domingo, 24 de fevereiro de 2013

Cinco poemas de David Mourão-Ferreira



Não me fales agora de outras terras,
de outros céus, de outro tecto, de outra cama.
Continua a contar os meus orgasmos,
já que essa aritmética te exalta;
a percutir de cânticos três grutas,
de gôndola sulcando todas elas;
a trejurar que não, que não, que nunca
assim, nem quase assim, com ninguém mais.
Nasces e morres, morres e renasces:
como hás-de te lembrar de tantas vidas?

Quero, não quero, já não sei se quero
esses frutos do trópico, esse cálido
país de que tu falas. É tão triste
o modo como dizes que talvez.

*

E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos E por vezes

encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes

ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos

E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se envolam tantos anos.


*

Se é sem dúvida Amor esta explosão
de tantas sensações contraditórias;
a sórdida mistura das memórias,
tão longe da verdade e da invenção;

o espelho deformante; a profusão
de frases insensatas, incensórias;
a cúmplice partilha nas histórias
do que os outros dirão ou não dirão;

se é sem dúvida Amor a cobardia
de buscar nos lençóis a mais sombria
razão de encantamento e de desprezo;

não há dúvida, Amor, que te não fujo
e que, por ti, tão cego, surdo e sujo,
tenho vivido eternamente preso!


Ternura 

Desvio dos teus ombros o lençol
que é feito de ternura amarrotada,
da frescura que vem depois do Sol,
quando depois do Sol não vem mais nada

Olho a roupa no chão que tempestade!
há restos de ternura pelo meio,
como vultos perdidos na cidade
em que uma tempestade sobreveio…

Começas a vestir-te, lentamente,
e é ternura também que vou vestindo,
para enfrentar lá fora aquela gente
que da nossa ternura anda sorrindo

Mas ninguém sonha a pressa com que nós
a despimos assim que estamos sós!


A secreta viagem

No barco sem ninguém, anónimo e vazio,
ficámos nós os dois, parados, de mão dada ...
Como podem só os dois governar um navio?
Melhor é desistir e não fazermos nada!
Sem um gesto sequer, de súbito esculpidos,
tornamo-nos reais, e de maneira, à proa...
Que figuras de lenda! Olhos vagos, perdidos...
Por entre nossas mãos, o verde mar se escoa...
Aparentes senhores de um barco abandonado,
nós olhamos, sem ver, a longínqua miragem...
Aonde iremos ter?  Com frutos e pecado,
se justifica, enflora, a secreta viagem!
Agora sei que és tu quem me fora indicada.
O resto passa, passa... alheio aos meus sentidos.
 Desfeitos num rochedo ou salvos na enseada,
a eternidade é nossa, em madeira esculpidos!

David Mourão-Ferreira nasceu a 24 de fevereiro de 1927, em Lisboa. Sua atividade literária se desenvolve desde cedo com a publicação de A viagem, em 1950. Este livro de poesia inaugura uma extensa obra nesse gênero, mas Mourão-Ferreira também publicou prosa (novela, conto, romance e ensaio). Do romance, por exemplo, destaca-se com Um amor feliz, livro que lhe valeu vários e importantes prêmios, como o Grande Prêmio de Romance e Novela APE/ DGLB, o Prêmio Literário Município de Lisboa e o Prêmio D. Dinis — todos pela publicação da obra, em 1986. Na poesia destaca-se ainda por Tempestade de verão (1954), Os quatro cantos do tempo (1958), Lira de bolso (1969), Matura idade (1973), As lições do fogo (1976), Os ramos e os remos (1985), Música de cama (1994), entre outros. Morreu a 16 de junho de 1996. 

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Um poema de André Breton




A UNIÃO LIVRE

Minha mulher com o cabelo de fogo de lenha
Com pensamentos de relâmpagos de calor
De talhe de ampulheta
Minha mulher com a talhe de lontra entre os dentes de tigre
Minha mulher com a boca de roseta e de buquê de estrelas de última grandeza
Com dentes de rastro de camundongo sobre a terra branca
Com língua de âmbar e de vidro em atritos
Minha mulher com língua de hóstia apunhalada
Com a língua de boneca que abre e fecha os olhos
Com a língua de inacreditável pedra
Minha mulher com cílios de lápis de cor das crianças
Com sobrancelhas de borda de ninho de andorinha
Minha mulher com têmporas de ardósia de teto de estufa
E de vapor nos vidros
Minha mulher com espáduas de champanhe
E de fonte com cabeças de delfins sob o gelo
Minha mulher com pulsos de fósforos
Minha mulher com dedos de acaso e de ás de copas
De dedos de feno ceifado
Minha mulher com axilas de marta e de faia
De noite de São João
De ligustro e de ninho de carás
Com braços de espuma de mar e de eclusa
E de mistura do trigo e do moinho
Minha mulher com pernas de foguete
Com movimentos de relojoaria e de desespero
Minha mulher com panturrilhas de polpa de sabugueiro
Minha mulher com pés de iniciais
Com pés de chaveiros com pés de calafates que bebem
Minha mulher com pescoço de cevada perolada
Minha mulher com a garganta de Vale d’Ouro
De encontro no leito mesmo da torrente
Com seios de noite
Minha mulher com seios de toupeira marinha
Minha mulher com seios de crisol de rubis
Com seios de espectro da rosa sob o orvalho
Minha mulher com ventre de desdobra de leque dos dias
Com ventre de garra gigante
Minha mulher com dorso de pássaro que foge vertical
Com dorso de mercúrio
Com dorso de luz
Com a nuca de pedra rolada e de giz molhado
E de queda de um copo do qual se acaba de beber
Minha mulher com ancas de chalupa
Com ancas de lustre e de penas de flecha
E de caule de plumas de pavão branco
De balança insensível
Minha mulher com nádegas de arenito e de amianto
Minha mulher com nádegas de dorso de cisne
Minha mulher com nádegas de primavera
Com sexo de gladíolo
Minha mulher com sexo de mina de ouro e de ornitorrinco
Minha mulher com sexo de algas e de bombons antigos
Minha mulher com sexo de espelho
Minha mulher com olhos cheios de lágrimas
Com olhos de panóplia violeta e de agulha magnetizada
Minha mulher com olhos de savana
Minha mulher com olhos d’água para beber na prisão
Minha mulher com olhos de madeira sempre sob o machado
Com olhos de nível d’água de nível do ar de terra e de fogo.

André Breton nasceu a 19 de fevereiro de 1896. Sua vivência com a literatura começa cedo, desde sua estadia como enfermeiro na cidade de Nantes durante a Primeira Guerra, ocasião quando trava conhecimento com um dos discípulos espirituais de Alfred Jarry, Jacques Vaché. Três anos depois desse encontro, isto é, em 1919, funda com Louis Aragon, a revista Littérature; na mesma época entra em contato com o criador do Dadaísmo, Tristan Tzara. Não tarda e, em 1924, publica o Primeiro Manifesto Surrealista, atraindo ao seu convívio autores como Paul Éluard, René Crevel, Michel Leiris, Robert Desnos, entre outros, e entrando em definitivo para o rol dos mais importantes nomes da literatura do século XX. Escreveu prosa (ensaio e romance) e poesia.


* Tradução: Priscila Manhães e Carlos Eduardo Ortolan. Publicado inicialmente na revista Zunái.


domingo, 17 de fevereiro de 2013

Oito poemas de Heinrich Heine




 Acreditava antigamente
Que todo beijo que me tiram,
Ou que recebo de presente,
Fosse por obra do destino.

Deram-me beijos e beijei,
Antes com tanta seriedade,
Como se obedecesse às leis
Que regem a necessidade.

Agora sei como é supérfluo
E não me faço de rogado,
Vou dando beijos em excesso,
Incrédulo e despreocupado.

[1832–1836]


Esperem só

Só porque arraso quando arrojo
Raios, acham que não sei troar.
Ora, meus senhores, ao contrário:
Na arte do trovão não sou pior!
      
No devido dia, eu ponho à prova,
Quem duvida agora é só esperar;
O meu peito então vai trovejar,
E trincar os céus, a minha voz!

No fragor daquele furacão,
Os carvalhos secos vão rachar,
Os castelos vão desmoronar,
Velhas catedrais, ruir ao chão!

[1844]


Os tecelões da Silésia

Não há lágrimas em seus olhares;
Rangem dentes diante dos teares:
Alemanha, nós tecemos tua mortalha,
E tramamos nossa tripla maldição –
Nós tecemos e tramamos!

Maldição ao Deus a quem oramos,
Quando a fome e o frio nos maltratam;
Suplicamos de joelhos sua graça,
Ele tripudia e ri da nossa cara –
Nós tecemos e tramamos!

Maldição ao Rei, rei dos ricaços,
Da miséria faz tão pouco caso;
Nos roubou até o último centavo
Para nos lançar nos braços do carrasco –
Nós tecemos e tramamos!

Maldição à Pátria desamada,
Onde o escárnio e a humilhação se alastram;
Onde a flor que flore é logo estraçalhada;
Onde a podridão seus vermes amealha –
Nós tecemos e tramamos!
      
 Voa a lançadeira no tear,
Noite e dia, trabalhamos sem parar –
Alemanha, nós tecemos tua mortalha,
E tramamos nossa tripla maldição,
Nós tecemos e tramamos!
        
[1844–1845]


Efeméride
      
Missa alguma irão cantar,
Nem Kadisch irão dizer,
Nada dito e nem cantado
Para mim, quando eu morrer.
      
Mas quem sabe não se anime
A Mathilde a um passeio
a Montmartre com Pauline,
Não fazendo tempo feio.
      
Com a coroa de flores
Ela enfeita a minha lápide,
E suspira: pauvre homme!
Segurando suas lágrimas.
      
Como eu moro muito alto
E não tenho nem cadeira,
Seu pezinho está inchado
E lhe dá uma canseira!
      
 Meu chuchu, creio que não
Deves regressar a pé;
Lá pertinho do portão,
Pegas um cabriolé.

 [1851]


Larga as parábolas sagradas,
Deixa as hipóteses devotas,
E põe-te em busca das respostas
Para as questões mais complicadas.
      
Por que se arrasta miserável
O justo carregando a cruz,
Enquanto, impune, em seu cavalo,
Desfila o ímpio de arcabuz?
      
 De quem é a culpa? Jeová
Talvez não seja assim tão forte?
Ou será Ele o responsável
Por todo o nosso azar e sorte?

E perguntamos o porquê,
Até que súbito – afinal –
Nos calam com a pá de cal –
Isto é resposta que se dê?
        
[1854]


Legado

A minha vida chega ao fim,
Escrevo pois meu testamento;
Cristão, eu lego aos inimigos
Dádivas de agradecimento.

Aos meus fiéis opositores
Eu deixo as pragas e doenças,
A minha coleção de dores,
Moléstias e deficiências.

Recebam ainda aquela cólica,
Mordendo feito uma torquês,
Pedras no rim e as hemorroidas,
Que inflamam no final do mês.

As minhas cãimbras e gastrite,
Hérnias de disco e convulsões –
Darei de herança tudo aquilo
Que usufruí em diversões.

Adendo à última vontade:
Que Deus caído em esquecimento
Lembre de vós e vos apague
Toda a memória e sentimento.


Os anjos

Eu, incrédulo Tomé,
Já não creio na doutrina
Que o rabi e o padre ensinam:
Nesse “céu” não levo fé!

Mas nos anjos acredito,
Dou aqui meu testemunho:
Perambulam pelo mundo,
Impolutos e bonitos.

Só refuto essa bobagem
De anjo aparecer de asinha;
Sei de muitos, Senhorinha,
Desprovidos de penagem.

Com carinho e claridade,
De olho atento nos humanos,
Nos protegem, afastando
O infortúnio e a tempestade.

Amizade tão discreta
Reconforta toda gente,
Tanto mais o duplamente
Judiado, que é o poeta.

[1847]


Como rasteja devagar
O tempo, caracol horrendo!
E eu, sem poder mover os membros,
Não saio mais deste lugar.

Na minha cela sempre escura
Não entra sol nem a esperança;
Daqui, em derradeira instância,
Só me liberta a sepultura.

Quem sabe já virei defunto
E esses semblantes em cortejo,
Que à noite desfilando eu vejo,
Não são visitas do outro mundo.

Fantasmas a vagar sem corpo
Ou deuses do templo pagão,
Que adoram fazer confusão
No crânio de um poeta morto. –

A doce festa dos espíritos,
Orgia saturnal e tétrica,
Busca a mão óssea do poeta
Deitar às vezes por escrito.

[1853-1854]

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Broadway



Chato, pardo-cinzento, o chão flutua lento, mole,
o chão escorre vagaroso;
contrai-se em blocos súbitos,
estica-se em flechas longas, trepidantes,
dispara, de repente, em riscos elásticos,
gira,
rodopia,
turbilhona e ferve vapor sutil de linhas e movimentos.

Aquele chão carrega todas as imaginações do mundo!

Aquele chão carrega isbas da Ucrânia,
vinhas de Bordeus,
parques do Tâmisa,
saveiros do Volga,
âmbar, corais, madrepérolas das Antilhas,
guano de Mollendo,
canaviais de Cuba,
juncos de Ribeirão Preto,
chifres do Pampa
fornos de Essen, fornos de New-Castle,
óleos de Tampico,
salitres de Iquique,
barbatanas da Terra Nova,
mares coalhados de ferros e madeiras,
terras gordas,
ilhas com batuques, tant-tants e redes molinhosas,
montanhas verdes, montanhas de óxidos e cristais,
rios onde boiam troncos, plantas, cobras e
                tartarugas,
florestas de plumas, penas e folhagens
praias, canais, mangues,
luzes do trópico, luzes do polo
desertos,
civilizações...

Aquele chão é uma paisagem em marcha.
Chão que mistura as poeiras do Universo e onde se confundem todos os ritmos do passo humano!

Chão épico, chão lírico, chão idealista,
chão indiferente de Broadway,
largo, chato, prático e simples, como este roof liso sus-
          penso no ar, este roof, onde um saxofone
          derrama um morno torpor de senzala debaixo
          do sol.


....................... 
CARVALHO, Ronald de. "Brodway". In: A revista, ano 1, n.3. Belo Horizonte, setembro de 1925.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

2 poemas de Agostinho da Silva




Sonho

Teria passado a vida
atormentado e sozinho
se os sonhos me não viessem
mostrar qual é o caminho

umas vezes são de noite
outras em pleno de sol
com relâmpagos saltados
ou vagar de caracol

quem os manda não sei eu
se o nada que é tudo à vida
ou se eu os finjo a mim mesmo
para ser sem que decida. 


Mundo

Tenho um amor nas Honduras
e tenho outro no Nepal
que o terceiro negro seja
se for chinês não faz mal

me falta ainda da Austrália
quem sabe do Polo Norte
me não virá mais algum
se houver foca que dê sorte

até o centro da terra
dará por quem me apaixone
por quem nunca me atormente
com falas ao telefone

mas de verdade o que eu amo
é o do nada do mundo
que até duvido que exista
tanto se acolhe ao profundo.


segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Três poemas de Sylvia Plath traduzidos por Ana Cristina Cesar




PALAVRAS

Golpes
De machado na madeira,
E os ecos!
Ecos que partem
A galope.

A seiva
Jorra como pranto, como
Água lutando
Para repor seu espelho
Sobre a rocha

Que cai e rola,
Crânio branco
Comido pelas ervas.
Anos depois, na estrada,
Encontro

Essas palavras secas e sem rédeas,
Bater de cascos incansável.
Enquanto do fundo do poço, estrelas fixas
Decidem uma vida.


ARIEL

Estancamento no escuro
E então o fluir azul e insubstancial
De montanha e distância.

Leoa do Senhor como nos unimos
Eixo de calcanhares e joelhos!... O sulco

Afunda e passa, irmão
Do arco tenso
Do pescoço que não consigo dobrar.

Sementes
De olhos negros lançam escuros
Anzóis...

Negro, doce sangue na boca,
Sombra,
Um outro voo

Me arrasta pelo ar...
Coxas, pelos;
Escamas e calcanhares.
Branca
Godiva, descasco
Mãos mortas, asperezas mortas.

E então
Ondulo como trigo, um brilho de mares.
O grito da criança

Escorre pela parede.
E eu
Sou a flecha,

O orvalho que voa,
Suicida, unido com o impulso
Dentro do olho

Vermelho, caldeirão da manhã.


A CHEGADA DA CAIXA DE ABELHAS

Encomendei esta caixa de madeira
Clara, exata, quase um fardo para carregar.
Eu diria que é um ataúde de um anão ou
De um bebê quadrado
Não fosse o barulho ensurdecedor que dela escapa.

Está trancada, é perigosa.
Tenho de passar a noite com ela e
Não consigo me afastar.
Não tem janelas, não posso ver o que há dentro.
Apenas uma pequena grade e nenhuma saída.

Espio pela grade.
Está escuro, escuro.
Enxame de mãos africanas
Mínimas, encolhidas para exportação,
Negro em negro, escalando com fúria.

Como deixá-las sair?
É o barulho que mais me apavora,
As sílabas ininteligíveis.
São como uma turba romana,
Pequenas, insignificantes como indivíduos, mas meu deus, juntas!

Escuto esse latim furioso.
Não sou um César.
Simplesmente encomendei uma caixa de maníacos.
Podem ser devolvidos.
Podem morrer, não preciso alimentá-los, sou a dona.

Me pergunto se têm fome.
Me pergunto se me esqueceriam
Se eu abrisse as trancas e me afastasse e virasse árvore.
Há laburnos, colunatas louras,
Anáguas de cerejas.

Poderiam imediatamente ignorar-me.
No meu vestido lunar e véu funerário
Não sou uma fonte de mel.
Por que então recorrer a mim?
Amanhã serei Deus, o generoso – vou libertá-los.

A caixa é apenas temporária.



Sylvia Plath nasceu a 27 de outubro de 1932 em Boston. Escreveu contos, um romance e poesia, gênero literário pelo qual sua obra é reconhecida. Seus poemas estão publicados em The Colossus and Other Poems, livro de estreia, em 1960, Ariel (1963), Crossing the Water (1971) e The Collected Poems (1981), reunindo uma recolha de poemas inéditos. Sylvia morreu em Londres, no dia 11 de fevereiro de 1963. 

domingo, 10 de fevereiro de 2013

Dois poemas de Bertolt Brecht

Bertolt Brecht, Berlim, 1947.



DIFICULDADE DE GOVERNAR

1.

Todos os dias os ministros dizem ao povo
Como é difícil governar. Sem os ministros
O trigo cresceria para baixo em vez de crescer para cima.
Nem um pedaço de carvão sairia das minas
Se o chanceler não fosse tão inteligente. Sem o ministro da Propaganda
Mais nenhuma mulher poderia ficar grávida. Sem o ministro da Guerra
Nunca mais haveria guerra. E atrever-se ia a nascer o sol
Sem a autorização do Führer?
Não é nada provável e se o fosse
Ele nasceria por certo fora do lugar

2.

É também difícil, ao que nos é dito,
Dirigir uma fábrica. Sem o patrão
As paredes cairiam e as máquinas encher-se-iam de ferrugem
Se algures fizessem um arado
Ele nunca chegaria ao campo sem
As palavras avisadas do industrial aos camponeses: quem,
De outro modo, poderia falar-lhe na existência de arados? E que
Seria da propriedade rural sem o proprietário rural?
Não há dúvida nenhuma que se semearia centeio onde já havia batatas.

3.

Se governar fosse fácil
Não havia necessidade de espíritos tão esclarecidos como o do Führer.
Se o operário soubesse usar a sua máquina
E se o camponês soubesse distinguir um campo de uma forma para tortas
Não haveria necessidade de patrões nem de proprietários.
E só porque toda a gente é tão estúpida
Que há necessidade de alguns tão inteligentes.

4.

Ou será que
Governar só é assim tão difícil porque a exploração e a mentira
São coisas que custam a aprender?

* Tradução de Arnaldo Saraiva


A ESPERANÇA DO MUNDO

1.

Seria a opressão tão antiga quanto o musgo dos lagos?
Não se pode evitar o musgo dos lagos.
Seria tudo o que vejo natural, e estaria eu doente, ao desejar remover o irremovível?
Li canções dos egípcios, dos homens que construíram as pirâmides.
Quei­xavam-se do seu fardo e perguntavam quando terminaria a opressão.
Isto há quatro mil anos.
A opressão é talvez como o musgo, inevitável.

2.

Se uma criança surge diante de um carro, puxam-na para a calçada. Não o homem bom, a quem erguem monumentos, faz isso.
Qualquer um retira a criança da frente do carro.
Mas aqui muitos estão sob o carro, e muitos passam e nada fazem.
Seria porque são tantos os que sofrem? Não se deve mais ajudá-los, por serem tantos? Ajudam-nos menos.
Também os bons passam, e continuam sendo tão bons como eram antes de passarem.

3.

Quanto mais numerosos os que sofrem, mais naturais parecem seus sofrimentos, portanto. Quem deseja impedir que se molhem os peixes do mar?
E os sofredores mesmos partilham dessa dureza contra si e deixam que lhes falte bondade entre si.
É terrível que o homem se resigne tão facilmente com o existente, não só com as dores alheias, mas também com as suas próprias.
Todos os que meditaram sobre o mau estado das coisas recusam-se a apelar à compaixão de uns por outros. Mas a compaixão dos oprimidos pelos oprimidos é indispensável.
Ela é a esperança do mundo.

* Tradução de Paulo César de Souza


Bertolt Brecht nasceu a 10 de fevereiro de 1898, em Augsburg, Alemanha. Para estudar medicina, instala-se em Munique e nesta cidade começa sua carreira como dramaturgo; a peça Baal estreia em 1917. A carreira no teatro ampliou-se com novos trabalhos, sempre premiados. Depois se casar com a atriz Helene Weigel, muda-se para Berlim, onde trabalha no Deutsches Theater até 1926. É neste ano que estreia na poesia com Manual de devoção de Bertolt Brecht. O levante do fascismo obriga-o a um longo périplo pelo seu país e fora dele: Tchecoslováquia,  Áustria, Suíça, França, Dinamarca, Suécia, Finlândia, União Soviética e Estados Unidos, onde será um dos perseguidos pelo Comitê de Atividades Antiamericanas, no nascer dos anos de macartismo; é quando retorna a Berlim Oriental depois de ter sua permanência vetada na outra parte da cidade. Morreu a 14 de agosto de 1956. 

sábado, 9 de fevereiro de 2013

Um poema de Carlos Drummond de Andrade



O pagamento

Quando é que sai o pagamento?
O pagamento está difícil.

Quando se fará a folha
e se construirá a máquina
que fará o cálculo e os descontos?

E quando se fabricará o dinheiro,
espécie nova de dinheiro,
para fazer o pagamento?
Quem receberá o primeiro lote,
quem no segundo e no terceiro,
se antes de tudo vier a morte
poupar serviço ao tesoureiro?

O pagamento está difícil.

A espera, quem é que paga a espera
e os extraordinários da esperança
e os serviços (esquecidos) dos pais
e dos avós e dos antiquérrimos?

Que contador porá em dia as contas
e qual será o seu critério?
Irá medir produtividade,
assiduidade, pequenos méritos,
pequenas faltas, imperfeitos
serões, tarefas de má vontade?

Só sairá pagamento
depois do inquérito concluído?

O pagamento está difícil.

Nem um simples apontamento
foi tomado, não há controle,
direção?
Ou não houve serviço nunca
e ninguém jamais se empregou
nem patrões existiram nem
saiu produção de nada?
Não houve encomenda de nada
na fábrica inexistente
e ninguém podia tomar nota
alguma em nenhum escritório ?
Não cabe pois reclamar
nem salários nem horas extras
nem demora ou juros de mora?

O pagamento está difícil.

Difícil é o pagamento
ou conceber a estranha folha
que nunca sai
e saindo, não se registra
e registrada, não se paga
e pagando, não vale a cédula
e valendo, o vento a carrega
e carregando, foi bem feito
se não havia o que pagar?

O pagamento está difícil
porque não há com que pagar
o que não era de ser pago

e contudo está-se cobrando?
Cobrando com unhas, gritos,
com bater pé, com suplicar,
exigir latir bramir
chorar,
de lei na mão, uma lei feita
só de parágrafos riscados,
outra vez escritos riscados
etc.?

O pagamento está difícil
ou já foi feito antes de tudo
há 40 anos, tão à sorrelfa
que ninguém lembra ou se acaso lembra
é que o dinheiro era falso
era marcado era maldito
era por todos refugado?

O pagamento está difícil?
Depois de tão anunciado,
solenemente  prometido,
foge o caixa, são massacrados
os condutores do dinheiro,
tudo é furtado num segundo
e o próprio assalto é simulado?

Some a ideia de pagamento
de tal sorte que ninguém mais
lhe conhece o significado
e os que reclamam não reclamam
com intenção de receber
mas por força do triste hábito?
e tornam-se mudos
de voz e gesto

e se esquecem todos
de reclamar e de adiar
e de negar?

Então, de todos olvidado
não mais pensado ou referido
nem na lousa dos dicionários
o pagamento – afinal – saiu.
Para cada um e seu irmão,
seu amigo, seu inimigo,
seu desconhecido, seu antípoda,
seu ascendente e descendente,
seu curió demissionário, seu gato escaldado, seu cachorro caduco,
suas plantinhas de vaso (sem sol) na janela,
seu coração
de válvulas paradas,
seu coração
entranhado de cisco,
seu coração
já sem forma de
coração.

O pagamento total geral
saiu! saiu!
pagamento sem escrita
sem cifrão
sem limitação
sem explicação
sem razão
sem código
sem termo
saiu.

Não havia quem recebesse.

Carlos Drummond de Andrade nasceu em Itabira, Minas Gerais, em 1902. Estreou na literatura em 1930 com a publicação de Alguma poesia e nos cinquenta anos seguintes publicou diversas obras fundamentais da literatura brasileira como Sentimento do mundoA rosa do povo e Claro enigma. Morreu no Rio de Janeiro em 1987.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Seis poemas de José Craveirinha




Blasfémia

No relicário que te acolhe
é-me angustioso supor
o labor das areias
na madeira.

E meu pesadelo dos pesadelos
a iconoclasta muchém
no afã da sua lavra
orgiando-se voraz.

Blasfémia suprema
o festim.


O coval

Excêntrica
é a minha indignada
mesquinha forma de sofrer.

Lúcido
eu a desencher o mundo
tapando-me no mesmo coval.


Monograma

A sotavento da face
colar aquoso
se desfia

E
em sua fímbria macia
meu lenço azul-escuro
discreto humedece
o monograma
Jota
Cê.

Colar
que se desfia
no próprio lapso.


Gumes de névoa

Lágrimas?

Ou apenas dois intoleráveis
ardentes gumes de névoa
acutilando-me cara abaixo?



O sacrário

A ausência do corpo.
Amor absoluto.

Hossanas de sol.
De chuva.
De brisa.
E de andorinhas
resvalando as asas
no ombro de uma nuvem.

Com uma hérbia mantilha
por cima velando
o teu sacrário.


Silepses

Ajustadas ao comprido as ripas
esfarelando-se devagarinho
por entre minuciosos
dedilhos de terra.

E
em melancólicas silepses
conspícuas gralhas versejam
extemporâneas férias
da Maria.



José Craveirinha nasceu a 28 de maio de 1922 em Maputo, Moçambique. Sua atividade como escritor começou nos jornais e foi colaborador de vários deles em seu país. Vivo ativista pelos movimentos de libertação do regime colonial imposto por Portugal, foi preso entre 1965 e 1969 pela polícia política do regime militar português. Autor de vasta obra, com a qual foi fartamente premiado, sendo o primeiro escritor africano de língua portuguesa a receber o Prêmio Camões, em 1991, dos seus livros destacam-se: Xibugo (1964), Karingana ua karingana (1974), Cela 1 (1980), Maria (1988), Poemas da prisão (2004), este último publicado postumamente. Craveirinha morreu no dia 6 de fevereiro de 2003, em Joanesburgo, África do Sul.

* Os poemas aqui apresentados form publicados inicialmente na revista Colóquio/Letras, n. 110-111, jul-out. de 1989.


domingo, 3 de fevereiro de 2013

Um poema de Gertrude Stein traduzido por Augusto de Campos



Dentre os muitos amigos com quem Gertrude Stein conviveu está Pablo Picasso que produziu entre 1905 e 1906 o quadro acima, um retrato da escritora. Para retribuir a homenagem do amigo, ela escreveu o poema “If I told him” (“Se eu contasse”), que você pode ouvir na voz da própria autora abaixo e acompanhar em seguida a tradução para português feita pelo poeta Augusto de Campos, passando antes pelo texto original, em inglês.






IF I TOLD HIM: A COMPLETED PORTRAIT OF PICASSO


If I told him would he like it. Would he like it if I told him.
Would he like it would Napoleon would Napoleon would would he like it.
If Napoleon if I told him if I told him if Napoleon. Would he like it if I told him if I told him if Napoleon. Would he like it if Napoleon if Napoleon if I told him. If I told him if Napoleon if Napoleon if I told him. If I told him would he like it would he like it if I told him.
Now.
Not now.
And now.
Now.
Exactly as as kings.
Feeling full for it.
Exactitude as kings.
So to beseech you as full as for it.
Exactly or as kings.
Shutters shut and open so do queens. Shutters shut and shutters and so
shutters shut and shutters and so and so shutters and so shutters shut and so shutters shut and shutters and so. And so shutters shut and so and also. And also and so and so and also.
Exact resemblance. To exact resemblance the exact resemblance as exact
as a resemblance, exactly as resembling, exactly resembling, exactly in
resemblance exactly a resemblance, exactly and resemblance. For this is so.
Because.
Now actively repeat at all, now actively repeat at all, now actively repeat at all.
Have hold and hear, actively repeat at all.
I judge judge.
As a resemblance to him.
Who comes first. Napoleon the first.
Who comes too coming coming too, who goes there, as they go they share, who shares all, all is as all as as yet or as yet.
Now to date now to date. Now and now and date and the date.
Who came first. Napoleon at first. Who came first Napoleon the first.
Who came first, Napoleon first.
Presently.
Exactly do they do.
First exactly.
Exactly do they do too.
First exactly.
And first exactly.
Exactly do they do.
And first exactly and exactly.
And do they do.
At first exactly and first exactly and do they do.
The first exactly.
And do they do.
The first exactly.
At first exactly.
First as exactly.
As first as exactly.
Presently
As presently.
As as presently.
He he he he and he and he and and he and he and he and and as and as he
and as he and he. He is and as he is, and as he is and he is, he is and as he and he and as he is and he and he and and he and he.
Can curls rob can curls quote, quotable.
As presently.
As exactitude.
As trains
Has trains.
Has trains.
As trains.
As trains.
Presently.
Proportions.
Presently.
As proportions as presently.
Father and farther.
Was the king or room.
Farther and whether.
Was there was there was there what was there was there what was there
was there there was there.
Whether and in there.
As even say so.
One.
I land.
Two.
I land.
Three.
The land.
Three
The land.
Three
The land.
Two
I land.
Two
I land.
One
I land.
Two
I land.
As a so.
They cannot.
A note.
They cannot.
A float.
They cannot.
They dote.
They cannot.
They as denote.
Miracles play.
Play fairly.
Play fairly well.
A well.
As well.
As or as presently.
Let me recite what history teaches. History teaches.



SE EU CONTASSE: UM RETRATO ACABADO DE PICASSO

Se eu lhe contasse ele gostaria. Ele gostaria se eu lhe contasse.
Ele gostaria se Napoleão se Napoleão gostasse gostaria ele gostaria.
Se Napoleão se eu lhe contasse se eu lhe contasse se Napoleão. Gostaria se eu lhe contasse se eu lhe contasse se Napoleão. Gostaria se Napoleão se Napoleão se eu lhe contasse. Se eu lhe contasse se Napoleão se Napoleão se eu lhe contasse. Se eu lhe contasse ele gostaria ele gostaria se eu lhe contasse.
Já.
Não já.
E já.
Já.
Exatamente como como reis.
Tão totalmente tanto.
Exatidão como reis.
Para te suplicar tanto quanto.
Exatamente ou como reis.
Fechaduras fecham e abrem e assim rainhas. Fechaduras fecham e fechaduras e assim fechaduras fecham e fechaduras e assim e assim fechaduras e assim fechaduras fecham e assim fechaduras fecham e fechaduras e assim. E assim fechaduras fecham e assim e assado.
Exata semelhança e exata semelhança e exata semelhança como exata como uma semelhança, exatamente como assemelhar-se, exatamente assemelhar-se, exatamente em semelhança exatamente uma semelhança, exatamente a semelhança. Pois é assim a ação. Porque.
Repita prontamente afinal, repita prontamente afinal, repita prontamente afinal.
Pulse forte e ouça, repita prontamente afinal.
Juízo o juiz.
Como uma semelhança a ele.
Quem vem primeiro. Napoleão primeiro.
Quem vem também vindo vindo também, quem vem lá, quem vier virá, quem toma lá dá cá, cá e como lá tal qual tal ou tal qual.
Agora para dar data para dar data. Agora e agora e data e a data.
Quem veio primeiro Napoleão de primeiro. Quem veio primeiro. Napoleão primeiro. Quem veio primeiro, Napoleão primeiro.
Presentemente.
Exatamente eles vão bem.
Primeiro exatamente.
Exatamente eles vão bem também.
Primeiro exatamente.
E primeiro exatamente.
Exatamente eles vão bem.
E primeiro exatamente e exatamente.
E eles vão bem.
E primeiro exatamente e primeiro exatamente e eles vão bem.
O primeiro exatamente.
E eles vão bem.
O primeiro exatamente.
De primeiro exatamente.
Primeiro como exatamente.
De primeiro como exatamente.
Presentemente.
Como presentemente.
Como como presentemente.
Se se se se e se e se e e se e se e se e e como e como se e como se e se. Se é e como se é, e como se é e se é, se é e como se e se e como se é e se e se e e se e se.
Cachos roubam anéis cachos fiam, fiéis.
Como presentemente.
Como exatidão.
Como trens.
Tomo trens.
Tomo trens.
Como trens.
Como trens.
Presentemente.
Proporções.
Presentemente.
Como proporções como presentemente.
Pais e pois.
Era rei ou rês.
Pois e vez.
Uma vez uma vez uma vez era uma vez o que era uma vez uma vez uma vez era uma vez vez uma vez.
Vez e em vez.
E assim se fez.
Um.
Eu aterro.
Dois.
Aterro.
Três.
A terra.
Três.
A terra.
Três.
A terra.
Dois.
Aterro.
Um.
Eu aterro.
Dois.
Eu te erro.
Como um tão.
Eles não vão.
Uma nota.
Eles não notam.
Uma bota.
Eles não anotam.
Eles dotam.
Eles não dão.
Eles como denotam.
Milagres dão-se.
Dão-se bem.
Dão-se muito bem.
Um bem.
Tão bem.
Como ou como presentemente.
Vou recitar o que a história ensina. A história ensina.


Gertrude Stein nasceu no dia 3 de fevereiro de 1874 nos Estados Unidos e morreu no dia 27 de julho de 1946 na França, onde viveu desde quando foi morar em 1903 em companhia do irmão Leo. Os dois se tornaram os elementos centrais da atividade cultural em Paris – ela sobretudo depois de ir viver com Alice B. Toklas. Gertrude havia rompido relações com o irmão que não apreciava o trabalho dela. Escritora de vanguarda, sua obra reúne romances e poemas que começaram a ser gestados quando ainda criança. Da sua obra se destaca A autobiografia de Alice B. Toklas, Três vidas e Autobiografia de todo mundo.