domingo, 22 de dezembro de 2013

Um inédito de Almada Negreiros mais manuscrito

2013 foi o ano de Almada Negreiros. 120 anos de seu nascimento. Entre os materiais das celebrações, a Biblioteca Nacional de Portugal editou um catálogo no qual apresenta "Aconteceu-me" como um poema inédito, achado recentemente numa revisitação ao catatau de papéis deixados pelo multiartista. A reprodução é feita desse material.



Aconteceu-me

Eu vinha de comprar fósforos
e uns olhos de mulher feita
olhos de menos idade que a sua
não deixavam acender-me o cigarro.
Eu era eureka para aqueles olhos.
Entre mim e ela passava gente como se não passasse
e ela não podia ficar parada
nem eu vê-la sumir-se.
Retive a sua silhueta
para não perder-me daqueles olhos que me levavam espetado.
E eu tenho visto olhos!
Mas nenhuns que me vissem
nenhuns para quem eu fosse um achado existir
para quem eu lhes acertasse lá na sua ideia
olhos como agulhas de despertar
como íman de atrair-me vivo
olhos para mim!
Quando havia mais luz
a luz torna-me quasi real o seu corpo
e apagavam-se-me os seus olhos
o mistério suspenso por um cabelo
pelo hábito deste real injusto
tinha de pôr mais distância entre ela e mim
para acender outra vez aqueles olhos
que talvez não fossem como eu os vi
e ainda que o não fossem, que importa?
Vi o mistério!
Obrigado a ti mulher que não conheço.


Almada Negreiros nasceu em S. Tomé e Príncipe no dia 7 de abril de 1893. Escritor e artista plástico, ajudou a fundar a revista Orpheu, veículo de introdução do modernismo em Portugal. Como escritor é autor de vasta obra inovadora que inclui prosa, poesia e teatro. Morreu em 15 de julho de 1970 em Lisboa.

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Um poema inédito de Manoel de Barros



A turma

A gente foi criado no ermo igual ser pedra.
Nossa voz tinha nível de fonte.
A gente passeava nas origens.
Bernardo conversava pedrinhas com as
rãs da tarde.
Sebastião fez um martelo de pregar água
na parede.
A gente não sabia botar comportamento
nas palavras.
Para nós obedecer a desordem das falas
infantis gerava mais poesia do que obedecer
as regras gramaticais.
Bernardo fez um ferro de engomar gelo.
Eu gostava das águas indormidas.
A gente queria encontrar a raiz das
palavras.
Vimos um afeto de aves no olhar de
Bernardo.
Logo vimos um sapo com olhar de árvore!
Ele queria mudar a Natureza?
Vimos depois um lagarto de olhos garços
beijar as pernas da Manhã!
Ele queria mudar a Natureza?
Mas o que nós queríamos é que a nossa
palavra poemasse.


* este texto é de 2013 e apresenta-se como inédito na reedição de parte da obra completa de Manoel de Barros, publicada pela LeYa Brasil.

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Três poemas de Emily Brontë



Eu não tenho a alma covarde

Eu não tenho a alma covarde,
Pois frente aos vendavais, eu nunca tremo:
O Paraíso brilha, arde,
Como a fé, pela qual eu nada temo.

Deus, meu peito Te abrigou.
Deidade poderosa e onipresente!
Vida – que em mim repousou.
Como eu – Vida Imortal – em Ti, potente!

Movem-nos o peito em vão
Mil credos que não são mais do que enganos;
Sem valor, brotos malsãos,
Ou a ociosa espuma do Oceano,

A pôr dúvidas num ente
Pego assim pela Tua infinidade;
Preso tão seguramente
Na firme Rocha da imortalidade!

Com o amor de um grande enleio
Teu espírito o tempo eterno anima,
Para cima e de permeio,
Muda, apoia, dissolve, cria e ensina.

Se a Terra e a lua findassem,
Se não houvesse sóis nem universos,
E se, só, Te abandonassem,
Haveria existência em Ti, por certo.

A Morte não tem lugar,
Nem pode um único átomo abater:
És o Sopro mais o Ser
Nada pode jamais Te exterminar.


Solidariedade

Não deves ter desesperança,
Cada estrela incendeia;
O silente orvalho se lança
E o sol tudo clareia.

Não à desesperança, embora
O pranto vá jorrar:
Mas os áureos anos de outrora
No peito hão de ficar.

Todos choram, como se deve,
O ar, qual nós, dá seus ais,
O pesar fica sob a neve,
Vêm folhas outonais,

Que revivem; pelo seu fado
O teu nunca é rompido:
Vai, mesmo que desanimado.

E jamais dolorido!


O velho estóico

Eu desprezo o Amor e a quem me ama,
Dos ricos, sei zombar;
É sonho a luxúria da Fama,
Que acaba ao despertar -

E se oro, a única Oração
Que a boca me devora
É - "Larga este meu coração
Deixa-me livre agora."

Quais dias de missão cumprida,
Estou eu a implorar - 
Alma livre na morte ou vida,
Coragem pra aguentar.


Emily Brontë nasceu a 30 de julho de 1818, em Thornton, na Inglaterra. A obra sempre lembrada da escritora é o romance O morro dos ventos uivantes, publicado em 1847 e transformado em grande sucesso literário. Com as irmãs, Charlotte e Anne, publicou um ano antes uma coletânea de poemas assinada com os pseudônimos Ellis, Currer e Acton Bell, respectivamente. A poeta morreu no dia 19 de dezembro de 1848, em Haworth. 

* Traduções de Renata Cordeiro publicadas primeiramente em Cadernos de Literatura em Tradução.


sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Três poemas inéditos de Adélia Prado



Sala de espera

A Bíblia, às vezes, não me leva em conta,
tão dura com minha gula.
Nem me adiantou envelhecer,
partes de mim seguem adolescentes,
estranhando privilégios.
Nunca me senti moradora,
a sensação é de exílio.
Criancinha de peito, essa já sabe,
seu olhar muda quando desmamada.
Tudo é igual a tudo,
mas por agora a unidade nos cega,
daí o múltiplo e suas distrações.
Deus sabe o que fez.
Mesmo com medo escrevo
que é 1º de julho de 2011.
Parece póstumo, parece sonho.
Alguma coisa não muda,
minha fraqueza me põe no caminho certo.
Deus nunca me abandonou.


Feira de São Tanaz

Os peixes me olham
de suas postas sangrentas.
Falta modéstia às frutas.
De ponta a ponta, barracas,
quero fugir dali
acossada pelos tomates
de inadequado esplendor.
Compro dois nabos para comê-los crus,
feito um eremita em sua horta.
Não por virtude,
por orgulho talvez travestido do júbilo
que me vendeu o diabo
em sua tenda de enganos.

Lápide para Steve Jobs

A Deus entrego meus pecados,
entrego-os a quem pertencem,
não a Satanás que é um dos nossos
e sofre também o tormento dos filhos
que têm o Pai ocupado em alimentar pardais.
Nem torres que tocam a lua,
ou o que quer que nos roube o fôlego,
fazem assomar Seu rosto.
Por que nos abandonastes?
Vosso Filho soube, na obediência da morte,
e o que se viu foi só um tremor rasgando a pele da terra.
Alguém no derradeiro instante exclamou Oh! Oh!
E fechou os olhos.
Eu não tenho aonde ir, tudo me ignora,
ignoro tudo, pois sou natureza.
Um beija-flor enfia numa flor natalina
o seu bico comprido e come e bebe e voa,
não pousa no meu ombro,
não bebe do meu olho a água de sal.
Por agora, o que me faz prosseguir
é sua indiferença. Esta ausência de milagre.

Adélia Prado nasceu a 13 de dezembro de 1935 em Divinópolis, Minas Gerais. Da sua obra, que inclui prosa e poesia, destaca-se esse último gênero, do qual publicou títulos como Bagagem (1975), Terra de Santa Cruz (1981), A faca no peito (1968), Oráculos de maio (1999), A duração do dia (2010).  
.

sábado, 30 de novembro de 2013

Três poemas coletados aleatoriamente de uma antologia de Fernando Pessoa





Se acaso, alheado até do que sonhei,
Me encontro neste mundo a sós comigo,
E, fiel ao que eu mesmo desprezei,
Meus passos falsos e verdadeiros sigo,

Desperta em mim, contrário ao que esperei
Desta espécie de fuga, ou só abrigo,
Não o ajustar-me com a externa lei,
Mas o essa lei tomar como castigo.

Então, liberto, já pela esperança
Deste mundo de formas e mudança,
Um pouco atinjo pela dor e a fé

Outro mundo, em que sonho e vida são
Num nada nulo, igual em escuridão,
E ao fim de tudo surge o Sol do que é.

28-9-1933


Em que parte de que caminho
Vou eu, que não sei onde vou?
Na rua sei onde é que estou.
Na vida ignoro de onde vou vizinho.

Não sei onde há esquina ou beco
Na vida vã que vou seguindo.
Sei que vou indo, ou não vou indo.
Não sei se, indo ou não indo, acerto ou peco.

Ah, a desgraça nossa, que é
Na vida escura caminhar
Por ir, e nunca por andar!
Que farei? Ir, ir estúpido e com fé...

2-10-1933


Tudo me cansa. Nada me consola.
O que fiz fi-lo em vão.
Tu, tocando arranjos de viola
Dás-me uma outra emoção.

Nem me viste, mas vieste. Isso me basta.
Toca sem dor nem fim.
E a tua música, vazia, contrasta
Com o pleno de mim.

Quanto levantes baixa-me, mas antes
Quero eu teu soluçar
Que a vida toda com os cambiantes
De dormir sem sonhar.

22-2-1934

Fernando Pessoa nasceu em 13 de junho de 1888, em Lisboa. Considerado um dos mais importantes poetas das literaturas de língua portuguesa, a sua poesia acabou por ser decisiva na evolução de toda a produção poética do século XX. Se nele é ainda notória a herança simbolista, Pessoa foi mais longe, não só quanto à criação (e invenção) de novas tentativas artísticas e literárias, mas também no que respeita ao esforço de teorização e de crítica literária. É um poeta universal, na medida em que nos foi dando, mesmo com contradições, uma visão simultaneamente múltipla e unitária da Vida. É precisamente nesta tentativa de olhar o mundo duma forma múltipla (com um forte substrato de filosofia racionalista e mesmo de influência oriental) que reside uma explicação plausível para ter criado os célebres heterônimos - Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis, sem contarmos ainda com o semi-heterônimo Bernardo Soares. Morreu em 30 de novembro de 1935.

domingo, 24 de novembro de 2013

Três poemas de Cruz e Sousa por Paulo Leminski



mudez perversa

Que mudez infernal teus lábios cerra
que ficas vago, para mim olhando
na atitude de pedra, concentrando
no entanto, n'alma, convulsões de guerra!

A minha tal fel essa mudez encerra,
tais demônios revéis a estão forjando,
que antes te visse morto, desabando
sobre o teu corpo grossas pás de terra.

Não te quisera nesse atroz e sumo
mutismo horrível que não gera nada,
que nada diz nada, não tem fundo e rumo.

Mutismo de tal dor desesperada,
que, quando o vou medir com o estranho prumo
da alma, fico com a alma alucinada!


alda

Alva do alvor das límpidas geleiras,
Desta ressumbra candidez de aromas...
Parece andar em nichos e redomas
De Virgens medievais que foram freiras.

Alta, feita no talhe das palmeiras,
A coma de ouro, com o cetim das comas,
Branco esplendor de faces e de pomas,
Lembra ter asas e asas condoreiras.

Pássaros, astros, cânticos, incensos,
Formam-lhe auréolas, sóis, nimbos imensos
Em torno à carne virginal e rara.

Alda faz meditar nas monjas alvas,
Salvas do Vício e do Pecado salvas,
Amortalhadas na pureza clara.


cristo de bronze

Ó Cristos de ouro, de marfim, de prata,
Cristos ideais, serenos, luminosos,
Ensanguentados Cristos dolorosos
Cuja cabeça a Dor e a Luz retrata.

Ó Cristos de altivez intemerata,
Ó Cristos de metais estrepitosos
Que gritam como os tigres venenosos
Do desejo carnal que enerva e mata.

Cristos de pedras, de madeira e barro...
Ó Cristo humano, estético, bizarro,
Amortalhado nas fatais injúrias...

Na rija cruz aspérrima pregado
Canta o Cristo de bronze do Pecado,
Ri o Cristo de bronze das luxúrias!...

* Poemas selecionados por Paulo Leminski para a biografia de Cruz e Sousa.


Cruz e Souza nasceu em Nossa Senhora do Desterro (atual Florianópolis), Santa Catarina em 24 de novembro de 1861 e morreu em 19 de março de 1898 em Curral Novo (atual Antônio Calos), Minas Gerais. Foi um dos precursores do simbolismo no Brasil. Sua obra está reunida em títulos como Broquéis (1893), Missal (do mesmo ano) e Tropos e fantasias (poema em prosa, datado de 1895). Postumamente publicou-se Últimos sonetos (1905), Evocações (poemas em prosa, de 1898), Faróis (1900), O livro derradeiro (1961) e Dispersos (no mesmo ano do anterior.

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Poemacto II, de Herberto Hélder








Minha cabeça estremece com todo o esquecimento.
Eu procuro dizer como tudo é outra coisa.
Falo, penso.
Sonho sobre os tremendos ossos dos pés.
É sempre outra coisa,
uma só coisa coberta de nomes.
E a morte passa de boca em boca com a leve saliva,
com o terror que há sempre
no fundo informulado de uma vida.

Sei que os campos imaginam as suas próprias rosas.
As pessoas imaginam os seus próprios campos de rosas.
E às vezes estou na frente dos campos
como se morresse;
outras, como se agora somente eu pudesse acordar.

Por vezes tudo se ilumina.
Por vezes sangra e canta.
Eu digo que ninguém se perdoa no tempo.
Que a loucura tem espinhos como uma garganta.
Eu digo: roda ao longe o outono,
e o que é o outono?
As pálpebras batem contra o grande dia masculino do pensamento.

Deito coisas vivas e mortas no espírito da obra.
Minha vida extasia-se como uma câmara de tochas.

- Era uma casa – como direi? – absoluta.

Eu jogo, eu juro.
Era uma casinfância.
Sei como era uma casa louca.
Eu metia as mãos na água: adormecia,
relembrava.
Os espelhos rachavam-se contra a nossa mocidade.

Apalpo agora o girar das brutais,
líricas rodas da vida.
Há no esquecimento, ou na lembrança total das coisas,
uma rosa como uma alta cabeça,
um peixe como um movimento rápido e severo.
Uma rosapeixe dentro da minha ideia desvairada.
Há copos, garfos inebriados dentro de mim.
- Porque o amor das coisas no seu tempo futuro
é terrivelmente profundo, é suave,
devastador.

As cadeiras ardiam nos lugares.
Minhas irmãs habitavam ao cimo do movimento
como seres pasmados.
Às vezes riam alto. Teciam-se
em seu escuro terrífico.
A menstruação sonhava podre dentro delas,
à boca da noite.
Cantava muito baixo.
Parecia fluir.
Rodear as mesas, as penumbras fulminadas.
Chovia nas noites terrestres.
Eu quero gritar paralém da loucura terrestre.
— Era húmido, destilado, inspirado.

Havia rigor. Oh, exemplo extremo.
Havia uma essência de oficina.
Uma matéria sensacional no segredo das fruteiras,
com as suas maçãs centrípetas
e as uvas pendidas sobre a maturidade.
Havia a magnólia quente de um gato.
Gato que entrava pelas mãos, ou magnólia
que saía da mão para o rosto da mãe sombriamente pura.
Ah, mãe louca à volta, sentadamente completa.
As mãos tocavam por cima do ardor
a carne como um pedaço extasiado.

Era uma casabsoluta – como direi? -
um sentimento onde algumas pessoas morreriam.
Demência para sorrir elevadamente.
Ter amoras, folhas verdes, espinhos
com pequena treva por todos os cantos.
Nome no espírito como uma rosapeixe.

- Prefiro enlouquecer nos corredores arqueados
agora nas palavras.
Prefiro cantar nas varandas interiores.
Porque havia escadas e mulheres que paravam
minadas de inteligência.
O corpo sem rosáceas, a linguagem para amar e ruminar.
O leite cantante.

Eu agora mergulho e ascendo como um copo.
Trago para cima essa imagem de água interna.
- Caneta do poema dissolvida no sentido primacial do poema.
Ou o poema subindo pela caneta,
atravessando seu próprio impulso,
poema regressando.
Tudo se levanta como um cravo,
uma faca levantada.
Tudo morre o seu nome noutro nome.

Poema não saindo do poder da loucura.
Poema como base inconcreta de criação.
Ah, pensar com delicadeza,
imaginar com ferocidade.
Porque eu sou uma vida com furibunda melancolia,
com furibunda concepção.
Com alguma ironia furibunda.


Sou uma devastação inteligente.
Com malmequeres fabulosos.
Ouro por cima.
A madrugada ou a noite triste tocadas
em trompete.
Sou alguma coisa audível, sensível.
Um movimento.
Cadeira congeminando-se na bacia,
feita o sentar-se.
Ou flores bebendo a jarra.
O silêncio estrutural das flores.
E a mesa por baixo.
A sonhar.

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Três poemas de Cecília Meireles


Motivo

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
 não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
 mais nada.


Discurso

E aqui estou, cantando.

Um poeta é sempre irmão do vento e da água:
deixa seu ritmo por onde passa.

Venho de longe e vou para longe:
mas procurei pelo chão os sinais do meu caminho
e não vi nada, porque as ervas cresceram e as serpentes
andaram.

Também procurei no céu a indicação de uma trajetória,
mas houve sempre muitas nuvens.
E suicidaram-se os operários de Babel.

Pois aqui estou, cantando.

Se eu nem sei onde estou,
como posso esperar que algum ouvido me escute?

Ah! Se eu nem sei quem sou,
como posso esperar que venha alguém gostar de mim? 


Retrato

Eu não tinha este rosto de hoje,
Assim calmo, assim triste, assim magro,
Nem estes olhos tão vazios,
Nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,
Tão paradas e frias e mortas;
Eu não tinha este coração
Que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,
Tão simples, tão certa, tão fácil:
 Em que espelho ficou perdida
a minha face?

Cecília Meireles nasceu a 7 de novembro de 1901, no Rio de Janeiro, cidade onde passou toda sua vida e de onde saiu para muitas viagens: nos anos quarenta para os Estados Unidos, onde deu palestras na Universidade do Texas, em seguida, México, Argentina, Uruguai, Chile... Professora e profunda interessada nas questões sobre educação no Brasil, Cecília começou sua carreira literária com a publicação de Espectros, em 1919. Depois desse livro se desenvolveu uma extensa bibliografia que transita entre a poesia, gênero que lhe deu reconhecimento, e na prosa. Morreu no dia 9 de novembro de 1964. 

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Três poemas de Bruna Beber



o que dói primeiro

todo urubu titia gritava
urubu urubu sua casa
tá pegando fogo

todo estrondo na rua
papai dizia eita porra
aposto qué bujão de gás

todo avião vovó acenava
é seu tio! Desquentrou preronáutica
num tenho mais sossego

temi e ainda temo toda espécie
inflamável lamentei tanto urubu
desabrigado desejei o fim
da força aérea brasileira

só custei a entender mamãe
e o que queria dizer com seu irmão
não vem mais brincar com você
papai do céu levou.


música no parque

dorotilde
nunca vimos
convulsa

toda vida
de sorriso
no portão

perfume para três
esquinas botava
zonza as alergias

e eu pirraça
de emoções
nas pernas

pensava jamais
fora mordida
nos lábios

e eu bandeirinha
de coração
nos olhos

a guardaria
até perder
os dentes


8. o romantismo

chumbo que respiro
minha saudade
te apodrece

e te renova
à medida que me lanço
noutra direção

tanto mofo
no que calo
por ti

vinagre
de dores ardentes
nos olhos

com fervoroso credo
em tua morte

minha vida.

De Rua da padaria. São Paulo: Record, 2013.

domingo, 3 de novembro de 2013

Três poemas de José Tolentino Mendonça


José Tolentino de Mendonça


Isto é o meu corpo

O corpo tem degraus, todos eles inclinados
milhares de lembranças do que lhe aconteceu
tem filiação, geometria
um desabamento que começa do avesso
e formas que ninguém ouve

O corpo nunca é o mesmo
ainda quando se repete:
de onde vem este braço que toca no outro,
de onde vêm estas pernas entrelaçadas
como alcanço este pé que coloco adiante?

Não aprendo com o corpo a levantar-me,
aprendo a cair e a perguntar


Dentro de casa

Todas as casas se parecem
com um naufrágio ou um saque
testam sucessivamente a elasticidade das gerações
compõem-se de heranças, jogos descasados,
cinco ou seis cores que vão ficando
sinais de um poder apenas atenuado

Quando estamos fora
à mercê dos elementos
o mundo celebra em nós
aquilo que se extingue


A ciência do amor

O amor é um acordo que nos escapa
premissas traficadas sem certeza noite fora
em casas devolutas, em temporais, em corpos que não o nosso
aluviões para tentar de forma contínua
num sofrimento corrosivo que ninguém consegue
não chamar também de alegria

Pensamos que quando chegasse as nossas vidas acelerariam
mas nem sempre é assim:
há emoções que nos aceleram
outras que nos abrandam

Um mês ou um século mais tarde
movem-se ainda,
tão subtilmente que não se notam


De Estação Central. Lisboa: Assírio & Alvim, 2012

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Carlos Drummond de Andrade: dois inéditos

Carlos Drummond de Andrade. Minas Gerais, 1930

É Eucanaã Ferraz em seu texto "Modos de morrer" publicado na edição dos Cadernos de Literatura Brasileira, do Instituto Moreira Salles, dedicada ao poeta Carlos Drummond de Andrade. Ao atentar para o tema da morte como um dos motivadores da poesia drommundiana, o estudioso recorre, dentre outros textos, um editado no número 4, de dezembro de 1927, da revista Verde

Convite ao suicídio

a Mário de Andrade

Vamos dar um tiro no ouvido?
Vamos?
Largar essa vida
largar esse mundo
comprar o último bilhete
e desembarcar na estação central do Infinito perante
                            a comissão importante de arcanjos
                            bem-aventurados profetas - vivoooo!

Vamos acabar com isso,
dar o fora nas aporrinhações.
Adeus contrariedades.
Nunca mais desastres
nem calos
nem desejos
nem percevejos nem nada.

Só um gesto
PUM PUM
Acabou-se.

Já estou cansado da Metro, da Paramount,
de todas as marcas inclusive a barbante.
A fita pau.
Repetir é casar dobrado.
Me dá o braço,
vamos s'embora.

A vida foi feita pros trouxas
que esperdiçam as riquezas do coração
nessa lenga-lenga infindável
e depois vão dormir o sono abençoado dos burros
                               justos pra recomeçar no dia
                               seguinte cedinho.

Vida que não é vida...

(Suspirei
foi pra abrir o peito,
soltar o último desgosto.)

Estou pronto pra sair.
Vamos sair juntos?
É mais divertido
e enche mais os jornais: um suicídio duplo, hein?
                             que mina pros repórteres e pros
                             cidadãos que gostam de misturar
                             o café matinal com histórias
                             de Smith and Wess.

A noite está fria.
Noite indiferente.

Vamos morrer daqui a um minuto
(se você não roer a corda)
e no entanto o Cruzeiro do Sul parece dizer: que m'importa.
E astros águas e terras repetem maquinalmente: que m'importa.

Eles têm razão.
Nós também temos.
Dois contribuintes de menos,
que perderá o Brasil com isso.
No frio da noite os amorosos multiplicam a espécie.
O Brasil é tão grande.
Mais grande que o mundo inteiro.
Estamos caceteados, vamos s'embora.

Adeus minha terra
terra bonita
pintada de verde
com bichos esquisitos e moleques treteiros,
abençoada pelo Deus brasileiro das felicidades e descarrilamentos.
Meu povo
amigos inimigos
canalha miúda
me despeço de todos sem exceção.
Apesar de ser inútil,
lembrem de mim nas suas orações.

Está na hora.
Agora vamos.
Me acompanhe nesse passo
tão complicado.
Me ajude a morre, 
morre com a gente,
irmãozinho.

Vamos fazer a grande besteira:
rebentar os miolos
e ir receber no céu o castigo de nossos amores
                    e o prêmio de nossas devassidões.


O outro poema também revelado por Eucanaã Ferraz foi escrito por Drummond numa correspondência para o amigo Cyro dos Anjos; este nunca veio a ser publicado em livro ou em periódico.

Maria ao lado do poeta

Não seja bobo, poeta.
O infinito está ao seu lado.
Maria está ao seu lado.
Provisoriamente ela é o infinito
e quem sabe se para sempre.

Mas não olhe lá para fora,
outras Marias estão passando
e dizendo que você é bobo,
que você não sabe, poeta,
como é bom amar no Brasil.

Olhe bem para o seu lado,
olhe Maria nos olhos,
nas mãos, no corpo, nos sapatos,
em tudo que ela tem de bom.
Depois feche os olhos sem pressa
dizendo: Maria é mesmo muito boa.
Depois fume, depois jogue víspora,
depois dê um tiro no crânio,
faça qualquer coisa, poeta,
Maria está ao seu lado.

Carlos Drummond de Andrade nasceu em Itabira, Minas Gerais, em 1902. Estreou na literatura em 1930 com a publicação de Alguma poesia e nos cinquenta anos seguintes publicou diversas obras fundamentais da literatura brasileira como Sentimento do mundoA rosa do povo e Claro enigma. Morreu no Rio de Janeiro em 1987. 

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Dois poemas de Ezra Pound



Envoi (1919)

Vai, livro natimudo,
E diz a ela
Que um dia me cantou essa canção de Lawes:
Houvesse em nós
Mais canção, menos temas,
Então se acabariam minhas penas,
Meus defeitos sanados em poemas
Para fazê-la eterna em minha voz

Diz a ela que espalha
Tais tesouros no ar,
Sem querer nada mais além de dar
Vida ao momento,
Que eu lhes ordenaria: vivam,
Quais rosas, no âmbar mágico, a compor,
Rubribordadas de ouro, só
Uma substância e cor
Desafiando o tempo.

Diz a ela que vai
Com a canção nos lábios
Mas não canta a canção e ignora
Quem a fez, que talvez uma outra boca
Tão bela quanto a dela
Em novas eras há de ter aos pés
Os que a adoram agora,
Quando os nossos dois pós
Com o de Waller se deponham, mudos,
No olvido que refina a todos nós,
Até que a mutação apague tudo
Salvo a Beleza, a sós.


E assim em Nínive

"Sim! Sou um poeta e sobre minha tumba
Donzelas hão de espalhar pétalas de rosas
E os homens, mirto, antes que a noite
Degole o dia com a espada escura.

"Veja! não cabe a mim
Nem a ti objetar,
Pois o costume é antigo
E aqui em Nínive já observei
Mais de um cantor passar e ir habitar
O horto sombrio onde ninguém perturba
Seu sono ou canto.
E mais de um cantou suas canções
Com mais arte e mais alma do que eu;
E mais de um agora sobrepassa
Com seu laurel de flores
Minha beleza combalida pelas ondas,
Mas eu sou poeta e sobre minha tumba
Todos os homens hão de espalhar pétalas de rosas
Antes que a noite mate a luz
Com sua espada azul.

"Não é, Ruaana, que eu soe mais alto
Ou mais doce que os outros. É que eu
Sou um Poeta, e bebo vida
Como os homens menores bebem vinho."

Ezra Pound nasceu a 30 de outubro de 1885 em Hailey. Poeta e crítico literário, Pound está ao lado de T. S. Eliot como dois marcos importantes do modernismo do início do século XX. Sua principal obra poética é Os cantos — trabalho de uma vida. Morreu a 1º de novembro de 1972, em Veneza.



* Traduções de Augusto de Campos


quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Três poemas de Paul Valéry



As romãs

Duras romãs entreabertas
Pelo excesso dos grãos de ouro,
Eu vejo reis, todo um tesouro
Nascer de suas descobertas!

Se os sóis de onde ressurgis,
Ó romãs de entrevista tez,
Vos fazem, prenhes de altivez,
Romper os claustros de rubis,

E se o ouro sece cede enfim
Ante a demanda ainda mais dura
E explode em gemas de carmim,

Essa luminosa ruptura
Faz sonhar uma alma que há em mim
De sua secreta arquitetura.


Sob o sol

Sob o sol em meu leito após a água -
Sob o sol e sob o reflexo enorme do sol sobre o mar,
Sob a janela,
Sob os reflexos e os reflexos dos reflexos
Do sol e dos sóis sobre o mar
Nos vidros,
Após o banho, o café, as ideias,
Nu sob o sol em meu leito todo iluminado
Nu - só - louco -
Eu!


A adormecida

Que segredo incandesces no peito, minha amiga,
Alma por doce máscara aspirando a flor?
De que alimentos vãos teu cândido calor
Gera essa irradiação: mulher adormecida?

Sopro, sonhos, silêncio, invencível quebranto,
Tu triunfas, ó paz mais potente que um pranto,
Quando de um pleno sono a onda grave e estendida
Conspira sobre o seio de tal inimiga

Dorme, dourada soma: sombras e abandono.
De tais dons cumulou-se esse temível sono,
Corça languidamente longa além do laço,

Que embora a alma ausente, em luta nos desertos,
Tua forma ao ventre puro, que veste um fluido braço,
Vela, Tua forma vela, e meus olhos: abertos.

 
Paul Valéry nasceu a 30 de outubro de 1871, em Sète. Um dos mais importantes nomes do simbolismo francês, sendo um frequentador do círculo composto por, entre outros, Stéphane Mallarmé. Morreu em Paris no dia 20 de julho de 1945. 


* Traduções de Augusto de Campos


sábado, 19 de outubro de 2013

Cinco poemas de Vinicius de Moraes



Poética

De manhã escureço
De dia tardo
De arte anoiteço
De noite ardo.

A oeste a morte
Contra quem vivo
O este é meu norte.

Outros que contem
Passou por passo:
Eu morro ontem

Nasço amanhã
Ando onde há espaço:
- Meu tempo é quando.


Soneto do amor maior

Amo-te tanto, meu amor... não cante
O humano coração com mais verdade...
Amo-te como amigo e como amante
Numa sempre diversa realidade.

Amo-te afim, de um calmo amor prestante
E te amo além, presente na saudade
Amo-te, enfim, com grande liberdade
Dentro da eternidade e a cada instante.

Amo-te como um bicho, simplesmente
De um amor sem mistério e sem virtude
Com um desejo maciço e permanente.

E de te amar assim, muito e amiúde
É que um dia em teu corpo de repente
Hei de morrer de amar mais do que pude.


Soneto do só

Depois foi só. O amor era mais nada
Sentiu-se pobre e triste como Jó
Um cão veio lamber-lhe a mão na estrada
Espantado, parou. Depois foi só.

Depois veio a poesia ensimesmada
Em espelhos. Sofreu de fazer dó
Viu a faca do Cristo ensanguentada
Da sua imagem – e orou. Depois foi só.

A anunciar anjos sanguinários...
Depois cerrou os olhos solitários
E só então foi totalmente a sós.


Ternura

Eu te peço perdão por te amar de repente
Embora o meu amor seja uma velha canção nos teus ouvidos
Das horas que passei à sombra dos teus gestos
Bebendo em tua boca o perfume dos sorrisos
Das noites que vivi acalentado
Pela graça indizível dos teus passos eternamente fugindo
Trago a doçura dos que aceitam melancolicamente.
E posso te dizer que o grande afeto que te deixo
Não traz o exaspero das lágrimas nem a fascinação das
                                                                       [promessas
Nem as misteriosas palavras dos véus da alma...
É um sossego, uma unção, um transbordamento de carícias
E só te pede que te repouses quieta, muito quieta
E deixes que as mãos cálidas da noite encontrem sem
                             [fatalidade o olhar extático da aurora.



Bilhete a Baudelaire

Poeta, um pouco à tua maneira
E para distrair o spleen
Que estou sentindo vir a mim
Em sua ronda costumeira

Folheando-te, reencontro a rara
Delícia de me deparar
Com tua sordidez preclara
No velha foto de Carjat

Que não revia desde o tempo
Em que te lia e te relia
A ti, a Verlaine, a Rimbaud…

Como passou depressa o tempo
Como mudou a poesia
Como teu rosto não mudou!

“Vinicius de Moraes é um dos poucos poetas que conservaram no seio da modernidade toda a força da grande tradição lírica da língua portuguesa”. A afirmativa é de Antonio Candido. Autor de uma extensa obra poética das mais significativas para a literatura brasileira, o poeta nasceu a 19 de outubro de 1913, no bairro da Gávea, Rio de Janeiro. Formado em Letras no Santo Inácio, em Direito e do Curso de Oficial da Reserva, o primeiro livro vem depois de já colaborar com músicos com letras como a dos foxes “Loura ou morena” e “Canção da noite”, gravadas pelos Irmãos Tapajós em 1932; chama-se O caminho para distância. Depois, vêm outros vários: como: Forma e exegese, Cinco elegias, Orfeu da Conceição (peça), Livro de sonetos ou Para uma menina com uma flor. Morreu a 9 de julho de 1980.

domingo, 29 de setembro de 2013

Três poemas de W. H. Auden



A carta

Desde a primeira descida a um novo
Vale, com um franzir de sobrolhos
Por causa do sol e dos extravios,
Nele ficas, por certo: hoje ouvi o
Grito de um pássaro inopinado
Contra a tempestade, eu agachado
Atrás de um redil de carneiros; vi
O arco do ano completar-se e aí
Refazer-se o gasto giro do amor,
Sem fim nem desvio enganador.
Há de ver, há de passar, como vimos
A andorinha no teto, o verdeprimo
Arrepio da primavera, passou
Um trem solitário, que encerrou
As manobras de outono. Mas ei-la,
Interrompendo a reflexão caseira,
O pensamento afeito ao entardecer,
A carta, a tua voz mesma a dizer
Muitas coisas, mas não que regressas.

O dedo não dorme, a fala não cessa
Quando amor recebe, bem amiúde,
Uma injusta resposta que o ilude.
Eu, a par das estações, vou indo
Sempre vário e com um amor distinto;
Não questiono em demasia o aceno
E o sorriso pétreo deste ameno
Deus rústico que tem receio, sempre,
De dizer algo mais do que pretende.


O agente secreto

O controle dos passos era, ele o via, a chave
Desse novo distrito, mas quem a obteria?
Ele, o espião experiente, meteu-se na armadilha
Para um falso guia, atraído pelos velhos truques.

Greenheart era um bom lugar para uma barragem
E energia fácil, se houvessem aproximado
Mais a ferrovia. Ignoraram seus telegramas:
Não construíram as pontes e lá vinha encrenca.

Agora, a música das ruas encantava
Quem passou semanas no deserto. Desperto
Pela água fugindo no escuro, várias vezes
Censurou à noite a ausência da companhia
Sonhada. Atirariam, é claro, separando
Facilmente dois que nunca se haviam juntado.


Lunar, esta beleza

Lunar, esta beleza
É primeva, inteira,
Não tem nenhuma história.
Se a beleza mais tarde
Exibe algum traço,
Foi porque teve amante,
Já não é como antes.

Nisto, qual em sonho,
Vige um outro tempo,
Perdido se o dia
De tudo se apropria.
O tempo são centímetros
E mudanças de alma
Que espectro assombrou,
Perdeu e desejou.

Mas isto, por certo,
Não foi coisa de espectro,
Nem espectro, ela finda,
Sentiu-se a gosto, ainda,
E enquanto persista,
Nem se chega amor
A tal doçura e a dor
Tampouco lhe vem dar
Seu infinito olhar.

W. H. Auden nasceu em York, Inglaterra, em 1907, e morreu em Viena, Áustria, em 1973. Um dos poetas que mais influenciam ainda hoje a lírica inglesa, estreou em 1930, e pelos quarenta anos seguintes construiria uma sólida carreira graças a uma obra vasta e decisiva que é um depoimento profundamente pessoal sobre o espírito do nosso tempo.

AUDEN, W. H. Poemas. Tradução de José Paulo Paes e João Moura Júnior. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.


quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Três poemas de Manuel Bandeira



A Estrela da Manhã

Eu quero a estrela da manhã
Onde está a estrela da manhã?
Meus amigos meus inimigos
Procurem a estrela da manhã

Ela desapareceu ia nua
Desapareceu com quem?
Procurem por toda a parte

Digam que sou um homem sem orgulho
Um homem que aceita tudo
Que me importa? Eu quero a estrela da manhã

Três dias e três noites
Fui assassino e suicida
Ladrão, pulha, falsário

Virgem mal-sexuada
Atribuladora dos aflitos
Girafa de duas cabeças
Pecai por todos pecai com todos

Pecai com os malandros
Pecai com os sargentos
Pecai com os fuzileiros navais
Pecai de todas as maneiras

Com os gregos e com os troianos
Com o padre e com o sacristão
Com o leproso de Pouso Alto

Depois comigo

Te esperarei com mafuás novenas cavalhadas
comerei terra e direi coisas de uma ternura tão simples
Que tu desfalecerás
Procurem por toda parte
Pura ou degradada até a última baixeza
eu quero a estrela da manhã


Belo Belo

Belo belo belo,
Tenho tudo quanto quero.

Tenho o fogo de constelações extintas há milênios.
E o risco brevíssimo - que foi? passou - de tantas estrelas cadentes.

A aurora apaga-se,
E eu guardo as mais puras lágrimas da aurora.

O dia vem, e dia adentro
Continuo a possuir o segredo grande da noite.

Belo belo belo,
Tenho tudo quanto quero.

Não quero o êxtase nem os tormentos.
Não quero o que a terra só dá com trabalho.

As dádivas dos anjos são inaproveitáveis:
Os anjos não compreendem os homens.

Não quero amar,
Não quero ser amado.
Não quero combater,
Não quero ser soldado.

- Quero a delícia de poder sentir as coisas mais simples.


Gazal em Louvor de Hafiz

Escuta o gazal que fiz,
Darling, em louvor de Hafiz:

- Poeta de Chiraz, teu verso
Tuas magoas e as minhas diz.

Pois no mistério do mundo
Também me sinta infeliz.

Falaste: “Amarei constante
Aquela que não me quis.”

E as filhas de Samarcanda,
Cameleiros e sufis

Ainda repetem os cantos
Em que choras e sorris.

As bem amadas ingratas,
São pó; tu, vives, Hafiz!

Petrópolis, 1943


Manuel Bandeira nasceu no Recife no dia 19 de abril de 1886. Ingressou em 1903 na Escola Politécnica, pretendendo tornar-se arquiteto; à noite estuda desenho e pintura com o arquiteto Domenico Rossi no Liceu de Artes e Ofícios. No final do ano de 1904, o fica sabendo que está tuberculoso, abandona suas atividades e volta para o Rio de Janeiro e em busca de melhores climas para sua saúde, passa temporadas em diversas cidades – Campanha, Teresópolis, Maranguape, Uruquê, Quixeramobim. Em 1917 publica seu primeiro livro, A cinza das horas, numa edição de 200 exemplares custeada pelo autor. Depois disso, sua obra se expande em vias diversas: além da poesia, cultiva a crônica e o ensaio. Dos títulos vale citar CarnavalLibertinagemEstrela da manhã (poesia), Crônicas da província do BrasilAndorinha, Andorinha (crônica), Apresentação da poesia brasileiraHistória das literaturasItinerário de Pasárgada (ensaio). Bandeira morreu em 13 de outubro de 1968. 

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Dois poemas de Álvaro Mutis


Da cidade

Quem vê à entrada da cidade
o sangue vertido por antigos guerreiros?
Quem ouve o golpe das armas
e o chuvisco noturno das mulas?
Quem guia a coluna de fumaça e dor
que as batalhas deixam ao cair da tarde?
Nem o mais miserável, nem o mais vicioso
nem o mais débil e esquecido dos habitantes
recorda algo desta história.
Hoje, quando o amanhecer cresce nos parques
o odor dos pinheiros recém cortados,
esse aroma resinoso e brilhante
como a lembrança vaga da fêmea magnífica
ou como a dor de uma besta indefesa,
hoje, a cidade se entrega inteiramente
a sua névoa suja e a seus ruídos cotidianos.
E, no entanto o mito está presente,
subsiste nos cantos onde os mendigos
inventam uma trêmula cadeia de prazer,
nos altares que a traça corrói
e cobre de pó com manso e terso olvido,
nas portas que se abrem de repente
para mostrar ao sol um opulento torso
de mulher que desperta entre laranjeiras
- branda fruta morta, ar vão de alcova –.
Na paz do meio-dia, nas horas do alvorecer,
nos trens sonolentos carregados de animais
que choram a ausência de suas crias,
ali está o mito perdido, irresgatável, estéril.


Estela para Arthur Rimbaud

Senhor das arenas
recorres teus domínios
e desde o mirante
da mais alta torre
partem tuas ordens
que vão diluir-se
no vazio surdo
do estuário.
Senhor das armas
ilusórias, há tempos
que o olvido trabalha
teus poderes,
que teu nome, teu reino,
a torre, o estuário,
as arenas e as armas
se apagaram para sempre
do já roto tapete
que as narrava.
Não agites mais
teus corroídos estandartes.
Na quietude, no silêncio,
hás de penetrar
abandonado

as tramas funerais.

Álvaro Mutis nasceu em Bogotá em 1923. Apenas dois anos depois, a família mudou-se para Bruxelas, onde fez toda suas primeiras letras, educando-se em francês. O retorno para a Colômbia acontece em 1939 e em 1942 começa a trabalhar no rádio, passando para o periódico Vida como chefe de redação. Sua estreia na literatura é com La balanza, livro publicado com Carlos Patiño, em 1948. Quatro anos a seguir, sai Los elementos del desastre, ocasião quando já atuava na publicidade, mais tarde nas relações públicas, funções que o levaram a ir viver no México. Antes da prisão de um ano e meio, ainda publicou Reseña de los hospitales de ultramar e na saída do cárcere havia escrito Cuatro relatosLos trabajos perdidos e Diario de Lecumberri. A vida dedicada à poesia só o alcançaria depois de viajar a América Latina como funcionário de distribuidoras estadunidenses para a venda séries televisivas. Alguns dos vários reconhecimentos recebidos por sua obra foram os prêmios Príncipe de Astúrias e Rainha Sofía de Poesia. Álvaro Mutis morreu na Cidade do México em 2013.

* Traduções de Antonio Miranda.

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Dois poemas de António Ramos Rosa


Um no outro

Não aceito o que ainda não tem nome. Escuto
a noite de uma árvore, um ventre sem umbigo.
Nada desejo e desejo o imóvel fundo.
Quero conhecer a pele nua e o sol da vulva,
que a palavra respire e seja planície.
Viver é o teu ventre na frescura do começo.
Cada parcela do teu corpo expande o sangue solar.
Do fundo de mim tu caminhas para mim.
Que delícia estender-me até ao teu nome cego!
No triangulo perfeito somos um no outro.
Inundo-te como uma lava como um vento de vertigem.
Em ti penetro até ao fundo, até á perda,
ó corpo incandescente!


Ninguém me disse: Vai por este caminho de água

Ninguém me disse: Vai por este caminho de água
ou Segue esta vereda silenciosa
Eu vivia na obscuridade com uma lâmpada negra
e a tortura do infinito na minha cabeça esguia
Mas eu amava os muros com insectos e urtigas
e os campos de verdura leve e os límpidos regatos
Era um homem da terra que queria pertencer à terra
e consagrá-la numa relação viva e fértil
Eu queria construir com a matéria espessa
um edificio solar com amplas vidraças
e um terraço aberto à dinâmica languidez do mar
Não sei se o que fiz tem a solidez flexível
de um corpo vegetal mas com extensas pedras
Os que o habitarem talvez se deslumbrem com as claras planícies
e amem a tranquilidade misteriosa dos vales obscuros
Mas para mim não é mais que um amontoado de folhas
algumas verdes outras secas e todas o vento varrerá

António Ramos Rosa nasceu em Faro no dia 17 de outubro de 1924. Escreveu poesia e prosa (crítica literária); do primeiro gênero deixou extensa obra literária que mereceu o reconhecimento pela variedade de premiações recebidas, dentre os quais pode-se destacar o Prêmio Nacional de Poesia, recusado pelo autor, o Prêmio PEN Clube Português de Poesia e o Grande Prêmio Sophia de Mello Breyner Andresen. Sua obra de estreia foi O grito claro, em 1958  e a última em vida Numa folha, leve e livre, em 2013. O poeta morreu nesse mesmo ano em 23 de setembro.

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Três poemas de Álvares de Azevedo



A lagartixa
  
A lagartixa ao sol ardente vive
E fazendo verão o corpo espicha:
O clarão de teus olhos me dá vida,
Tu és o sol e eu sou a lagartixa.

Amo-te como o vinho e como o sono,
Tu és meu copo e amoroso leito...
Mas teu néctar de amor jamais se esgota,
Travesseiro não há como teu peito.

Posso agora viver: para coroas
Não preciso no prado colher flores;
Engrinaldo melhor a minha fronte
Nas rosas mais gentis de teus amores

Vale todo um harém a minha bela,
Em fazer-me ditoso ela capricha...
Vivo ao sol de seus olhos namorados,
Como ao sol de verão a lagartixa.


Vagabundo

Eat, drink, and love; what can the rest avail us?
(Lord Byron, Don Juan).

Eu durmo e vivo ao sol como um cigano,
Fumando meu cigarro vaporoso;
Nas noites de verão namoro estrelas;
Sou pobre, sou mendigo e sou ditoso!

Ando roto, sem bolsos nem dinheiro;
Mas tenho na viola uma riqueza:
Canto à lua de noite serenatas,
E quem vive de amor não tem pobreza.

Não invejo ninguém, nem ouço a raiva
Nas cavernas do peito, sufocante,
Quando a noite na treva em mim se entornam
Os reflexos do baile fascinante.

Namoro e sou feliz nos seus amores
Sou garboso e rapaz... Uma criada
Abrasada de amor por um soneto
Já um beijo me deu subindo a escada...

Oito dias lá vão que ando cismado
Na donzela que ali defronte mora.
Ela ao ver-me sorri tão docemente!
Desconfio que a moça me namora!...

Tenho meu por meu palácio as longas ruas;
Passeio a gosto e durmo sem temores;
Quando bebo, sou rei como um poeta,
E o vinho faz sonhar com os amores.

O degrau das igrejas é meu trono,
Minha pátria é o vento que respiro,
Minha mãe é a lua macilenta,
E a preguiça a mulher por quem suspiro.

Escrevo na parede as minhas rimas,
De painéis a carvão adorno a rua;
Como as aves do céu e as flores puras
Abro meu peito ao sol e durmo à lua.

Sinto-me um coração de lazzaroni;
Sou filho do calor, odeio o frio,
Não creio no diabo nem nos santos...
Rezo a Nossa Senhora e sou vadio!

Ora, se por aí alguma bela
Bem doirada e amante da preguiça
Quiser a nívea mão se unir à minha,
Há de achar-me na Sé, domingo, à Missa.


Quando, à noite, no leito perfumado

Quando, à noite, no leito perfumado
Lânguida fronte no sonhar reclinas,
No vapor da ilusão por que te orvalha
Pranto de amor as pálpebras divinas?

E, quando eu te contemplo adormecida
Solto o cabelo no suave leito,
Por que um suspiro tépido ressona
E desmaia suavíssimo em teu peito?

Virgem do meu amor, o beijo a furto
Que pouso em tua face adormecida
Não te lembra do peito os meus amores
E a febre do sonhar de minha vida?

Dorme, ó anjo de amor! no teu silêncio
O meu peito se afoga de ternura...
E sinto que o porvir não vale um beijo
E o céu um teu suspiro de ventura!

Um beijo divinal que acende as veias,
Que de encantos os olhos ilumina,
Colhido a medo, como flor da noite,
Do teu lábio na rosa purpurina...

E um volver de teus olhos transparentes,
Um olhar dessa pálpebra sombria
Talvez pudessem reviver-me n'alma
As santas ilusões de que eu vivia!

Álvares de Azevedo nasceu em São Paulo no dia 12 de setembro de 1831 e morreu no Rio de Janeiro em  25 de abril de 1852. Ficou reconhecido entre os nomes principais da segunda geração do romantismo brasileiro. Escreveu contos, peças de teatro, ensaios e poemas. Deste último gênero publicou Lira dos vinte anos, um livro que era planejado para se chamar As três liras.  

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Um poema de Antonin Artaud

Antonin Artaud


Tutuguri - o rito o sol negro

E lá embaixo, no pé da encosta amarga,
cruelmente desesperada do coração,
abre-se o círculo das seis cruzes
bem lá embaixo
como se incrustada na terra amarga
desincrustada do imundo abraço da mãe
que baba.

A terra do carvão negro
é o único lugar úmido
dessa fenda de rocha.

O Rito é o novo sol passar através de sete pontos antes de explodir
no orifício da terra.

Há seis homens,
um para cada sol
e um sétimo homem
que é o sol
cru
vestido de negro e carne viva.

Mas este sétimo homem
é um cavalo,
um cavalo com um homem conduzindo-o.

Mas é o cavalo
que é o sol
e não o homem.

No dilaceramento de um tambor e de uma trombeta longa
estranha,
os seis homens
que estavam deitados
tombados no rés do chão,
brotaram um a um como girassóis,
não sóis
porém solos que giram,
lótus d'água,
e a cada um que brota
corresponde, cada vez mais sombria
e refreada
a batida do tambor

até que de repente chega a galope, a toda velocidade
o último sol
o primeiro homem,
o cavalo negro com um
homem nu,
absolutamente nu
e virgem
em cima.

Depois de saltar, eles avançam em círculos crescentes
e o cavalo em carne viva empina-se
e corcoveia sem parar
na crista da rocha
até os seis homens
terem cercado
completamente
as seis cruzes.

Ora, o tom maior do Rito é precisamente

A ABOLIÇÃO
DA CRUZ

Quando terminam de girar
arrancam
as cruzes do chão
e o homem nu
a cavalo
ergue
uma enorme ferradura
banhada no sangue de uma punhalada.


Poema traduzido por Claudio Willer. Publicado antes no blog Cantar a pele da lontra.