domingo, 23 de dezembro de 2012

Três poemas de Lêdo Ivo


Acontecimento do soneto

À doce sombra dos cancioneiros
em plena juventude encontro abrigo.
Estou farto do tempo, e não consigo
cantar solenemente os derradeiros

versos de minha vida, que os primeiros
foram cantados já, mas sem o antigo
acento de pureza ou de perigo
de eternos cantos, nunca passageiros.

Sôbolos rios que cantando vão
a lírica imortal do degredado
que, estando em Babilônia, quer Sião,

irei, levando uma mulher comigo,
e serei, mergulhado no passado,
cada vez mais moderno e mais antigo.


Os peixes

Os peixes estão no lago, os dardos escondidos.
Entre as pedras e o lodo eles avançam
túrgidos como o amor.

Venha a mão do desejo turvar a água clara
e eles serão o amor, o sol que penetra em gretas
                                                                   [nupciais,
as espadas cobertas de saliva.


O cavalo 

No campo matinal
um cavalo assediado
pelo zumbir das moscas
mastiga avidamente,
o capim do universo.
Os insetos volteiam
no anel azul do mundo
- esfera sem passado
nos ares momentâneos.
Não há mitologia
espalhada na relva
que é verde, sem caminhos,
longe das longes terras.
E o cavalo sobrado
da inenarrável guerra
e da paz defendida
à sombra das espadas
mata a fome no campo
onde não jazem mortos
nem retroam clarins.
Sua crina estremece.
E seus cascos escarvam
a plácida planície
coberta pelos pássaros.
Já sem fome, relincha
para os céus que não guardam
as fanfarras e flâmulas
e a fumaça da História,
e se muda em estátua.

•••
Lêdo Ivo nasceu em Maceió, Alagoas, em 1924. Apesar de melhor conhecido pela poesia, gênero que melhor praticou ao longo de sua vida de escritor, também escreveu prosa, com incursões pelo romance, pelo conto, crônica e ensaio. Autor de vasta obra, foi membro da Academia Brasileira de Letras e premiado reiteradas vezes. Dentre os títulos que publicou, destacam-se As imaginações, seu primeiro livro, Ode e elegia, Acontecimentos do soneto, Ode ao crepúsculo, Cântico, Ode equatorial, Linguagem, Um brasileiro em Paris, Magias, Estação central, Finisterra, O soldado raso, A noite misteriosa, Calabar, Ninho de cobras, Curral de peixe, O rumor da noite e Plenilúnio. Em 2004, toda sua obra poética foi reunida em Poesia completa 1940-2004 (Topbooks). O escritor morreu no dia 23 de dezembro de 2012, em Sevilha, na Espanha. 

sábado, 22 de dezembro de 2012

Sem homenagem a Drummond, mas um 2013 agitado

Dora Ferreira da Silva.

Em princípios de outubro passado confessamos por aqui da publicação de um caderno extra da 7faces com poemas para Carlos Drummond de Andrade; a ideia havia já sido acordada em conversa por mensagem eletrônica entre o editor do caderno, Pedro Fernandes, e a mentora do Projeto Declame para Drummond, Marina Mara. De uma hora para outra, Mara disse não ter mais interesse em levar a ideia adiante por ter recebido proposta editorial para uma publicação de antologia envolvendo os 110 poetas que participaram do projeto. Fica aqui o nosso registro de um plano falhado. Em 2013 não teremos nenhum caderno em homenagem a Drummond.

Fora esse feio imprevisto, noticiamos o que esperamos, de certo, para o ano vindoura. Já em janeiro chegará on-line a 6ª edição do caderno-revista 7faces. Já selecionamos os nomes que estarão na edição e iniciamos os trabalhos de editoração do material: nesta leva virão poetas do Brasil, Moçambique e Portugal. O número é fruto de uma parceria com o Instituto Moreira Salles que dispôs alguns materiais do espólio de Dora Ferreira da Silva; a poeta paulista será a homenageada na edição em questão.

A 7ª edição começará a receber materiais (poesia e artes plásticas) conforme está redigido no regulamento a partir de 1º de fevereiro. Esta edição será publicada entre julho e agosto de 2013, conforme o calendário de edições semestrais do periódico.

Para setembro, chegara mais um número especial – misto poesia, misto ensaio acadêmico – nos moldes do que foi a edição Variações de um mesmo tom: diálogos sobre a poesia de José Saramago, publicada em julho de 2011, dedicado ao poeta Leontino Filho. Neste ano que finda, a obra enigma de sua carreira literária completa 25 anos de sua primeira edição, Cidade íntima. Ainda não temos um nome oficial para a ideia, mas já fechamos uma equipe de convidados e, passado o lançamento da primeira edição, divulgaremos um regulamento específico para receber ensaios acadêmicos de quaisquer partes do Brasil com leituras para a obra do poeta.

Como se vê, teremos um agitado 2013. Fica, então, desde já, os cumprimentos a todos com votos de bom Natal e um vigoroso 2013.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Três poemas de António Ramos Rosa


O NOSSO OLHAR

O nosso olhar não tem fronteiras ou estações
não é uma arma que dispara um tiro
imediatamente o espaço é a inocência do seu dom
ao sol e na sombra a sua projecção imperceptível

Para uma longínqua estrela uma árvore ou uma flor no chão
não necessita de uma medida as distâncias equivalem-se
o olhar não nos pertence como um instrumento ou um meio
a sua límpida visão vem de uma obscura esfera
e no seu átrio o ponto de partida não é o ponto
mas a abertura imediata que nos projecta no espaço
imperceptivelmente numa visão de um instante
e o visível é a evidência do real
de um fascínio de qualidades puras
de surpresa em surpresa de cores formas e tons
respirados pelo corpo na sua mais ampla latitude

* Revista Mealibra, n. 3, outono de 2008.


NO CENTRO DO MUNDO

Oscilante geometria tranquila
presença suficiente do ínfimo e do amplo
No centro do tempo não há tempo

Tranquilidade para ir ao encontro de
Estou dentro estou aberto habito
um limpo rosto de desconhecida frescura

Ramagens dispersão de nuvens indícios ténues

Sou uma linguagem límpida com o vento
Bebo nas múltiplas nascentes
do espaço puro
Acendo-me e apago-me e é a claridade que muda
Tranquilidade das ramagens crepitação de brasas

Durmo silencioso e mais desperto do que nunca
Sou o ar que se dissipa no ar
Como me perdi quem sou as interrogações cessaram

Estou dentro e fora na densidade subtil
Não há aqui imagens extravagantes rumores estranhos
Tudo se desenrola na lúcida amplitude tranquila
As palavras sucedem-se como vagarosas nuvens
O dia é límpido e lê-se como um livro aberto


UM POEMA É SEMPRE ESCRITO NUMA LÍNGUA ESTRANGEIRA

Um poema é sempre escrito numa língua estrangeira
com os contornos duros das consoantes
com a clara música das vogais
Por isso devemos lê-lo ao nível dos seus sons
e apreendê-lo para além do seu sentido
como se ele fosse um fluente felino verde ou com a cor do fogo
O que de vislumbre em vislumbre iremos compreendendo
será a ágil indolência de sucessivas aberturas
em que veremos as labaredas de um outro sentido
tão selvagem e tão preciosamente puro que anulará o sentido das palavras
É assim que lemos não as palavras já formadas
mas o seu nascimento vibrante que nas sílabas circula
ao nível físico do seu fluir oceânico

* Do blog do autor



António Ramos Rosa nasceu em Faro no dia 17 de outubro de 1924. Escreveu poesia e prosa (crítica literária); do primeiro gênero deixou extensa obra literária que mereceu o reconhecimento pela variedade de premiações recebidas, dentre os quais pode-se destacar o Prêmio Nacional de Poesia, recusado pelo autor, o Prêmio PEN Clube Português de Poesia e o Grande Prêmio Sophia de Mello Breyner Andresen. Sua obra de estreia foi O grito claro, em 1958  e a última em vida Numa folha, leve e livre, em 2013. O poeta morreu nesse mesmo ano em 23 de setembro.

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Dois poemas de Alexandre O’Neill





Cão

Cão passageiro,
cão estrito, cão rasteiro cor de luva amarela,
apara-lápis, fraldiqueiro,
cão liquefeito, cão estafado,
cão de gravata pendente,
cão de orelhas engomadas,
de remexido rabo ausente,
cão ululante, cão coruscante,
cão magro, tétrico, maldito,
a desfazer-se num ganido,
a refazer-se num latido,
cão disparado: cão aqui,
cão além, e sempre cão.
Cão marrado, preso a um fio de cheiro,
cão a esburgar o osso
essencial do dia a dia,
cão estouvado de alegria,
cão formal da poesia,
cão-soneto de ão-ão bem martelado,
cão moído de pancada
e condoído do dono,
cão esfera do sono,
cão de pura invenção, cão pré-fabricado,
cão-espelho, cão-cinzeiro, cão-botija,
cão de olhos que afligem,
cão-problema...

Sai depressa, ó cão, deste poema!


***


Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca.
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.

Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto;
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto

De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas inesperadas
Como a poesia ou o amor.

(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído
No papel abandonado)

Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte.


Alexandre O’Neill nasceu em Lisboa a 19 de dezembro de 1924, cidade onde passou toda a vida até o dia 21 de agosto de 1986. Colaborou largamente com a imprensa portuguesa, destacando-se suas colunas no Diário de Lisboa, em A Capital e no Jornal de Letras. Sua estreia acontece ainda em 1948 com A ampola miraculosa. Fortemente marcado pelas expressões do surrealismo se fez um dos importantes nomes dessa vanguarda em Portugal. Publicou ainda obras como No reino da Dinamarca (1958), Poemas com endereço (1962), Feira cabisbaixa (1965), A saca de orelhas (1979), entre outras. Escreveu prosa, da qual se destaca Uma coisa em forma de assim (1980); traduziu autores como Maiakóvski, Bertolt Brecht, Alfred Jarry; e compôs roteiros para o cinema e a televisão. 

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

4 poemas de Rodrigo de Souza Leão


meu pai que não está na foto

comi distância nas pálpebras
fechadas de minha razão
pude sentir a minha Loucura
sempre sorrindo de dentadura

oro aos sãos que me querem
tateando o Horizonte dentro
daquela noite eterna
em que me deitei em mim

pra sempre quis estrelas
quem sabe irei ser um dia
aquela que adiante guiará
meu pai no mar da poesia



toda a vida em um segundo

morrendo a cada
dez minutos uma vez

o círculo se fecha
e cada vez mais

o que vai indo vai
pra nunca mais

o que fica é o futuro
uma criança na foto

por que nenhuma
mãe guardou

nossas fotos
quando adultos

  
o piolho

o piolho numa folha de papel é um ponto (ponto).
na cabeça é uma serra-elétrica.

a esteira é ergométrica e o piolho anda quando eu ando.
sinto falta dos piolhos da infância e corto o cabelo curto.

estou sempre em curto. Curto isso.
estes seres abjetos (objetos abjetos) têm que viver (interrogação)?

talvez seja um deles ou venha a ser já que não faço nada.
como uma empada e arroto Coca. Deus é um piolho na toca.



bandeira vermelha

o sono eterno da pedra
as falésias surfando
o mar de cicatrizes

à cata está o poeta
de alguma imagem rara
ou de alguma metáfora nua

na ressaca da prudência
alguns ficam nas pranchas
carrancas com medo

castelos de areia
crianças à milanesa
o céu maior que tudo

e à maneira do sol
espero o mar crescer
se encher de sudoeste


......................
Poemas da página oficial de Rodrigo de Souza Leão.

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Três poemas de Nicanor Parra


QUE É POESIA

A fundação do ser x a palavra
Poesia és tu
Tudo o que se move é poesia
O que não muda de lugar é prosa

Mas que é poesia
Tudo o que nos une é poesia
Só a prosa pode nos separar

Sim mas que é poesia
Vida em palavras
Um enigma que se nega a ser decifrado x os professores
Um pouco de verdade e uma aspirina

Antipoesia és tu


O HOMEM IMAGINÁRIO

O homem imaginário
vive numa mansão imaginária
rodeada de árvores imaginarias
à beira de um rio imaginário

Das paredes que são imaginários
pendem antigos quadros imaginários
irreparáveis rachaduras imaginárias
que representa feitos imaginários
acontecidos em mundos imaginários
em lugares e tempos imaginários

Todas as tardes tardes imaginárias
sobe as escadas imaginárias
e se põe por sobre a varanda imaginária
a olhar a paisagem imaginária
que consiste num vale imaginário
rodeado por colinas imaginárias

Sombras imaginárias
vêm pelo caminho imaginário
entoando canções imaginárias
à morte do sol imaginário

E nas noites de lua imaginária
sonha com a mulher imaginária
que lhe deu seu amor imaginário
volta a sentir essa mesma dor
esse mesmo prazer imaginário
e volta a palpitar

o coração do homem imaginário

* Traduções de Pedro Fernandes de O. Neto


MULHERES

A mulher impossível,
a mulher de dois metros de estatura,
a senhora de mármore de Carrara
que não fuma nem bebe,
a mulher que não fica nua
por temor de engravidar
a vestal intocável
que não quer ser mãe de família,
a mulher que respira pela boca,
a mulher que caminha
virgem para a câmara nupcial
porém que reage como homem,
a que se desnudou por simpatia
por encantar-se com musica clássica,
a ruiva que ficou de bruços,
a que só se entrega por amor,
a donzela que enxerga com um só olho,
a que apenas se deixa possuir
no divã, à borda do abismo,
a que odeia os órgãos sexuais,
a que casa somente com um cão,
a mulher que se faz de adormecida
(o marido a ilumina com um fósforo),
a mulher que se entrega porque sim
porque a solidão, porque o esquecimento...
a que chegou moça à velhice,
a professora míope,
a secretária de óculos escuros,
a senhorita pálida de lentes
(ela não quer nada com o falo),
todas estas valkírias
todas estas matronas respeitáveis
com seus lábios maiores ou menores
terminarão tirando-me do juízo.

* Tradução de Albino M. 


Nicanor Parra nasceu em San Fabián, em 5 de setembro de 1914. Em 1933, ingressou no Instituto Pedagógico da Universidade do Chile, onde se formou em Matemática e Física. Em 1943, embarcou para os Estados Unidos para fazer uma especialização no Instituto de Educação Internacional. Revolucionou a literatura com sua antipoesia, que mudou a forma de conceber a literatura e a arte. Escreveu, dentre outras obras Hojas de Parra, Poemas y antipoemas e Versos de salón. Sua última obra publicada foi Antiprosas, em 2011. O poeta morreu no dia 23 de janeiro de 2018. 




segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Três poemas de Emily Dickinson



Fazer a Toalete – após a Morte
Frio deixar na Toalete
O único Sabor que ela nos dava –
É difícil, embora –

Seja mais fácil – que fazer as Tranças –
E um ar feliz dar ao Corpete –
Se o olho que a mimou foi arrancado –
Por Decálogos – fora –

***

A brasa arde e enrubesce –
Ó alma sob as Cinzas
Todo esse tempo e não morreste?
A brasa arde e sorri –

Branda Luz se faz nova
Brilham horas extintas
Próprio do Fogo é a persistência
E Prometeu não viu –

 ***

Por Deus, partiu como um soldado,
O fuzil junto ao peito –
Meu Deus, seja ele o mais valente
Dentre os guerreiros.

Ó Deus, pudesse eu vê-lo ainda
Com dragonas na farda –
Nem temeria o inimigo
Nem as batalhas.

Emily Dickinson nasceu a 10 de dezembro de 1830, em Amherst. De vida reclusa, trabalhou continuamente na construção de uma poesia que só se descobriu em sua grande dimensão depois da sua morte; em vida, poucos textos foram publicados sem alcançar reconhecimento.  Sua obra tem sido organizada em cartas, textos esparsos e poemas; neste gênero somam-se mais de mil textos. A poeta estadunidense morreu no dia 15 de maio de 1886.



*Traduções de José Lira

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

O poema de João Cabral de Melo Neto em louvação a Oscar Niemeyer




À Brasília de Oscar Niemeyer 

Eis casas-grandes de engenho, 
horizontais, escancaradas, 
onde se existe em extensão 
e a alma todoaberta se espraia. 

Não se sabe é se o arquiteto 
as quis símbolos ou ginástica: 
símbolos do que chamou Vinicius 
"imensos limites da pátria" 

ou ginástica, para ensinar 
quem for viver naquelas salas 
um deixar-se, um deixar viver 
de alma arejada, não fanática.


João Cabral de Melo Neto nasceu no dia 9 de janeiro de 1920 no Recife. Publicou seu primeiro livro de poemas Pedra do sono em 1942; a partir de então seguiu-se títulos como O engenheiro (1945), O cão sem plumas (1950), O rio (1954), Quaderna (1960), A educação pela pedra (1966), Morte e vida severina e outros poemas em voz alta (1966), Museu de tudo (1975), A escola das facas (1980), Agreste (1985), Crime na Calle Relator (1987), Sevilla andando (1989), entre outros. Morreu no dia 9 de outubro de 1999, no Rio de Janeiro.

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

4 poemas de Rainer Maria Rilke




a minha vida eu a vivo em círculos crescentes
sobre as coisas, alto no ar.
Não completarei o último, provavelmente,
mesmo assim irei tentar.

Giro à volta de Deus, a torre das idades,
e giro há milênios, tantos...
Não sei ainda o que sou: falcão, tempestade
ou um grande, um grande canto.

*** 

Se tantas vezes te importuno, ó Deus meu vizinho,
batendo forte à tua porta na noite extensa,
é porque te ouço respirar, da tua presença
sei: estás na sala, sozinho.
se de algo precisares, não há ninguém ali
que possa te trazer um gole d’água sequer.
Vivo sempre à escuta. Dá-me um sinal qualquer.
estou bem perto de ti.

Entre nós há apenas um muro, coisa pouca,
por mero acaso aliás;
bem pode ser que um grito da tua ou minha boca —
e eis que se desfaz
sem só rumor ou ruído.

Com imagens tuas o muro foi construído.

Diante de ti tuas imagens são como nomes.
e quando um dia dentro de mim esteja acesa
a luz com que te conhece minha profundeza,
será, nas molduras, brilho que se esbanja e some.

E os meus sentidos, que um torpor célere consome,
estão sem pátria, exilados da tua grandeza.

 ***

Tu, obscuridade de onde emana
meu ser, amo-te mais do que à chama
que o mundo reduz
ao círculo da sua luz:
ali dentro, resplandece;
fora dali, ser nenhum a reconhece.

mas na obscuridade tudo se contém:
as formas e as chamas, os animais e eu também,
nela que consorcia
existências e energias —

pode bem ser que uma força sombria
se mova em minhas cercanias.

É às noites que minha alma se confia.

*** 

Obreiros somos — mestre, aprendizes, serventes —
e te construímos, ó grande nave altaneira.
Às vezes chega a nós um peregrino silente;
ei-lo que como um clarão cruza as nossas cem mentes
e trêmulo nos traz alguma nova maneira.

Galgamos andaimes que ao nosso passo estremecem;
maciços os martelos que nossas mãos sustêm;
isso até aflorar-nos a fronte uma hora que se
irisa e fulge como se de tudo soubesse:
como o vento vem do mar, é de ti que ela vem.

ouve-se então um malhar de martelos inúmeros
que, golpe após golpe, pelas montanhas se expande.
só te deixamos quando a noite cai e no escuro
podemos já ver-te os vagos contornos futuros.

Deus, como tu és grande.

Rainer Maria Rilke nasceu a 4 de dezembro de 1875, em Praga, na Boêmia, então Império Austro-Húngaro. Estudou na cidade natal e ainda em Munique e Berlim. Sua estreia na literatura — onde se afirmará um dos poetas de língua alemã mais importante do século XX — acontece em 1894, com Vida e canções. Na viagem pela Rússia, a convite de Lou Andreas-Salomé, adquiriu a inspiração religiosa que modificaria os tons de seus primeiros trabalhos. É desse período Histórias do bom Deus. A estes trabalhos, acrescentou ainda O livro das horas (1905), Elegias do Duíno (1923), Sonetos a Orfeu (1923) e Cartas a um jovem poeta (publicação póstuma que se tornou uma das mais conhecidas no mundo, de 1929). Rilke morreu a 29 de dezembro de 1926, em Montreux, na Suíça. 



* Traduções de José Paulo Paes.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Três poemas de Décio Pignatari




EUPOEMA

O lugar onde eu nasci nasceu-me
num interstício de marfim,
entre a clareza do início
e a celeuma do fim.

Eu jamais soube ler: meu olhar
de errata a penas deslinda as feias
fauces dos grifos e se refrata:
onde se lê leia-se.

Eu não sou quem escreve,
mas sim o que escrevo:
Algures Alguém
são ecos do enlevo.


JANEIRO/FEVEREIRO
Calendário Philips 1980

Nem só a cav
idade da boca

Nem só a língua

Nem só os dentes
e os lábios

fazem a língua

Ouça
as mãos
tecendo a língua
e sua linguagem

É a língua
têxtil

O texto
que sai das
mãos
sem palavras
 
 
POEMA

Tosco dizer de coisas fluidas,
Gume de rocha rasga o vento:
Semanas tantas de existir
E de viver -um só momento.

Prisma empanado da retina
Que acalanta mundos sem prumo,
A luz que o fere perde o rumo,
Aclara a linfa submarina:

Prédios mergulham ramos de cimento,
Neons fazem dos olhos coágulos de seixos,
E esquinas lanham flancos desse rio sem peixes
De que sou fonte e náufrago no inteiro.
 

Décio Pignatari nasceu a 20 de agosto de 1927 em Jundiaí. Formou-se em Direito pela Universidade de São Paulo. Sua estreia na literatura — onde se firmou como poeta, ensaísta, ficcionista e tradutor — acontece na Revista de Novíssimos juntamente com os irmãos Haroldo e Augusto de Campos, com quais fundará mais tarde a poesia concreta e várias outras atividades criativas como a Grupo Noigandres. Na poesia publicou, entre outros, O carrossel (1950), Rumo a Nausicaa (1952), Organismo (1960) e Exercício findo (1968). Morreu em São Paulo a 2 de dezembro de 2012.

sábado, 1 de dezembro de 2012

Dois poemas de Manuel António Pina




ARTE POÉTICA

Vai pois, poema, procura
a voz literal
que desocultamente fala
sob tanta literatura.

Se a escutares, porém, tapa os ouvidos,
porque pela primeira vez estás sozinho.
Regressa então, se puderes, pelo caminho
das interpretações e dos sentidos.

Mas não olhes para trás, não olhes para trás,
ou jamais te perderás;
e teu canto, insensato, será feito
só de melodia e de respeito.

E de discórdia. E todavia
sob tanto passado insepulto
o que encontraste senão tumulto,
senão de novo ressentimento e ironia?


TODAS AS PALAVRAS

As que procurei em vão, 
principalmente as que estiveram muito perto, 
como uma respiração, 
e não reconheci, 
ou desistiram e 
partiram para sempre, 
deixando no poema uma espécie de mágoa 
como uma marca de água impresente;
as que (lembras-te?) não fui capaz de dizer-te
nem foram capazes de dizer-me; 
as que calei por serem muito cedo, 
e as que calei por serem muito tarde, 
e agora, sem tempo, me ardem; 
as que troquei por outras (como poderei 
esquecê-las desprendendo-se longamente de 
mim?); 
as que perdi, verbos e 
substantivos de que 
por um momento foi feito o mundo 
e se foram levando o mundo. 
E também aquelas que ficaram, 
por cansaço, por inércia, por acaso, 
e com quem agora, como velhos amantes sem 
desejo, desfio memórias, 
as minhas últimas palavras.


Manuel António Pina nasceu no dia 18 de novembro de 1943, em Sabugal, cidade pertencente à região da Beira Alta, Portugal. Formou-se em Direito pela Universidade de Coimbra, foi advogado, jornalista, poeta e escritor. Publicou 17 livros de poesia, de Ainda não é o fim nem o princípio do mundo calma é apenas um pouco tarde (1974); até Todas as palavras: poesia reunida (2012). Em 2011, recebeu o Prêmio Camões. Morreu em 2012, na cidade do Porto.

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Quatro poemas de Torquato Neto


Cogito

eu sou como eu sou
pronome
pessoal intransferível
do homem que iniciei
na medida do impossível

eu sou como eu sou
agora
sem grandes segredos dantes
sem novos secretos dentes
nesta hora

eu sou como eu sou
presente
desferrolhado indecente
feito um pedaço de mim

eu sou como eu sou
vidente
e vivo tranqüilamente
todas as horas do fim


Literato cantabile

agora não se fala mais
toda palavra guarda uma cilada
e qualquer gesto pode ser o fim
do seu início
agora não se fala nada
e tudo é transparente em cada forma
qualquer palavra é um gesto
e em minha orla
os pássaros de sempre cantam assim,
do precipício:

a guerra acabou
quem perdeu agradeça
a quem ganhou.
não se fala. não é permitido
mudar de idéia. é proibido.
não se permite nunca mais olhares
tensões de cismas crises e outros tempos
está vetado qualquer movimento
do corpo ou onde quer que alhures.
toda palavra envolve o precipício
e os literatos foram todos para o hospício
e não se sabe nunca mais do mim. agora o nunca.
agora não se fala nada, sim. fim. a guerra
acabou
e quem perdeu agradeça a quem ganhou.

***

Agora não se fala mais
toda palavra guarda uma cilada
e qualquer gesto é o fim
do seu início:

Agora não se fala nada
e tudo é transparente em cada forma
qualquer palavra é um gesto
e em sua orla
os pássaros de sempre cantam
nos hospícios.

Você não tem que me dizer
o número de mundo deste mundo
não tem que me mostrar
a outra face
face ao fim de tudo:

só tem que me dizer
o nome da república do fundo
o sim do fim
do fim de tudo
e o tem do tempo vindo:

não tem que me mostrar
a outra mesma face ao outro mundo
(não se fala. não é permitido:
mudar de idéia. é proibido.
não se permite nunca mais olhares
tensões de cismas crises e outros tempos.
está vetado qualquer movimento


Let’s Play That

quando eu nasci
um anjo louco muito louco
veio ler a minha mão
não era um anjo barroco
era um anjo muito louco, torto
com asas de avião
eis que esse anjo me disse
apertando a minha mão
com um sorriso entre dentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes
let’s play that

Torquato Neto nasceu a 9 de novembro de 1944 em Teresina. Autor de uma obra multifacetada que inclui poesia, crônica e letras de canções, sua carreira se inicia pela participação de vários movimentos de vanguarda, como a Tropicália. Morreu no dia 10 de novembro de 1972, no Rio de Janeiro. 


* Estes poemas foram publicados inicialmente na revista Modo de Usar & Co.

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Fernando Pessoa por Sophia de Mello Breyner Andresen





Fernando Pessoa

Teu canto justo que desdenha as sombras
Limpo de vida viúvo de pessoa
Teu corajoso ousar não ser ninguém
Tua navegação com bússola e sem astros
No mar indefinido
Teu exacto conhecimento impossessivo

Criaram teu poema arquitectura
E és semelhante a um deus de quatro rostos
E és semelhante a um deus de muitos nomes
Cariátide de ausência isento de destinos
Invocando a presença já perdida
E dizendo sobre a fuga dos caminhos
Que foste como as ervas não colhidas

Sophia de Mello Breyner Andresen nasceu no Porto em 6 de novembro de 1919 e morreu em 2 de julho de 2004, em Lisboa. Em 1999 recebeu o mais importante prêmio das literaturas de língua portuguesa, o Camões e, no ano da sua morte o Reina Sofía. Autora de uma vasta obra poética, todos os livros seus foram reunidos na antologia Obra poética.

* Este poema está em Cem Poemas de Sophia (Paço de Arcos: Editorial Caminho-Visão/JL, 2004).

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Quatro poemas de Roberto Bolaño



OS DETETIVES

Sonhei com detetives perdidos na cidade escura.
Ouvi seus gemidos, suas náuseas, a delicadeza
De suas fugas.
Sonhei com dois pintores que ainda não tinham
40 anos quando Colombo
Descobriu a América.
(Um clássico, atemporal, o outro
Moderno sempre,
Como a merda.)
Sonhei com uma pegada luminosa,
A senda das serpentes
Percorrida uma vez ou outra
Por detetives
Absolutamente desesperados.
Sonhei com um caso difícil,
Vi os corredores cheios de policiais,
Vi os questionários que ninguém resolve,
Os arquivos ignominiosos,
E logo vi o detetive
Voltar ao local do crime
Solitário e tranqüilo
Como os piores pesadelos,
Eu o vi sentar-se no chão e fumar
Num dormitório com sangue seco
Enquanto os ponteiros do relógio
Viajavam encolhidos pela noite
Interminável.


OS DETETIVES PERDIDOS

Os detetives perdidos na cidade escura.
Ouvi seus gemidos.
Ouvi seus passos no Teatro da Juventude.
Uma voz avançando como uma flecha.
Sombra de cafés e parques
Frequentados na adolescência.
Os detetives que observam
Suas mãos abertas,
O destino manchado com seu próprio sangue.
E você não pode nem mesmo se lembrar
Onde estava a ferida,
Os rostos que você amou um dia,
A mulher que salvou a sua vida.


OS DETETIVES GELADOS

Sonhei com detetives gelados, detetives latino-americanos
Que tentavam manter os olhos abertos
No meio do sonho.
Sonhei com crimes horríveis
E com tipos cuidadosos
Que procuravam não pisar nas poças de sangue
E ao mesmo tempo abarcar com um só olhar
a cena do crime.
Sonhei com detetives perdidos
No espelho convexo dos Arnolfini:
nossa época, nossas perspectivas,
nossos modelos de Espanto.


AUTO-RETRATO AOS VINTE ANOS

Eu fui embora, tomei meu caminho e nunca soube
até onde poderia me levar. Fui cheio de medo,
meu estômago revirou e a cabeça zumbia:
acho que era o ar frio dos mortos.
Não sei. Me deixei ir, pensei que era uma pena
terminar tão de repente, mas por outro lado
escutei aquele chamado misterioso e convincente.
Ou você o escuta ou não o escuta, e eu o escutei
e quase caí no choro: um som terrível,
nascido no ar e no mar.
Um escudo e uma espada. Então,
apesar do medo, me deixei ir, encostei minha face
na face da morte.
E era impossível fechar meus olhos e não ver
aquele espetáculo estranho, lento e estranho,
ainda que embutido numa realidade rapidíssima:
milhares de garotos como eu, imberbes
ou barbados, mas todos latino-americanos,
unindo suas faces com as da morte.


Roberto Bolaño nasceu a 28 de abril de 1953, em Santiago do Chile. Instalado na Espanha a partir de 1977, exerceu diversas atividades manuais para sobreviver. Depois do sucesso de crítica de La literatura nazi en América (1996), publicou várias obras em poucos anos. Morreu em Barcelona, em 15 julho de 2003.

* Tradução de Rodrigo Garcia Lopes. Publicado inicialmente no Portal Cronópios.


terça-feira, 27 de novembro de 2012

Quatro haicais de Erico Verissimo





Primavera

Libélulas? Qual!
Flores de cerejeira
Ao vento de abril.


Verão

Moscardo verde,
Fruta madura no chão...
Ó mel da vida!

Gota de orvalho
Na corola dum lírio:
Joia do tempo.


Outono

Bosque de cobre,
Borboleta amarela,
Esquilo fulvo.


Inverno

Na alva neve,
A rígida mancha azul
Da ave morta.


Erico Verissimo nasceu em Cruz Alta a 17 de dezembro de 1905. Autor de vasta obra desenvolvida sobretudo no campo da prosa com romances que marcaram em definitivo a literatura brasileira como a saga O tempo e o vento (1949-1962), também desenvolveu interesse pela poesia. Nesse gênero, foi hábil praticante do haicai, poema de origem japonesa. Morreu em 28 de novembro de 1975, na capital do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.


segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Três poemas de Al Berto



dizem que a paixão o conheceu
mas hoje vive escondido nuns óculos escuros
senta-se no estremecer da noite enumera
o que lhe sobejou do adolescente rosto
turvo pela ligeira náusea da velhice

conhece a solidão de quem permanece acordado
quase sempre estendido ao lado do sono
pressente o suave esvoaçar da idade
ergue-se para o espelho
que lhe devolve um sorriso tamanho do medo

dizem que vive na transparência do sonho
à beira-mar envelheceu vagarosamente
sem que nenhuma ternura nenhuma alegria
nenhum ofício cantante
o tenha convencido a permanecer entre os vivos


***

e ao anoitecer adquires nome de ilha ou de vulcão
deixas viver sobre a pele uma criança de lume
e na fria lava da noite ensinas ao corpo
a paciência o amor o abandono das palavras
o silêncio
e a difícil arte da melancolia


***

A escrita é a minha primeira morada de silêncio
a segunda irrompe do corpo movendo-se por trás das palavras
extensas praias vazias onde o mar nunca chegou
deserto onde os dedos murmuram o último crime
escrever-te continuamente... areia e mais areia
construindo no sangue altíssimas paredes de nada
esta paixão pelos objectos que guardaste
esta pele-memória exalando não sei que desastre
a língua de limos
espalhávamos sementes de cicuta pelo nevoeiro dos sonhos
as manhãs chegavam como um gemido estelar
e eu perseguia teu rasto de esperma à beira-mar
outros corpos de salsugem atravessam o silêncio
desta morada erguida na precária saliva do crepúsculo

Al Berto nasceu a 11 de janeiro de 1948, em Coimbra. Viveu a adolescência em Sines, exilou-se, entre 1967 e 1975, em Bruxelas, onde estudou Belas-Artes. Publicou seu primeiro livro em 1977, À procura do vento num jardim d’agosto, já em Lisboa, onde viveu o restante da breve vida. Em prosa, além deste, escreveu, entre outros, Lunário (1988), O anjo mudo (1993) e Diários (2012). Em poesia, produziu maior parte de seu trabalho; neste gênero estão títulos como Trabalhos do olhar (1982), O medo, antologia que reúne textos de entre 1974 e 1986, publicada em 1987 e reeditada com mais textos em 1991, O livro dos regressos (1989), Horto de incêndio (1998). Para o teatro compôs Apresentação da noite (1985). Morreu a 13 de junho de 1997. 

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Três poemas sobre morte de Jorge de Sena

A morta. Rembrandt


"A MORTA" DE REMBRANDT


Morta. Apenas morta. Nada mais que morta.
Não parece dormir. Nem se dirá
que sonha ou que repousa ou que da vida
levou consigo o mais que não viveu.
Parece que está morta e nada mais parece.
E tudo se compõe, dispõe e harmoniza
para que a morte seja apenas sua.

É muito velha. Velha, ou consumida
na serena angústia de aguardar que a vida
vá golpe a golpe desbastando os laços
de carne e de memória, de prazer, piedade,
ou do simples ouvir que os outros riem,
e choram e ciciam ou silentes
se escutam tal como ela se escutava
na calma distracção de respirar
o tempo que circula pelas veias.

Em tudo a vida se extinguiu. Primeiro,
a que era sua e como que de todos
quantos amara ou conhecera um pouco
ou, vagamente vultos recordados, eram
sombras dos dias pensativos em
que os olhos pousam no que passa ou pára.
Depois a vida nela — o só viver,
o só estar viva sem saber seu nome —
e que não era sua mas lhe fora entregue
de posse em posse, no correr dos séculos,
desde a primeva noite pantanosa
àquele quarto em que vagiu nascendo.

Formas da vida não subsiste alguma
na luz difusa que a seu rosto aclara
tão marfinado no sudário branco
a destacar-se da coberta escura.
Morreu por certo há pouco, e já na boca
de lábios finos, comissuras longas,
como nas pálpebras pesadas ou
no afilamento do nariz adunco,
nada palpita, nem a morte, nada.

A luz deixa na sombra o crucifixo
que pende da parede ao pé do leito,
porém no rosto pousa aguda e leve
iluminando a teia de milhares de rugas
tecida pela aranha que se agita
entre nós e os outros, entre nós e as coisas,
entre nós e nós próprios, mesmo que
não fosse a vida esse crispar-se a pele
a um beijo que desliza, um vento que perpassa,
uma ansiedade alheada, um medo súbito,
uma demora de confiança triste.

Está morta. Apenas morta. Mas, no entanto,
na solidão a que nem cores resistem
não morre o mundo, não figura a Morte,
nada figura senão ela que
deixou de ser a solidão da vida,
para ficar ali, antes de apodrecer,
no breve instante em que a agonia acaba,
a solidão que vemos exterior enfim
no rosto amarelecido, no sudário branco,
no escuro cobertor, na luz difusa,
no jeito da cabeça repousada,
e nas pesadas pálpebras espessas,
fechadas sobre os olhos para sempre.

Lisboa, 12/5/1959

"REQUIEM" DE MOZART 

I

Ouço-te, ó música, subir aguda
à convergente solidão gelada.
Ouço-te, ó música, chegar desnuda
ao vácuo centro, aonde, sustentada
e da esférica treva rodeada,
tu resplandeces e cintilas muda
como o silente gesto, a mão espalmada
por sobre a solidão que amante exsuda
e lacrimosa escorre pelo espaço
além de que só luz grita o pavor.
Ouço-te lá pousada, equidistante
desse clarão cuja doçura é de aço
como do frágil mas potente amor
que em teu ouvir-te queda esvoaçante.

16/4/1962
lI

Ó música da morte, ó vozes tantas
e tão agudas, que o estertor se cala.
Ó música da carne amargurada
de tanto ter perdido que ora esquece.
Ó música de morte, ah quantas, quantas
mortes gritaram no que em ti não fala.
Ó música da mente espedaçada
de tanto ter sonhado o que entretece,
sem cor e sem sentido, no fervor
de sublimar-se nesse além que és tu.
Ó vida feita uma detida morte.
Ó morte feita um inocente amor.
Amor que as asas sobre o corpo nu
fecha tranquilas no possuir da sorte.

16/4/1962

III

Além do falso ou verdadeiro, além
do abstracto e do concreto, além da forma
e do conceito, além do que transforma
contrários pares noutros par's também,
além do que recorre ou nunca vem
ao que se pensa ou sente, além da norma
em que o não-ser se humilha e se conforma,
além do possuir-se, e para além
dessa certeza que outro ritmo dá
àquele de que as palavras têm sentido:
lá onde ouvir e não-ouvir se igualam
na mesma imagem virtual do na-
da — é que tu vais, ó música, partido
o nó dos tempos que por ti se calam.

15/10/1967

IV

Tudo se cala em ti como na vida.
Tudo palpita e flui como no leito
em que se morre ou se ama, já desfeito
o abraço do momento em que, sustida
a sensação da posse conseguida,
a carne pára a ejacular-se atenta.
Tudo é prazer em ti. Quanto alimenta
esta glória de existir, trazida
a cada instante só do instante ser-se,
reflui em ti, puro, atlante,
certeza e segurança de conter-se
na criação virtual o renascer-se
agora e sempre pelo tempo adiante,
mesmo esquecido. Em ti, o conhecer-se
deste possível é a paz do amante.

15/10/1962
revisto em 15/10/1967 e acrescentados os dois últimos poemas:

À memória de Adolfo Casais Monteiro

Como se morre, Adolfo? Tu morreste
(toca o telefone às duas da manhã em Lourenço Marques era a Joaninha em lágrimas a dizer que o padrinho dela tinha morrido eu não queria crer e mesmo perguntei — tendo tantos compadres — quem era o padrinho dela cuja morte chegava em notícia de Lisboa a Mécia e eu ficámos silenciosos com os olhos marejados das lágrimas que só vieram no dia seguinte esperávamos mais dia menos dia tão doente estavas aquela notícia agora mais incrível por chegada inopinadamente do outro lado do mundo que não era sequer aquele em que morrias)
— e diz-me o Pimentel numa carta tão triste:
enquanto dormias a tua solidão
e estavas morto e sereno pela manhã alta.
Morreste na mesma solidão altiva e tímida
com que foras discreção e delicado ser
escondido em máscaras de sorriso amargo
e de palavras ásperas e rudes. Igual aos versos
que escreveste como raros no molhar de alma
em sangue e sentimento já essência
e só profunda vida oculta em música
puríssima de câmara em cordas tensas
a que o ranger dos arcos se somava ambíguo.
Ninguém mais nobremente ergueu em si
o monumento da morte esse viver contínuo
num só de se indicarem por oblíquos
sinais os gestos limpos da amizade
e os limpos mais ainda de um amor constante
que o teu corpo buscou em tantas mulheres
amando só algumas fielmente na tortura
de não se amar tão bem quanto o desejo.
Adolescente, amadureceste para uma velhice
a que te deste como monge laico
incréu de tudo menos desse amor perdido
que à tua volta, em livros como em música,
era um sussurro de memórias silentes
a rodear-te de vácuo a tua sala vazia.
Como se morre, Adolfo? Trinta e três
anos — uma idade perfeita — conheci-te,
soube de ti o dito e o não-dito, o que escreveste
e o que não escreveste. Por instantes,
os teus olhos cruzavam-se num viés de vesgo
que era um saber terrível de estar só no mundo
e não haver que valha a pena que se diga
sem destruir-se quanto em nossa vida é o pouco
indestrutível se guardado à força
num silêncio de exílio e de distância.
E todavia como estiveste no mundo, como
duramente bebeste toda a dor do mundo,
ou a fumaste em nuvens de cigarros que matavam
os teus pulmões possessos de asfixia.
Foste o estrangeiro e o exilado perfeito
e por todos nós que recusámos de um salto
por outras terras esta terra há séculos de outrem,
morreste em dignidade, sem queixas nem saudades
a queixa e a saudade mais pesadas
pesadas para o fundo, sem palavras
que as não há entendíveis aonde não se entende
a perfeição tranquila em desespero agudo
a que te deste num morrer sem voz.
Morreste só, como viveste. Sem conversa,
como escolheste viver. Longe de tudo,
como a vida te deu que tu viveras.
E tão presente, mesmo se esquecido,
és como o fogo ardente a requelmar quem pensa
que em Portugal de Portugal se é.
Como se morre? Nesse instante extremo,
sentiste um respirar que te alargava
e te expandia o peito mais os olhos
até os confins deste universo inteiro?
Abriste os olhos? Só em sonhos viste?
Morreste — como se morre? — E no teu rosto
qual nos teus versos poderá ser lido
até que nem pensaste nem disseste.
Mas isso tu sabias, e creio que foi pouco
oh muito pouco o que a morte foi capaz de te ensinar.

Porto, 26/8/1972


Jorge de Sena nasceu em 2 de novembro de 1919 em Lisboa e morreu em 4 de junho de 1978 em Santa Barbara na Califórnia. Foi, além de poeta, crítico, ensaísta, ficcionista, dramaturgo, tradutor e professor universitário. Perseguido pela ditadura militar no seu país, veio para o Brasil, onde viveu por longa data e trabalhou como professor em Assis e Araraquara, São Paulo. A degradação da situação política no Brasil o fez sair novamente; desta vez, foi viver nos Estados Unidos. Publicou extensa obra, e, do gênero poesia, destaca-se Perseguição, o primeiro título neste gênero, em 1942, Coroa da terra (1946), Pedra filosofal (1950), As evidências (1955), Fidelidade (1958), Metamorfoses (1963), Exorcismos (1972), e Sobre esta praia (1977). Vários títulos vieram a lume postumamente como Quarenta anos de solidão (de 1979), Dedicácias (de 1980), Sequências (do mesmo ano do anterior), Post-Scriptum I e Pos-Scriptum II (de 1985).  

* Poemas publicados em Ler Jorge de Sena.