terça-feira, 26 de março de 2013

Dois poemas de Walt Whitman




ESCUTO A AMÉRICA CANTAR

Escuto a América a cantar, as várias canções que escuto;
O cantar dos mecânicos – cada um com sua canção, como deve ser, forte e contente;
O carpinteiro cantando a sua, enquanto mede a tábua ou viga,
O pedreiro cantando a sua, enquanto se prepara para o trabalho ou termina o trabalho;
O barqueiro cantando o que pertence a ele em seu barco – o assistente cantando no deque do navio a vapor;
O sapateiro cantando sentado em seu banco – o chapeleiro cantando de pé;
O cantar do lenhador – o jovem lavrador, em seu rumo pela manhã, ou no intervalo do almoço, ou ao por-do-sol;
O delicioso cantar da mãe – ou da jovem esposa ao trabalho – ou da menina costurando ou lavando – cada uma cantando o que lhe pertence, e a ninguém mais;
O dia, ao que pertence ao dia – De noite, o grupo de jovens, robustos, amigáveis,
Cantando, de bocas abertas, suas fortes melodiosas canções.


A UM ESTRANHO

Estranho que passa! você não sabe com quanta saudade eu lhe olho,
Você deve ser aquele a quem procuro, ou aquela a quem procuro, (isso me vem, como em um sonho,)
Vivi com certeza uma vida alegre com você em algum lugar,
Tudo é relembrado neste relance, fluído, afeiçoado, casto, maduro,
Você cresceu comigo, foi um menino comigo, ou uma menina comigo,
Eu comi com você e dormi com você – seu corpo se tornou não apenas seu, nem deixou o meu corpo somente meu,
Você me deu o prazer de seus olhos, rosto, carne, enquanto passamos – você tomou de minha barba, peito, mãos, em retorno,
Eu não devo falar com você – devo pensar em você quando sentar-me sozinho, ou acordar sozinho à noite,
Eu devo esperar – não duvido que lhe reencontrarei,
Eu devo garantir que não irei lhe perder.

Walt Whitman nasceu em 31 de maio de 1819 em Camden. Autor que revolucionou a poesia, escreveu ainda ensaios e artigos para jornal. Considerado criador do verso livro, sua principal obra se intitula Leaves of Grass e nela trabalhou durante toda a vida. O poeta morreu em 26 de março de 1892.

* Traduções de Adriano Scandolara publicados inicialmente no blog escamandro.

domingo, 17 de março de 2013

Dois poemas de Rodrigo de Souza Leão




girassóis

vulva amarela inquieta em frenesi
sem penisculoso músculo de fogo

um coração amarelo cheio de plumas
cardadas de excitação etérea

silêncio fecundando as paredes
amargos lábios que eu beijo de língua


para navegar em silêncio

cardumes de silêncio
navegam linearmente
entre as minas d'água

lá iam nossos peixes
quando um toque
provocou a explosão

você me falou morte
perdida em detalhes
feito explodir: gritou

gritar, não dizer nada
melhor se dar a outra
de outra forma minada

sexta-feira, 8 de março de 2013

Eu sou uma mulher

Marina Colasanti



Eu sou uma mulher
que sempre achou bonito
menstruar.

Os homens vertem sangue
por doença
sangria
ou por punhal cravado,
rubra urgência
a estancar
trancar
no escuro emaranhado
das artérias.

Em nós
o sangue aflora
como fonte
no côncavo do corpo
olho-d’água escarlate
encharcado cetim
que escorre em fio.

Nosso sangue se dá
de mão beijada
se entrega ao tempo
como chuva ou vento.

O sangue masculino
tinge as armas e
o mar
empapa o chão
dos campos de batalha
respinga nas bandeiras
mancha a história.

O nosso vai colhido
em brancos panos
escorre sobre as coxas
benze o leito
manso sangrar sem grito
que anuncia
a ciranda da fêmea.

Eu sou uma mulher
que sempre achou bonito
menstruar.
Pois há um sangue
que corre para a Morte.
E o nosso
Que se entrega para a lua.


...........................
COLASANTI, Marina. Rota de colisão. Rio de Janeiro: Rocco, 1993.

terça-feira, 5 de março de 2013

2 poemas de Francisco Carvalho




Retrato para ser visto de longe

Sou um ser, o outro é metade
que não sabe de onde veio.
Sou treva, sou claridade.
Solidão partida ao meio
e entre os dois a eternidade.

Sei quem sou, não me conheço.
Parado, estou sempre indo
para um país sem regresso.
Sou fonte e estou me esvaindo,
fluir sem fim nem começo.

Coração partido ao meio,
pulsando em cada metade.
O lirismo do espantalho
a espuma do devaneio.
Entre os dois a eternidade.

                     

As curvas de Eros

De repente nos damos conta
de que o rosto
foi comido pela solidão
fera insaciável.
De repente nos debruçamos
sobre o adeus
e os caminhos da infância extraviada.
De repente um desejo
ladra em vão
às matilhas da lenta madureza.
De repente mastigamos
palavras amargas
palavras cujo sumo foi espremido
pelos dedos da morte.
De repente voltamos a acender o fogo
azulado do mito.
De repente a mentira
põe os seus ovos de ouro em nossa algibeira.
De repente o coração
é uma serpente enroscada nas curvas de Eros.
De repente o sexo
é uma palavra sem nexo.

............................
O primeiro poema integra o livro De Pastoral dos Dias Maduros (1977) e o segundo De Rosa dos Eventos (1982). Os poemas foram publicados inicialmente no Poesia.net

segunda-feira, 4 de março de 2013

Seis poemas de Anna Akhmátova




Separação

Nem semanas nem meses - anos
levamos nos separando. Eis, finalmente,
o gelo da liberdade verdadeira
e as cinzentas guirlandas na fachada dos templos.

Não mais traições, não mais enganos,
e não me terás mais de ficar ouvindo até o amanhecer,
enquanto flui o riacho das provas
da minha mais perfeita inocência.

(1940)


Música

Algo de miraculoso arde nela,
fronteiras ela molda aos nossos olhos.
É a única que continua a me falar
depois que todo o resto tem medo de estar perto.
Depois que o último amigo tiver desviado o seu olhar
ela ainda estará comigo no meu túmulo,
como se fosse o canto do primeiro trovão,
ou como se todas as flores explodissem em versos.


De Os mistérios do ofício

De que servem exércitos de canções
e o encanto das elegias sentimentais?
Para mim, na poesia, tudo tem de ser desmesurado,
e não do jeito como todo mundo faz.
Se vocês soubessem de que lixeira
saem, desavergonhados, os versos,
como dente-de-leão que brota ao pé da cerca,
como a bardana ou o cogumelo.
Um grito que vem do coração, o cheiro fresco de alcatrão,
o bolor oculto na parede...
E, de repente, a poesia soa, calorosa, terna,
Para a minha e tua alegria.
               
               
Através dos espelhos

(dois poetas e a musa)
Esta beldade é muito jovem
mas não é deste século.
Não ficamos sozinhos pois - a terceira -
ela nunca nos abandona.
Puxas para ela uma cadeira
e eu, generosamente, divido com ela minhas flores...
O que estamos fazendo - nem nós mesmos sabemos
mas, a cada momento, mais isso nos assusta...
Como quem saiu da prisão,
sabemos algo um do outro,
algo terrível. Estamos num círculo infernal.
Mas talvez isto não sejamos nós.


Treze versos

E finalmente pronunciaste a palavra
não como quem se ajoelha,
mas como quem escapa da prisão
e vê o sagrado dossel das bétulas
através do arco-íris do pranto involuntário.
E à tua volta cantou o silêncio
e um sol muito puro clareou a escuridão
e o mundo por um instante transformou-se
e estranhamente mudou o sabor do vinho.
E até eu, que fora destinada
da palavra divina a ser a assassina,
calei-me, quase com devoção,
para poder prolongar esse instante abençoado.


À musa

Quanto, à noite, espero a tua chegada,
a vida me parece suspensa por um fio.
Que importam juventude, glória, liberdade,
quando enfim aparece a hóspede querida
trazendo nas mãos a sua rústica flauta?
Ei-la que vem. Soergue o seu véu,
olha para mim atentamente.
E lhe pergunto: Foste tu quem a Dante
ditou as páginas do Inferno?. E ela: Sim, fui eu.



Anna Akhmátova nasceu em Odessa em 23 de junho de 1889. Cedo se interessou pela poesia, paixão que o pai não apoiava e que a obrigou a adotar o pseudônimo pelo qual ficou reconhecida. Publicou seu primeiro livro em 1912. Entre os seus trabalhos mais aclamados encontra-se “Réquiem”, uma reação ao período de terror stalinista, e “Poema sem herói”, que ela considerava o coroamento de sua obra. Morreu em 5 de março de 1966, em Domodedovo.

* Traduções de Lauro Machado Coelho.

domingo, 3 de março de 2013

Dois poemas de Eugénio de Andrade

Ilustração Dórdio Gomes.



ALBA

Como se não houvera
bosque mais secreto,

como se as nascentes
fossem só ardor,

como se o teu corpo
fora a vida toda –

o desejo hesita
em ser espada ou flor.


TEMA E VARIAÇÕES EM TOM MENOR

Para jardim te queria.
Te queria para o gume
ou o frio das espadas.
Te queria para lume.
Para orvalho te queria
sobre as horas transtornadas.

Para a boca te queria.
Te queria para entrar
E partir pela cintura.
Para o barco te queria.
Te queria para ser
canção breve, morte pura.

Eugénio de Andrade foi nome adotado por José Fontinhas desde quando iniciou sua carreira artística. Nasceu no dia 19 de janeiro de 1923, no Fundão, distrito de Póvoa de Atalaia; viveu em Lisboa e Coimbra antes de fixar residência no Porto, onde viveu até sua morte em 13 de junho de 2005. Publicou o primeiro livro, Narciso, em 1940, porta que se abriu para mais de duas dezenas de títulos entre poesia e prosa, além das participações em antologias. Trabalhou como tradutor e para o português verteu obras de poetas como Federico García Lorca. Dentre os diversos prêmios que recebeu estão o Vida Literária da Associação Portuguesa de Escritores e o Camões.

* A ilustração e os poemas foram publicados inicialmente na Revista Colóquio/Letras, n.1. Lisboa, março de 1971, p.68-69.


sexta-feira, 1 de março de 2013

Dois poemas de Vergílio Ferreira



QUE HÁ PARA LÁ DO SONHAR?

Céu baixo, grosso, cinzento
e uma luz vaga pelo ar
chama-me ao gosto de estar
reduzido ao fermento
do que em mim a levedar
é este estranho tormento
de me estar tudo a contento,
em todo o meu pensamento
ser pensar a dormitar.

Mas que há para lá do sonhar?



CAI A CHUVA ABANDONADA

Cai a chuva abandonada
à minha melancolia,
a melancolia do nada
que é tudo o que em nós se cria.

Memória estranha de outrora
não a sei e está presente.
Em mim por si se demora
e nada em mim a consente

do que me fala à razão.
Mas a razão é limite
do que tem ocasião

de negar o que me fite
de onde é a minha mansão
que é mansão no sem-limite.
Ao longe e ao alto é que estou
e só daí é que sou.

Vergílio Ferreira nasceu a 28 de janeiro de 1916, em Gouveia. É um dos nomes de relevo da literatura portuguesa do século XX, reconhecido por alguns dos mais importantes romances, como Aparição, sua Magnum opus. Fixado entre o Neo-realismo e o Existencialismo, sua obra também se destaca na prosa curta, no ensaio, e na poesia, deixado neste gênero alguns textos esparsos em seus diários. Recebeu o Prêmio camões em 1992. Morreu a 1º de março de 1996.


* Poemas de Conta-Corrente 1.