quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Três poemas de Lúcio Cardoso




Amanhecer

A noite está dentro de mim,
girando no meu sangue.
Sinto latejar na minha boca,
as pupilas cegas da lua.
Sinto as estrelas, como dedos
movendo a solidão em que caminho.
Logo o perfume da poesia
sobe aos meus olhos trêmulos, cerrados,
ouço a música das coisas que acordam
sobre o corpo negro da terra
e a voz do vento distante
e a voz das palmeiras abertas em raios
e a voz dos rios viajantes.

E a noite está dentro de mim.
Como um pássaro,
meu sonho ergue as asas no coração da sombra.
Ouço a música das flores que tombam,
o tropel das nuvens que passam
e a minha voz que se eleva
como uma prece na planície solitária.

Então sinto a noite fugindo de mim,
sinto a noite fugindo dos homens
e o sol que avança na garupa do mar
e as nuvens curvas que enchem o céu
como grandes corcéis de fogo cor-de-rosa
desaparecendo sugadas pela treva.


Em tom de rosa

Rasga, tira, teu suavíssimo esplendor.
Rasga, insone, o teu veludo cor de sândalo,
antes que a dura pauta enfureça
ao chegar do teu calor.
Rasga. Antes que seja carne
a tua ilusória memória
de inocente.
Rasga o teu odor,
fende tua ilharga, cera e sangue,
destrói - oh destrói a alma que te habita.
Que viver perdura,
e que existe que não sofra
a ânsia de morrer?
Destrói, rosa, teu próprio ser:
configure-se branco, o que é cor -
e antes do amanhecer
sobrevenha em cinza:
todo rosa não é mais do
que uma invenção
do vento.

O exilado

Quem me dera ser o que fui
antes de ser eu mesmo;
imortal paciência, a de esperar
ser antes de mim o ser talvez
voltado a uma primícia de verão.
O verão não há. Sucedem tempos
onde sem consolo tomba a neve.
Imagino outro país, brasil
ardendo em chama de cristal.
Impossível país, céu vencido
e olhado através deste ser ausente.
Sou eu, é ele? Que importa:
se existe o país, eu não existo
e neste afã de relembrar
identifico o ser e o não ser -
não sou - sendo o ser
deste país que sou.