sábado, 26 de maio de 2012
Ao longe os barcos de flores
(A Ovídio de Alpoim)
Só, incessante, um som de flauta chora,
Viúva, grácil, na escuridão tranqüila,
- Perdida voz que de entre as mais se exila,
- Festões de som dissimulando a hora
Na orgia, ao longe, que em clarões cintila
E os lábios, branca, do carmim desflora...
Só, incessante, um som de flauta chora,
Viúva, grácil, na escuridão tranquila.
E a orquestra? E os beijos? Tudo a noite, fora,
Cauta, detém. Só modulada trila
A flauta flébil... Quem há-de remi-la?
Quem sabe a dor que sem razão deplora?
Só, incessante, um som de flauta chora...
Dois poemas de Natália Correia
BILHETE PARA O AMIGO AUSENTE
Lembrar teus carinhos induz
a ter existido um pomar
intangíveis laranjas de luz
laranjas que apetece roubar.
a ter existido um pomar
intangíveis laranjas de luz
laranjas que apetece roubar.
Teu luar de ontem na cintura
é ainda o vestido que trago
seda imaterial seda pura
de criança afogada no lago.
Os motores que entre nós aceleram
os vazios comboios do sonho
das mulheres que estão à espera
são o único luto que ponho.
Se em folhagem de poema
me catais anacolutos
é vossa a fraude. A gema
não desce a sons prostitutos.
O saltério, diletante,
fere a Musa com um jasmim?
Só daí para diante
da busca estará o fim.
Aberta a porta selada,
sou pensada já não penso.
Se a Musa fica calada
como dizer o silêncio?
Atirar pérola a porco?
Não me queimo na parábola.
Em mãos que brincam com o fogo
é que eu não ponho a espada.
Dos confins, o peristilo
calo com pontas de fogo,
e desse casto sigilo
versos são só desafogo.
E também para que me lembrem
deixo-os no mercado negro,
que neles glórias se vendem
e eu não sou só desapego.
Raiz de Deus entre os dentes,
aí, pára a transmissão.
Ultra-sons dessas nascentes
só aves entenderão.
me catais anacolutos
é vossa a fraude. A gema
não desce a sons prostitutos.
fere a Musa com um jasmim?
Só daí para diante
da busca estará o fim.
sou pensada já não penso.
Se a Musa fica calada
como dizer o silêncio?
Não me queimo na parábola.
Em mãos que brincam com o fogo
é que eu não ponho a espada.
calo com pontas de fogo,
e desse casto sigilo
versos são só desafogo.
deixo-os no mercado negro,
que neles glórias se vendem
e eu não sou só desapego.
aí, pára a transmissão.
Ultra-sons dessas nascentes
só aves entenderão.
•
Natália Correia nasceu a 13 de setembro
de 1923, na Ilha de São Miguel. Escreveu romance, ensaio, teatro e poesia.
Desta última lavra, saíram mais de duas dezenas de títulos; alguns deles são: Rio
de nuvens (1947), Poemas (1955), Cântico do país emerso (1961), As maçãs de Orestes
(1970), O armistício (1985) e Sonetos românticos (1990). No mesmo ano de
publicação do seu último livro de poemas, em 1990, recebe o Grande Prêmio de
Poesia APE. Morreu a 16 de março de 1993, em Lisboa.
Caminho
I
Tenho sonhos cruéis; n'alma doente
Sinto um vago receio prematuro.
Vou a medo na aresta do futuro,
Embebido em saudades do presente...
Saudades desta dor que em vão procuro
Do peito afugentar bem rudemente,
Devendo, ao desmaiar sobre o poente,
Cobrir-me o coração dum véu escuro!...
Porque a dor, esta falta d'harmonia,
Toda a luz desgrenhada que alumia
As almas doidamente, o céu d'agora,
Sem ela o coração é quase nada:
Um sol onde expirasse a madrugada,
Porque só é madrugada quando chora.
II
Encontraste-me um dia no caminho
Em procura de quê, nem eu o sei.
- Bom dia, companheiro - te saudei,
Que a joranda é maior indo sozinho.
É longe, é muito longe, hámuito espinho!
Paraste a repousar, eu descansei...
Na venda em que poisaste, onde poisei,
Bebemos cada um do mesmo vinho.
É no monte escabroso, solitário.
Corta os pés com a rocha dum calvário,
E queima como a areia!...Foi no entanto
Que chorávamos a dor de cada um...
E o vinho em que choraste era comum:
Tivemos que beber do mesmo pranto.
III
Fez-nos bem, muito bem, esta demora:
Enrijou a coragem fatigada...
Eis os nossos bordões da caminhada,
Vai já rompendo o sol: vamos embora.
Este vinho, mais virgem do que a aurora,
Tão virgem não o temos na jornada...
Enchamos as cabaças: pela estrada,
Daqui inda este néctar avigora!...
Cada um por seu lado!...Eu vou sozinho,
Eu quero arrostar só todo o caminho,
Eu posso resistir à grande calma!...
Deixa-me chorar mais e beber mais,
Perseguir doidamente os meus ideais,
E ter fé e sonhar - encher a alma.
segunda-feira, 21 de maio de 2012
Dois poemas de Alejandra Pizarnik
Exílio
a Raúl
Gustavo Aguirre
Esta mania
de me saber anjo,
sem idade,
sem morte
para a qual viver,
sem piedade
por meu nome
nem por meus
ossos que choram vagando
E quem não tem um amor?
Sinistro
delírio amar uma sombra.
E quem não
goza por entre amapolas?
E quem não
possui um fogo, uma morte,
um medo,
algo horrível,
ainda que
fira com plumas,
ainda que
fira com sorrisos?
A sombra não
morre.
E meu amor
só abraça ao
que flui
como lava do
inferno:
una loja
calada,
fantasmas em
doce ereção,
sacerdotes
de espuma,
e sobretudo
anjos,
anjos belos
como lâminas
que se
elevam na noite
e devastam a
esperança.
Tradução de
Antonio Miranda
Caminhos do
espelho
I
E sobretudo
olhar com inocência. Como se não se passasse nada, o que é certo.
II
Mas a ti
quero olhar-te até que o teu rosto se afaste do meu medo, como um pássaro do
limite afiado da noite.
III
Como uma
menina de giz cor-de-rosa num muro muito velho subitamente apagada pela chuva.
IV
Como quando
se abre uma flor e revela o coração que não tem.
V
Todos os
gestos do meu corpo e voz para fazer de mim a oferenda, o ramo que o vento
abandona na soleira.
VI
Cobre a
memória da tua cara com a máscara daquela que serás e assusta a menina que
foste.
VII
A noite dos
dois dispersou-se com a neblina. É a estação dos alimentos frios.
VIII
E a sede, a
minha memória é da sede, eu em baixo, no fundo, no poço, eu bebia, recordo.
IX
Cair como um
animal ferido no lugar que seria de revelações.
X
Como quem
não quer a coisa. Nenhuma coisa. Boca cosida. Pálpebras cosidas. Esqueci-me. Lá
dentro o vento. Tudo fechado e o vento lá dentro.
XI
Sob o negro
sol do silêncio douravam-se as palavras.
XII
Mas o
silêncio é certo. Por isso escrevo. Estou só e escrevo. Não, não estou só. Há
aqui alguém que treme.
XIII
Ainda que
diga sol e lua e estrelas refiro-me a coisas que me acontecem. E o que desejava
eu? Desejava um silêncio perfeito.
Por isso
falo.
XIV
A noite tem
a forma de um grito de lobo.
XV
Delícia de
perder-se na imagem pressentida. Levantei-me do meu cadáver, fui à procura de
quem sou. Peregrina de mim, fui até àquela que dorme num país ao vento.
XVI
Minha queda
sem fim minha queda sem fim onde ninguém me esperou pois ao olhar para quem me
esperava outra não vi senão a mim mesma.
XVII
Algo caía no
silêncio. A minha última palavra foi eu,embora me referisse à aurora luminosa.
XVIII
Flores
amarelas constelam um círculo de terra azul. A água treme cheia de vento.
XIX
Deslumbramento
do dia, pássaros amarelos na manhã. Uma mão desata as trevas, arrasta a
cabeleira de uma afogada que não pára de caminhar pelo espelho. Voltar à
memória do corpo, hei-de regressar aos meus ossos de luto, hei-de compreender o
que diz a minha voz.
Tradução
Maria Sousa
•
Alejandra
Pizarnik nasceu no dia 29 de abril de 1936, em Avellaneda, cidade da
região metropolitana de Buenos Aires. Seu primeiro livro de poemas, La tierra más
ajena, foi publicado em 1955 e assinado como Flora Alejandra Pizarnik. Em
seguida vieram La última inocencia, de 1956, e Las aventuras
perdidas, de 1958. Estudou filosofia, letras e jornalismo, porém sem concluir
os estudos universitários. Em 1960, mudou-se para Paris, onde viveu durante
quatro anos e travou amizades com os escritores Julio Cortázar e Octavio Paz,
tendo este último escrito o prólogo de seu livro seguinte, Árbol de
Diana, de 1962. Em 1965, após seu retorno à Argentina, publica Los
trabajos y las noches. Seus livros seguintes são Extracción de la Piedra
de Locura, de 1968, e El Infierno Musical, de 1971. Em 1972, aos 36 anos,
Pizarnik morre após ingerir uma quantidade letal de barbitúricos, deixando
escrito na lousa de seu apartamento: "Não quero ir/ nada mais/ que até o
fundo."
terça-feira, 8 de maio de 2012
Três poemas de Ruy Belo
A PRIMEIRA PALAVRA
Acompanhando a recente curvatura da terra
o primeiro olhar descreveu a sua órbita
sobre as oliveiras. Só mais tarde
a pomba roubaria o ramo
e iria de árvore em árvore propagar a primavera
Foi então que os olhos se cruzaram
e estava dita a primeira palavra
à superfície do tempo
ELOGIO DA AMADA
Ei-la que vem ubérrima numerosa escolhida
secreta cheia de pensamentos isenta de cuidados
Vem sentada na nova primavera
cercada de sorrisos no regaço lírios
olhos feitos de sombra de vento e de momento
alheia a estes dias que eu nunca consigo
Morde-lhe o tempo na face as raízes do riso
começa para além dela a ser longe
A amada é bem a infância que vem ter comigo
Há pássaros antigos nos límpidos caminhos
e mortes como antes nunca mais
Ei-la já que se estende ampla como uma pátria
no limiar da nossa diferença
Os nossos átrios são para os seus pés solitários
Já todos nós esquecemos a casa dos pais
ela enche de dias as nossas mãos vazias
A dor é nela até que deus começa
eu bem lhe sinto o calcanhar do amor
Que importa sermos de uma só manhã e não haver em volta
árvore mais açoitada pelos diversos ventos?
Que importa partirmos num desmoronar de poentes?
Mais triste mesmo a vida onde outros passarão
multiplicando-lhe a ausência que importa
se onde pomos os pés é primavera?
CONDIÇÃO DA TERRA
A minha amada chega no ar dos pinhais
cingida de resina vária como o cedro
e a maresia. Levanta-se lábil
e compromete solene o séquito da aurora
Ou vem sobre os rolos do mar
cheia de infância pequena de destino
Também a trazem às vezes aves como a pomba
que os mercadores ouviram
em países distantes. Tem brilhos
nos olhos de veado como se buscara
a grande fonte das águas
Que nome tem a minha amada?
Como chamá-la se nenhum conceito a contempla?
Em que palavra envolvê-la?
A minha amada não é da raça de estar
como o homem posta sobre a terra
Que pés lhe darão
este destino de serem
mais ágeis do que nós os sonhos?
Ombro como o meu será lugar para ela?
Que anjo em mim a servirá?
Ai eu não sei como recebê-la
Eu sou da condição da terra
que tacteio de pé. Quase árvore
não me vestem convenientemente as estações
nem me comenta a sorte
o canto pontiagudo dos pássaros
Vem domesticamente minha amada
Receber-te-ei aquém dos olhos
com este humilde cabedal de dias
Mas basta que venhas quando eu diga
do alto de mim próprio sim à terra
•
Ruy Belo nasceu a 27 de fevereiro
de 1933, em São João da Ribeira, Rio Maior. Sua atividade literária o fez um
dos nomes mais importantes da poesia portuguesa da segunda metade do século XX;
dela saíram livros como Aquele grande rio Eufrates (1961), O problema
da habitação (1962), Boca bilingue (1966), Homem de palavras e
Na senda da poesia (1969), Transporte no tempo (1973), A
margem da alegria (1974), entre outros. Também escreveu ensaios e se
destacou na tradução de autores como Blaise Cendrars, Raymond Aron, Jorge Luis
Borges e Federico García Lorca. Morreu a 8 de agosto de 1978, em Queluz,
Sintra.
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