quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Seis poemas de José Craveirinha




Blasfémia

No relicário que te acolhe
é-me angustioso supor
o labor das areias
na madeira.

E meu pesadelo dos pesadelos
a iconoclasta muchém
no afã da sua lavra
orgiando-se voraz.

Blasfémia suprema
o festim.


O coval

Excêntrica
é a minha indignada
mesquinha forma de sofrer.

Lúcido
eu a desencher o mundo
tapando-me no mesmo coval.


Monograma

A sotavento da face
colar aquoso
se desfia

E
em sua fímbria macia
meu lenço azul-escuro
discreto humedece
o monograma
Jota
Cê.

Colar
que se desfia
no próprio lapso.


Gumes de névoa

Lágrimas?

Ou apenas dois intoleráveis
ardentes gumes de névoa
acutilando-me cara abaixo?



O sacrário

A ausência do corpo.
Amor absoluto.

Hossanas de sol.
De chuva.
De brisa.
E de andorinhas
resvalando as asas
no ombro de uma nuvem.

Com uma hérbia mantilha
por cima velando
o teu sacrário.


Silepses

Ajustadas ao comprido as ripas
esfarelando-se devagarinho
por entre minuciosos
dedilhos de terra.

E
em melancólicas silepses
conspícuas gralhas versejam
extemporâneas férias
da Maria.



José Craveirinha nasceu a 28 de maio de 1922 em Maputo, Moçambique. Sua atividade como escritor começou nos jornais e foi colaborador de vários deles em seu país. Vivo ativista pelos movimentos de libertação do regime colonial imposto por Portugal, foi preso entre 1965 e 1969 pela polícia política do regime militar português. Autor de vasta obra, com a qual foi fartamente premiado, sendo o primeiro escritor africano de língua portuguesa a receber o Prêmio Camões, em 1991, dos seus livros destacam-se: Xibugo (1964), Karingana ua karingana (1974), Cela 1 (1980), Maria (1988), Poemas da prisão (2004), este último publicado postumamente. Craveirinha morreu no dia 6 de fevereiro de 2003, em Joanesburgo, África do Sul.

* Os poemas aqui apresentados form publicados inicialmente na revista Colóquio/Letras, n. 110-111, jul-out. de 1989.