segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Três poemas de Décio Pignatari




EUPOEMA

O lugar onde eu nasci nasceu-me
num interstício de marfim,
entre a clareza do início
e a celeuma do fim.

Eu jamais soube ler: meu olhar
de errata a penas deslinda as feias
fauces dos grifos e se refrata:
onde se lê leia-se.

Eu não sou quem escreve,
mas sim o que escrevo:
Algures Alguém
são ecos do enlevo.


JANEIRO/FEVEREIRO
Calendário Philips 1980

Nem só a cav
idade da boca

Nem só a língua

Nem só os dentes
e os lábios

fazem a língua

Ouça
as mãos
tecendo a língua
e sua linguagem

É a língua
têxtil

O texto
que sai das
mãos
sem palavras
 
 
POEMA

Tosco dizer de coisas fluidas,
Gume de rocha rasga o vento:
Semanas tantas de existir
E de viver -um só momento.

Prisma empanado da retina
Que acalanta mundos sem prumo,
A luz que o fere perde o rumo,
Aclara a linfa submarina:

Prédios mergulham ramos de cimento,
Neons fazem dos olhos coágulos de seixos,
E esquinas lanham flancos desse rio sem peixes
De que sou fonte e náufrago no inteiro.
 

Décio Pignatari nasceu a 20 de agosto de 1927 em Jundiaí. Formou-se em Direito pela Universidade de São Paulo. Sua estreia na literatura — onde se firmou como poeta, ensaísta, ficcionista e tradutor — acontece na Revista de Novíssimos juntamente com os irmãos Haroldo e Augusto de Campos, com quais fundará mais tarde a poesia concreta e várias outras atividades criativas como a Grupo Noigandres. Na poesia publicou, entre outros, O carrossel (1950), Rumo a Nausicaa (1952), Organismo (1960) e Exercício findo (1968). Morreu em São Paulo a 2 de dezembro de 2012.

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