas de quaisquer partes do mundo, desde que em Língua Portuguesa bem como artes plásticas (fotografia, pintura, grafite etc.).

Para acessar as regulagens e saber de todo processo de submissão, vá aqui.


segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Três poemas Mario Quintana




EU QUERIA TRAZER-TE UNS VERSOS MUITO LINDOS

Eu queria trazer-te uns versos muito lindos
colhidos no mais íntimo de mim...
Suas palavras
seriam as mais simples do mundo,
porém não sei que luz as iluminaria
que terias de fechar teus olhos para as ouvir...
Sim! Uma luz que viria de dentro delas,
como essa que acende inesperadas cores
nas lanternas chinesas de papel!
Trago-te palavras, apenas... e que estão escritas
do lado de fora do papel... Não sei, eu nunca soube o que dizer-te
e este poema vai morrendo, ardente e puro, ao vento
da Poesia...

como
uma pobre lanterna que incendiou!


A RUA DOS CATAVENTOS

Da vez primeira em que me assassinaram,
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha.
Depois, a cada vez que me mataram,
Foram levando qualquer coisa minha.

Hoje, dos meu cadáveres eu sou
O mais desnudo, o que não tem mais nada.
Arde um toco de Vela amarelada,
Como único bem que me ficou.

Vinde! Corvos, chacais, ladrões de estrada!
Pois dessa mão avaramente adunca
Não haverão de arrancar a luz sagrada!

Aves da noite! Asas do horror! Voejai!
Que a luz trêmula e triste como um ai,
A luz de um morto não se apaga nunca!


OS POEMAS

Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.
Quando fechas o livro, eles alçam voo
como de um alçapão.
Eles não têm pouso
nem porto
alimentam-se um instante em cada par de mãos
e partem.
E olhas, então, essas tuas mãos vazias,
no maravilhoso espanto de saberes
que o alimento deles já estava em ti...


Mário Quintana nasceu a 30 de julho de 1906, em Alegrete, Rio Grande do Sul. Leitor exímio, foi autor de mais de uma centena de traduções, incluindo Honoré de Balzac, Marcel Proust, Virginia Woolf e Graham Greene. Figurou em vários jornais do seu tempo como colunista de cultura. Sua atividade com a literatura inclui a escrita de livros para crianças e de poesia, gênero no qual ficou reconhecido pela publicação de vasta obra, das quais se destacam títulos como: A rua dos cataventos (1940), Caderno H (1973), A vaca e o hipogrifo (1977) e Baú de espantos (1986). Morreu a 5 de maio de 1994, em Porto Alegre. 

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Quatro poemas de Wisława Szymborska



REPENSO O MUNDO

Repenso o mundo, segunda edição,
segunda edição corrigida,
aos idiotas o riso,
aos tristes o pranto,
aos carecas o pente,
aos cães botas.

Eis um capítulo: A Fala dos Bichos e das Plantas,
com um glossário próprio
para cada espécie.
Mesmo um simples bom-dia
trocado com um peixe,
a ti, ao peixe, a todos
na vida fortalece.

Essa há muito pressentida,
de súbito revelada,
improvisação da mata.
Essa épica das corujas!
Esses aforismos do ouriço
compostos quando imaginamos
que, ora, está só adormecido!

O tempo (capítulo dois)
tem direito de se meter em tudo, coisa boa ou má.
Porém — ele que pulveriza montanhas
remove oceanos e está
presente na órbita das estrelas,
não terá o menor poder
sobre os amantes, tão nus
tão abraçados, com o coração alvoroçado
como um pardal na mão pousado.

A velhice é uma moral
só na vida de um marginal.
Ah, então todos são jovens!
O sofrimento (capítulo três)
não insulta o corpo.
A morte
chega com o sono.

E vais sonhar
que nem é preciso respirar,
que o silêncio sem ar
não é uma música má,
pequeno como uma fagulha,
a um toque te apagarás.

Morrer, só assim. Dor mais dolorosa
tiveste segurando nas mãos uma rosa
e terror maior sentiste ao som
de uma pétala caindo no chão.

O mundo, só assim. Só assim
viver. E morrer só esse tanto.
E todo o resto — é como Bach
tocado por um instante
num serrote.


DOIS MACACOS DE BRUEGEL

É assim meu grande sonho sobre os exames finais:
sentados no parapeito dois macacos acorrentados,
atrás da janela flutua o céu
e se banha o mar.

A prova é de história da humanidade.
Gaguejo e tropeço.

Um macaco, olhos fixos em mim, ouve com ironia,
o outro parece cochilar —
mas quando à pergunta se segue o silêncio,
me sopra
com um suave tilintar de correntes.


A VIDA NA HORA

A vida na hora
Cena sem ensaio.
Corpo sem medida.
Cabeça sem reflexão.

Não sei o papel que desempenho.
Só sei que é meu, impermutável. 
De que trata a peça
devo adivinha já em cena.

Despreparada para a honra de viver, 
mal posso manter o ritmo que peça impõe.
Improviso embora me repugne a improvisação. 
Tropeço a cada passo no desenvolvimento das coisas.
Meu jeito de ser cheira a província.
Meus instintos são amadorismo.
O pavor do palco, me explicando, é tanto mais humilhante.
As circunstâncias atenuantes me parecem cruéis.  

Não para retirar as palavras e os reflexos,
inacabada a contagem das estrelas,
o caráter como o casaco às pressas abotoado —
eis os efeitos deploráveis desta urgência.

Se eu pudesse ao menos praticar uma quarta-feira antes
ou ao menos repetir uma quinta-feira outra vez!
Mas já se avizinha a sexta com um roteiro que não conheço.

Isso é justo — pergunto
(com a voz rouca
porque nem sequer me foi dado pigarrear nos bastidores).

É ilusório pensar que esta é só uma prova rápida
feita em acomodações provisórias. Não.
De pé em meio à cena vejo como é sólida.
Me impressiona a precisão de cada acessório.
O palco giratório já opera há muito tempo.
Acenderam-se até as mais longínquas nebulosas.
Ah, não tenho dúvida de que é uma estreia. 
E o que quer que eu faça,
vai se transformar para sempre naquilo que fiz.


RECITAL DA AURORA

Musa, não ser um boxeador é literalmente não existir. 
Nos recusaste a multidão ululante. 
Uma dúzia de pessoas na sala, 
já é hora de começar a fala. 
Metade veio porque está chovendo, 
o resto é parente. Ó Musa. 

As mulheres adorariam desmaiar nesta noite outonal, 
e vão, mas só ao assistir a uma luta colossal. 
Só lá as cenas dantescas. 
E o ascenso aos céus. Ó Musa. 

Não ser boxeador, ser poeta,
estar condenado a duras florbelas, 
por falta de musculatura mostrar ao mundo 
a futura leitura escolar — na melhor das hipóteses — 
Ó Musa. Ó Pégaso, anjo equestre. 

Na primeira fila um velhinho sonha docemente 
que a finada esposa ressuscitou e 
assa para ele um bolo com passas. 
Com fogo, mas não alto, para o bolo não queimar, 
começamos a leitura. Ó Musa.


Poeta e ensaísta, Wisława Szymborska nasceu a 2 de julho de 1923 em Bnin, Polônia. Em 1931 mudou-se com a família para a Cracóvia, onde viveu até 1º de fevereiro de 2012. Estudou Literatura e Sociologia, trabalhou por quase trinta anos na revista literária Zycie Literackie. Ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 1996.

* Traduções de Regina Przybycien