domingo, 17 de fevereiro de 2013

Oito poemas de Heinrich Heine




 Acreditava antigamente
Que todo beijo que me tiram,
Ou que recebo de presente,
Fosse por obra do destino.

Deram-me beijos e beijei,
Antes com tanta seriedade,
Como se obedecesse às leis
Que regem a necessidade.

Agora sei como é supérfluo
E não me faço de rogado,
Vou dando beijos em excesso,
Incrédulo e despreocupado.

[1832–1836]


Esperem só

Só porque arraso quando arrojo
Raios, acham que não sei troar.
Ora, meus senhores, ao contrário:
Na arte do trovão não sou pior!
      
No devido dia, eu ponho à prova,
Quem duvida agora é só esperar;
O meu peito então vai trovejar,
E trincar os céus, a minha voz!

No fragor daquele furacão,
Os carvalhos secos vão rachar,
Os castelos vão desmoronar,
Velhas catedrais, ruir ao chão!

[1844]


Os tecelões da Silésia

Não há lágrimas em seus olhares;
Rangem dentes diante dos teares:
Alemanha, nós tecemos tua mortalha,
E tramamos nossa tripla maldição –
Nós tecemos e tramamos!

Maldição ao Deus a quem oramos,
Quando a fome e o frio nos maltratam;
Suplicamos de joelhos sua graça,
Ele tripudia e ri da nossa cara –
Nós tecemos e tramamos!

Maldição ao Rei, rei dos ricaços,
Da miséria faz tão pouco caso;
Nos roubou até o último centavo
Para nos lançar nos braços do carrasco –
Nós tecemos e tramamos!

Maldição à Pátria desamada,
Onde o escárnio e a humilhação se alastram;
Onde a flor que flore é logo estraçalhada;
Onde a podridão seus vermes amealha –
Nós tecemos e tramamos!
      
 Voa a lançadeira no tear,
Noite e dia, trabalhamos sem parar –
Alemanha, nós tecemos tua mortalha,
E tramamos nossa tripla maldição,
Nós tecemos e tramamos!
        
[1844–1845]


Efeméride
      
Missa alguma irão cantar,
Nem Kadisch irão dizer,
Nada dito e nem cantado
Para mim, quando eu morrer.
      
Mas quem sabe não se anime
A Mathilde a um passeio
a Montmartre com Pauline,
Não fazendo tempo feio.
      
Com a coroa de flores
Ela enfeita a minha lápide,
E suspira: pauvre homme!
Segurando suas lágrimas.
      
Como eu moro muito alto
E não tenho nem cadeira,
Seu pezinho está inchado
E lhe dá uma canseira!
      
 Meu chuchu, creio que não
Deves regressar a pé;
Lá pertinho do portão,
Pegas um cabriolé.

 [1851]


Larga as parábolas sagradas,
Deixa as hipóteses devotas,
E põe-te em busca das respostas
Para as questões mais complicadas.
      
Por que se arrasta miserável
O justo carregando a cruz,
Enquanto, impune, em seu cavalo,
Desfila o ímpio de arcabuz?
      
 De quem é a culpa? Jeová
Talvez não seja assim tão forte?
Ou será Ele o responsável
Por todo o nosso azar e sorte?

E perguntamos o porquê,
Até que súbito – afinal –
Nos calam com a pá de cal –
Isto é resposta que se dê?
        
[1854]


Legado

A minha vida chega ao fim,
Escrevo pois meu testamento;
Cristão, eu lego aos inimigos
Dádivas de agradecimento.

Aos meus fiéis opositores
Eu deixo as pragas e doenças,
A minha coleção de dores,
Moléstias e deficiências.

Recebam ainda aquela cólica,
Mordendo feito uma torquês,
Pedras no rim e as hemorroidas,
Que inflamam no final do mês.

As minhas cãimbras e gastrite,
Hérnias de disco e convulsões –
Darei de herança tudo aquilo
Que usufruí em diversões.

Adendo à última vontade:
Que Deus caído em esquecimento
Lembre de vós e vos apague
Toda a memória e sentimento.


Os anjos

Eu, incrédulo Tomé,
Já não creio na doutrina
Que o rabi e o padre ensinam:
Nesse “céu” não levo fé!

Mas nos anjos acredito,
Dou aqui meu testemunho:
Perambulam pelo mundo,
Impolutos e bonitos.

Só refuto essa bobagem
De anjo aparecer de asinha;
Sei de muitos, Senhorinha,
Desprovidos de penagem.

Com carinho e claridade,
De olho atento nos humanos,
Nos protegem, afastando
O infortúnio e a tempestade.

Amizade tão discreta
Reconforta toda gente,
Tanto mais o duplamente
Judiado, que é o poeta.

[1847]


Como rasteja devagar
O tempo, caracol horrendo!
E eu, sem poder mover os membros,
Não saio mais deste lugar.

Na minha cela sempre escura
Não entra sol nem a esperança;
Daqui, em derradeira instância,
Só me liberta a sepultura.

Quem sabe já virei defunto
E esses semblantes em cortejo,
Que à noite desfilando eu vejo,
Não são visitas do outro mundo.

Fantasmas a vagar sem corpo
Ou deuses do templo pagão,
Que adoram fazer confusão
No crânio de um poeta morto. –

A doce festa dos espíritos,
Orgia saturnal e tétrica,
Busca a mão óssea do poeta
Deitar às vezes por escrito.

[1853-1854]

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