domingo, 13 de fevereiro de 2011

Psicose

 
 
Não vou sair daqui.
Nada de obrigações.
Hoje sou clandestino,
sou evadido das horas
e  dos caminhos de tudo.


Levantei-me cedo
para ver nascer
e morrer o sol
no fundo do horizonte.


Música no violino do velho
(que é realmente cego, por acaso).

Hoje não tenho pressa para nada
desta vida  ou sequer da outra.
Vou deixar de olhar para o relógio
(de resto anda sempre por acertar)
e vou perder todos os comboios
certos ou mesmo atrasados.
Vou ficar aqui a apanhar
este solzinho de Outono acolhedor.

Tombam folhas da música do violino.

Passam pessoas apressadas
a cruzar em todos os sentidos,
com direcções únicas e certas
ou erradas (nada tenho com isso).
Passam operários sujos, costureiras,
corretores de bolsa, directores,
senhores obesos de automóvel,
senhoras muito bem vestidas,
senhoras muito bem senhoras,
marçanos, vendedores de jornais,
pessoas honestas, pessoas traidoras
(nada têm que dar-me conta dos seus actos),

          pessoas pessoas pessoas
          numa parada de gestos,
          numa parada de fatos,
          numa parada de sentimentos,
          numa parada de verdades,
          numa parada de mentiras,
          numa parada de sonhos,
          numa parada de certezas,

para o grande espectáculo do teatro quotidiano
com artistas certos nos seus verdadeiros papéis
certos ou errados — isso é lá com eles
(hoje fechei o coração ao sentimentalismo).


Música agitada no violino do velho
Hoje não! nem sequer o almoço.
Que o ponham na mesa e fiquem à espera
da minha presença física.
Que telefonem para a polícia,
para os hospitais, para a Morgue
a perguntar por mim.
(Nunca ninguém perguntou por mim,
excepto eu, já se vê).
Que dêem todos os meus sinais
(nunca serão completos — serão mesmo falsos,
posso garantir.
Além disso não trago a gravata branca.
Deitei-a fora e abri o colarinho.
não me podem descobrir pela coleira).


Todos vão para suas casas:
costureiras, operários,
co1egiais, professores,
empregados, marçanos,
«manicures», polícias, toda a gente
                                         toda a gente
                                         toda a gente
                                         — e até os cães vadios
No doce regresso ao lar.

Música de família no violino do velho.

Saem e entram a barra grandes navios.
Cai a noite e vêm vultos.
E eu uma sombra
identificada com a noite sem lua.

Não irei sequer bater à porta dela
(por que hei-de  ser sempre eu a ir ter com ela?).
Que se pinte, solte os cabelos,
vista o «robe de chambre» cor de rosa,
transparente, decotado e sensual.
Ponha no corpo esbelto e moreno
perfumes de estranhos orientes
e aguarde que eu chegue amante
e desespere e chore, se quiser.
Hoje fico indiferente à sua carne.

Música de amor no violino do velho.

Não! ainda não vou para casa.
Vou assistir agora a um grande espectáculo
de sombras do outro mundo,
ao grande espectáculo sem encenação.
Há-de passar Rogogine
com Natacha Fílipovna morta nos seus braços.
Há-de passar Nero com incêndios nos olhos,
Otelo louco de vingança,
Hamlet declamando uma única frase:
                        «To be or not to be»,
Ofélia cantando e morrendo flor,
Fernando Pessoa lendo em voz sonolenta
os seus «Thirty five sonnets»,
Sá-Carneiro na sua última casaca,
Voltaire em sinistras gargalhadas,
Fausto montado numa vassoura de 2 cornos,
D. Quixote correndo atrás dos moinhos de vento,
Cleópatra com uma víbora nos seios,
Edgar Pöe e um corvo sinistro,
Byron de braço dado em 1800
com a linda Margaret Parker,
Algernon Swinburne todo vestido de fogo,
Lorca entre «la guardia civil»,
Beethoven cheio de música nos cabelos,
Castro Alves e uma multidão de escravos,
Dante seguindo Beatrice entre nuvens.
Hão-de passar todos os grandes amorosos,
todos os grandes aventureiros,
todos os grandes loucos
para a grande peça trágico-cómico-dramática,
vestidos de todas as cores,
falando todas as línguas,
tocando todas as músicas
─ numa  confusão de loucura.


Música triste e alegre,
lenta e vertiginosa no violino do velho.


E depois, oh! depois, sim!
levantar-me-ei daqui.
Irei bater a todas as portas,
chamarei toda a gente para a rua
(ninguém ficará na cama:
nem velhos, nem coxos, nem cegos.
Ninguém!)
e farei as apresentações na língua de Rimbaud:
Monsieur Castro — Monsieur Goethe.
Monsieur Silva —  Monsieur Dostojevski.
Comment? Vous ne vous comprenez pas?
Par1ez fort, plus fort! Críez! Criez!

Ah! hei-de místurá-Ios todos, todos, todos
— numa confusão diabólica.
Chamarei todos os velhos dos violinos
para o estranho concerto sem partitura.

E depois, oh! depois, sim!
vou para casa e vou pôr-me à janela
para anunciar o primeiro e o último espectáculo
da peça sem autor,
o grande espectáculo das marionettes humanas.

E haverá música
                 músíca
                 músíca
                 música
no violino do tempo.


Quebrarei a ampulheta do tempo!
 
 
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CARVALHO, Mendes. Satírica. Lisboa: Círculo de Leitores, 1974.