sexta-feira, 17 de agosto de 2012

4 poemas de António Carlos Cortez


Lente

De tarde tudo começava
e lá fora a elipse do vento
desenhava a casa e circulava
um perímetro maior de desalento

Era como se a poesia me ofuscasse
e o corpo em suspensão se mantivesse
à espera da morte ou regressasse à vida
depois do amor que se fizesse

Era a lente de aumentar essa paisagem
quase familiar mas indiferente
de rostos junto ao teu
Mas a imagem diminui
agora o mundo lentamente


Variação

Regressas sempre aos versos
A arte torpe das palavras
A fala o fingimento de verdade
A arte a canção dos mais pobres
de todos os sobreviventes
Calas quanto sabes mas escreves
Por metáforas e símbolos
as ruínas do corpo e do palato
essa hostil lâmpada
sabes que corremos como cortina
escura o sentido literal da palavra
Arda no silêncio com que
nos afastamos ou morremos
a palavra da esperança
No longo silêncio que se arrasta
nenhuma flor nos basta


Um barco no rio (2002, 2009)

Rompem barcos
em Lisboa
na barra e
entram devagar
na lâmina da página
comigo a olhar
a ossatura do poema
a escrever-se no seu
máximo equilíbrio

Um barco no rio
foi o título
que dei ao livro
onde falei desse animal
mnemónico que traz
à superfície os meus olhos

a esse animal do sul
em aresta viva dedico
afinal desde que escrevo
a viva memória do que lembro


Resposta a Drummond

É sempre no meu sempre aquele nunca
é sempre nesse nunca aquele agora
é sempre nesse agora aquele nada

No mesmo nada encontro sempre tudo
mesmo se o mundo é nada sempre assim
mesmo se assim tudo me desperta

e eu me desperto a adormecer no fim
de cada dia de trabalho errado
em cada hora de um amor mal feito

e digo mesmo se este mundo vale
a expectativa de querer ser sempre
aquela esp’rança onde o bem e o mal

se aliam sempre para quem conserva
o sonho ou a fúria de não estar sonhando
Mas novamente dói a dor no peito

e dói no corpo o que nos vai passando
mágoas ou risos ou o grito dado
e logo atirado para um vale escuro

onde não oiçamos a revolta infinda
de vivermos os dias nesta escura selva
a que nem Dante chamou talvez de vida

a que chamamos coisa e porém amamos
Sempre este querer de violência tanta
e esta crença de que o canto estale

e o dia venha porque nós lutamos
para além das forças que supomos nossas
para além dos sonhos que já não esperamos

para além do verso e do corpo gasto
Sempre este homem que se vai cansando
sempre estes ossos em que equilibramos

esta carne frágil este dia vasto
esta vida feita no que é morte nela
este amor sujeito ao que é sempre efémero

este ódio ao mundo que é amor eterno


CORTEZ, António Carlos. Depois de Dezembro. Lisboa: Licorne, 2010.