segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Quatro poemas de Moacir Amâncio



Sísifo

não ovo
a carga da pedra
é vazia
joia que se abole
pelo escuro

precisa invenção
define
o breu entre
anjo e molusco

sem asa ou concha
arrasta
ausência de pedra
e peso

A alquimia dos ratos

miméticos
roem
a luz

de repente
caem
gordos - mortos?
de transparência

revelam-se
em ouro
e outros infinitos

* De Do objeto útil


Origami

As cores no piano
ignoram a terceira
que repara na sombra
de novo um fruto.

Nuances passam frias
do resíduo diálogo
segundo o olho fora,
imposição.

Manchas se fazem mãos
móveis pelo papel.
Se duvidas, amassam
o continente.

E farão desse céu
triângulo, esfera
capaz de moto próprio
outra pupila.

* De Figuras na sala


Bodegón

Um canto do Museu do Prado
guarda certo pintor estranho,
total ausência é o divino.

Pensava os erros dos demais
à maneira do Bosco não.
Mais longe essências corrigia.

Os tortos entrega à festa
das coisas esperando o assombro:
a mesa só queijos, o galo

todas as manhãs na bandeja.
Mostrou saber o coração
kitsch armário tão romãs.

* De Contar a romã



quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Dois poemas de Dylan Thomas




E A MORTE NÃO TERÁ DOMÍNIO

E a morte não terá domínio.
Nus, os mortos há de ser um.
Com o homem ao léu e a lua em declínio.
Quando os ossos são só ossos que se vão,
Estrelas nos cotovelos e nos pés;
Mesmo se loucos, há de ser sãos,
Do fundo do mar ressuscitarão
Amantes podem ir, o amor não.
E a morte não terá domínio.

E a morte não terá domínio.
Sob os turvos torvelinhos do mar
Os que jazem já não morrerão ao vento,
Torcendo-se nos ganchos, nervos a desfiar,
Presos a uma roda, não se quebrarão,
A fé em suas mãos dobrará de alento,
E os males do unicórnio perderão o fascínio,
Esquartejados não se racharão
E a morte não terá domínio.

E a morte não terá domínio.
Os gritos das gaivotas não mais se ouvirão
Nem as ondas altas quebrarão nas praias.
Onde uma flor brotou não poderá outra flor
Levantar a cabeça às lufadas da chuva;
Embora sejam loucas e mortas como pregos,
Testas tenazes martelarão entre margaridas:
Irromperão ao sol até que o sol se rompa,
E a morte não terá domínio.



NÃO VÁS TÃO DOCILMENTE

Não vás tão docilmente nessa noite linda;
Que a velhice arda e brade ao término do dia;
Clama, clama contra o apagar da luz que finda.

Embora o sábio entenda que a treva é bem-vinda
Quando a palavra já perdeu toda a magia,
Não vai tão docilmente nessa noite linda.

O justo, à última onda, ao entrever, ainda,
Seus débeis dons dançando ao verde da baía,
Clama, clama contra o apagar da luz que finda.

O louco que, a sorrir, sofreia o sol e brinda,
Sem saber que o feriu com a sua ousadia,
Não vai tão docilmente nessa noite linda.

O grave, quase cego, ao vislumbrar o fim da
Aurora astral que o seu olhar incendiaria,
Clama, clama contra o apagar da luz que finda.

Assim, meu pai, do alto que nos deslinda
Me abençoa ou maldiz. Rogo-te todavia:
Não vás tão docilmente nessa noite linda.
Clama, clama contra o apagar da luz que finda.

* Tradução de Augusto de Campos

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Três poemas de Nina Rizzi



cantata ao namorado

não enlace tua ideia à minha
desabite o nome e fúria
suzanne déchevaux-dumesnil

em um só tempo de árvores maduras
para o alto com as mãos:
a noite está tão fria lá fora e o silêncio pesa

vem, cola tua mão na minha
até que seja invisível ao mundo
como às tardes nouvelle vague

oferece ao largo tua ausência
em detrimento de mim - insula
e o seu duplo - epistolares

e fiquemos pois amassados
e esquecidos - em nossa sta. maría
calados como quem gane


te amar, assombro

água e sal são meus olhos.
deserto é te esperar.


aurora sobre o rio angicos

há em meus olhos a beleza mais colorida.

tão inesquecível quanto o crepúsculo
da memória ganhada, me ergo, arregalada.

e já não há nada dorido em meus olhos
se pareço chorar fácil, é verdade
diante do que de fato importa

o sol, amarelo e vagaroso
rasgando mil nuvens de paz
sangrando o rio e meu peito

estio, alvoroço.

* Poemas de A duração do deserto.



segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Três poemas inéditos de Mia Couto



O habitante
ao meu pai

Se partiste, não sei.
Porque estás,
tanto quanto sempre estiveste.

Essa tua,
tão nossa, presença
enche de sombra a casa
como se criasse,
dentro de nós,
uma outra casa.

No silêncio distraído
de uma varanda
que foi o teu único castelo,
ecoam ainda os teus passos
feitos não para caminhar
mas para acariciar o chão.

Nessa varanda te sentas
nesse tão delicado modo de morrer
como se nos estivesse ensinando
um outro modo de viver.

Se o passo é tão celeste
a viagem não conta
senão pelo poema que nos veste.

Os lugares que buscaste
não têm geografia.

São vozes, são fontes,
rios sem vontade de mar,
tempo que escapa da eternidade.

Moras dentro,
sem deus nem adeus.


O rei

Dentro de nós há um rei
cujo único saber é não reinar.

O seu trono é tão nada
que nunca será destronado.

Um monarca sem castelo nem garupa
que apenas do ingovernável se ocupa:
neste mundo só entende quem ama.

E quem ama não sabe quem é.
Como este soberano
cuja coroa é tão leve
que apenas lhe dá licença
para um sonho breve.

Soberano tão esquecido de toda a lei
que, no fim, confessa:
- fui rei, apenas quando errei.


O pouco pó que somos

Não calcas
apenas um pedaço de caminho.

A Terra inteira
está sempre debaixo dos teus pés.

O mesmo torrão que pisas
te irá pesar depois.

Se quiseres leve a eternidade
trata com leveza o chão.

Imaginas-te autor da viagem?

É o oposto:
a terra é que andou em ti.

E, sem queixa nem cansaço,
de mundo e gente
a Terra te acrescentou.

A estrada,
que acreditaste alheia e morta,
é o teu corpo
feito de pedra e sonho. 

Mia Couto nasceu em Moçambique em 1955. Formado em Biologia, exerceu várias profissões, além da sua área de formação, como a de jornalista e a de professor. É autor de vasta obra que transita entre a prosa e a poesia e com a qual já recebeu alguns importantes prêmios como o Camões (2013). Em poesia publicou Raiz de orvalho,  Tradutor de chuvas, Idades, cidades, divindades e Vagas e lumes.



* Poemas incluídos em Vagas e lumes a ser publicado pela Editorial Caminho em finais de outubro.


segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Três poemas de Rimbaud



Canção da torre mais alta

Ociosa juventude
De tudo pervertida
Por minha virtude
Eu perdi a vida.
Ah! Que venha a hora
Que as almas enamora.

Eu disse a mim: cessa,
Que eu não te veja:
Nenhuma promessa
De rara beleza.
E vá sem martírio
Ao doce exílio.

Foi tão longa a espera
Que eu não olvido.
O terror, fera,
Aos céus dedico.
E uma sede estranha
Corrói-me as entranhas.

Assim os Prados
Vastos, floridos
De mirra e nardo
Vão esquecidos
Na viagem tosca
De cem feias moscas.

Ah! A viuvagem
Sem quem as ame
Só têm a imagem
Da Notre-Dame!
Será a prece pia
À Virgem Maria?

Ociosa juventude
De tudo pervertida
Por minha virtude
Eu perdi a vida.
Ah! Que venha a hora
Que as almas enamora!


No Cabaré-Verde às cinco horas da tarde

Depois de oito dias, larguei as botinas
Pelo caminho. Eu entrei em Charleroi.
— No Cabaré-Verde: pedi torradas finas,
Manteiga e presunto, que é frio o lugar.

Feliz, estiquei as pernas sob a mesa
Verde: e contemplei os toscos motivos
Da tapeçaria. — E foi uma beleza
Quando a vi, enormes tetas, olhos vivos,

É ela! Não é um beijo que a apavora!
Risonha, trouxe a refeição na hora,
O presunto tostado, num belo prato,

O presunto róseo e branco perfumado
Pelo alho — e encheu-me o copo ávido
De espuma brilhante como um raio de sol.

Outubro de 1870

* Traduções de Claudio Daniel


A eternidade

De novo me invade.
Quem? – A Eternidade.
É o mar que se vai
Como o sol que cai.

Alma sentinela,
Ensina-me o jogo
Da noite que gela
E do dia em fogo.

Das lides humanas,
Das palmas e vaias,
Já te desenganas
E no ar te espraias.

De outra nenhuma,
Brasas de cetim,
O Dever se esfuma
Sem dizer: enfim.

Lá não há esperança
E não há futuro.
Ciência e paciência,
Suplício seguro.

De novo me invade.
Quem? – A Eternidade.
É o mar que se vai
Com o sol que cai.

* Tradução de Augusto de Campos

Arthur Rimbaud nasceu a 20 de outubro de 1854 em Charleville, nordeste da França. Gênio precoce, revolucionou a poesia ainda que tenha sido o autor de breve obra. Cedo abandonou a literatura e foi viver para a África, só retornando ao seu país depois de sérios problemas de saúde que o levariam à morte a 10 de novembro de 1891, em Marselha. 


domingo, 28 de setembro de 2014

Um poema inédito de Adonis



EM QUE ME APOIAR?

Em que me apoiar?

Na quadratura do zero, no triângulo do desejo, nas pirâmides de ar ou nas tendas da história? Nos ventos que se evaporam dos cemitérios ou num pombo faminto? Tem a flor afinal um gargalo oco? Não é a mariposa o mesmo que uma chama?

Devo perguntar como acabará este mundo ou como começou este inferno?

Como fazer-me amigo dos lobos, matar esta humanidade encolhida entre minhas garras.    

Meu ponto de vista ajustado à minha visão, e esta a aquele, acompanham-no em seu país ao perfume de uma rosa morta.

As feridas umedecem o vestido de um céu pobre que aprende a contar conosco:

O pássaro está passando

A jaula não tem fim.


O sol ama os caminhos dos maias.


* Poema incluído num catálogo a ser editado  pelo blog Letras in.verso e re.verso com inéditos do poeta Adonis. A tradução é da edição publicada no México por esses dias, Zócalo


sábado, 13 de setembro de 2014

Três inéditos de Murilo Mendes




Alguém

Alguém é absurdo
lúcido
nutrido de Kafka
Descartes
alguém toma a insônia como se fosse
um comprimido
alguém sofre de guerra
como outro sofre de câncer.
Alguém sabe que a matéria
é metafísica.

Existirão de verdade para ele
o radar
a lagartixa
o estruturalismo
a telepatia?

Alguém odeia as ditaduras
as batatas fritas
alguém se vê circundado por insetos ou por hipóteses

Alguém é um romântico irreversível:
a cibernética não mudará sua cabeça.


A viagem

Serei um androide?
Talvez eu seja um produto
da defasagem tecnológica
entre Juiz de Fora e Pequim.

Na época da minha infância
eu queria ir do Brasil à China
a cavalo.

A viagem se realizou
Ninguém se deu conta

Nem mesmo eu.


Retorno

Voltarei um dia
para saudar o reino mineral
onde a desordem é mínima.


Murilo Mendes nasceu a 13 de maio de 1901 em Juiz de Fora. É considerado pela crítica um dos nomes mais significativos da literatura surrealista no Brasil. Sua vasta obra cobre prosa e poesia, este último gênero no qual ficou reconhecido. Seu primeiro livro Poemas data de 1930. Depois vieram títulos como A poesia em pânico (1937), As metamorfoses (1944), Mundo enigma (1945), Poesia liberdade (1947), Siciliana (1959), Tempo espanhol (1959), Poliedro (1972), entre outros. Morreu a 13 de agosto de 1975 em Lisboa. 




* Em 2014, a obra de Murilo Mendes ganha reedição pela Cosac Naify. Além disso sai uma Antologia poética, com compilação inédita de poemas selecionados por Júlio Castañon Guimarães, da Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, e Murilo Marcondes de Moura, professor de literatura brasileira na Universidade de São Paulo. Os três poemas aqui publicados pertencem a essa antologia.

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Um poema de António Lobo Antunes



Poema aos homens constipados 

Pachos na testa, terço na mão
Uma botija, chá de limão
Zaragatoas, vinho com mel
Três aspirinas, creme na pele
Grito de medo, chamo a mulher
Ai Lurdes, Lurdes, que vou morrer
Mede-me a febre, olha-me a goela
Cala os miúdos, fecha a janela
Não quero canja, nem a salada
Ai Lurdes, Lurdes, não vales nada
Se tu sonhasses, como me sinto
Já vejo a morte, nunca te minto
Já vejo o inferno, chamas diabos
Anjos estranhos, cornos e rabos
Vejo os demónios, nas suas danças
Tigres sem listras, bodes de tranças
Choros de coruja, risos de grilo
Ai Lurdes, Lurdes, que foi aquilo!
Não é a chuva, no meu postigo
Ai Lurdes, Lurdes, fica comigo
Não é o vento, a cirandar
Nem são as vozes, que vêm do mar
Não é o pingo de uma torneira
Põe-me a santinha, à cabeceira
Compõe-me a colcha, fala ao prior
Pousa o Jesus, no cobertor
Chama o doutor, passa a chamada
Ai Lurdes, Lurdes, nem dás por nada
Faz-me tisanas, e pão-de-ló
Não te levantes, que fico só
Aqui sozinho a apodrecer
Ai Lurdes, Lurdes que vou morrer.

De “Letrinhas de Cantigas”


quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Um poema de António Jacinto



Poema da Alienação

Não é este ainda o meu poema
o poema da minha alma e do meu sangue
não
Eu ainda não sei nem posso escrever o meu poema
o grande poema que sinto já circular em mim

O meu poema anda por aí vadio
no mato ou na cidade
na voz do vento
no marulhar do mar
no Gesto e no Ser

O meu poema anda por aí fora
envolto em panos garridos
vendendo-se
vendendo
“ma limonje ma limonjééé”

O meu poema corre nas ruas
com um quibalo podre à cabeça
oferecendo-se
oferecendo
“carapau sardinha matona
ji ferrera ji ferrerééé...”

O meu poema calcorreia ruas
“olha a probíncia” “diááário”
e nenhum jornal traz ainda
o meu poema

O meu poema entra nos cafés
“amanhã anda a roda amanhã anda a roda”
e a roda do meu poema
gira que gira
volta que volta
nunca muda
“amanhã anda a roda
amanhã anda a roda”

O meu poema vem do Musseque
ao sábado traz a roupa
à segunda leva a roupa
ao sábado entrega a roupa e entrega-se
à segunda entrega-se e leva a roupa

O meu poema está na aflição
da filha da lavadeira
esquiva
no quarto fechado
do patrão nuinho a passear
a fazer apetite a querer violar

O meu poema é quitata
no Musseque à porta caída duma cubata
“remexe remexe
paga dinheiro
vem dormir comigo”

O meu poema joga a bola despreocupado
no grupo onde todo o mundo é criado
e grita
“obeçaite golo golo”

O meu poema é contratado
anda nos cafezais a trabalhar
o contrato é um fardo
que custa a carregar
“monangambééé”

O meu poema anda descalço na rua

O meu poema carrega sacos no porto
enche porões
esvazia porões
e arranja força cantando
“tué tué tué trr
arrimbuim puim puim”

O meu poema vai nas corda
encontrou sipaio
tinha imposto, o patrão
esqueceu assinar o cartão
vai na estrada
cabelo cortado
“cabeça rapada
galinha assada
ó Zé”
picareta que pesa
chicote que canta

O meu poema anda na praça trabalha na cozinha
vai à oficina
enche a taberna e a cadeia
é pobre roto e sujo
vive na noite da ignorância
o meu poema nada sabe de si
nem sabe pedi
O meu poema foi feito para se dar
para se entregar
sem nada exigir
Mas o meu poema não é fatalista
o meu poema é um poema que já quer
e já sabe
o meu poema sou eu-branco
montado em mim-preto
a cavalgar pela vida.


terça-feira, 26 de agosto de 2014

Julio Cortázar poeta: dois inéditos



AVÓ MORTA
O anjinho que tantos anos desenhei ao pé de umas cartas,
e o à bientôt das despedidas, e esse nome sobre
hão de seguir em alguma parte, hão de ser algo vivo,
não é possível que nada sobreviva dessa ternura e essa graça.
De alguma maneira nos seguiremos escrevendo sempre,
alguém chamará às portas e nos entregará as cartas,
tu estarás bem e eu te contarei sobre viagens,
tu estarás bem e eu serei o que beija
a borda do papel onde uma letra fina
me envolve o coração em savanas, me dá boas noites
e sai silenciosa para que chegue o sonho.


OBJETOS PERDIDOS
Por veredas de sonho e moradias silenciosas
teus verões prestados me alucinam com seus cantos
Uma cifra vigilante e sigilosa
vai pelos arrabaldes chamando-me e chamando-me
mas o que falta, diz-me, no cartão pequeno
onde estão teu nome, tua rua e teu desvelo
se a cifra se mescla com as letras do sonho,

se somente estás onde já não te busco.



Julio Cortázar nasceu a 26 de agosto de 1914 em Ixelles, na Bélgica. Sua obra, uma das mais importantes no âmbito da literatura latino-americana, se destaca pela inovação criativa e formal no trato narrativo. Ficou reconhecido pela publicação de vários títulos em prosa curta, como Histórias de cronópios e famas (1964). Seu livro mais lembrado é Rayuela (1963). Vez ou outra, se aventurou na poesia, gênero, aliás, que marcou sua estreia em livro na literatura: em 1938, sob o pseudônimo de Julio Denis publicou um livro de sonetos intitulado Presencia; quase quatro décadas mais tarde, em 1971, publica Pameos y meopas e, em 1984, Salvo el crepúsculo. Cortázar morreu em Paris, onde viveu extensa parte de sua vida, a 12 de fevereiro de 1984. 

* Os dois poemas foram publicados na edição ainda inédita no Brasil, Cortázar de la A a la Z e foram traduzidos por Pedro Fernandes.

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Encontro celebra a poesia de Allen Ginsberg




Na era dos aparelhos virtuais e da convivência de igual maneira, as relações humanas não chegam a viver só disso. Tem menos de um mês que está on-line a edição 9 do caderno-revista 7faces, mas, seus idealizadores, há muito só metidos em bits, resolveram marcar um encontro físico. Sim, já houve outro: quando da apresentação do número em homenagem a José Saramago, mas esse tem sabor do primeiro encontro, porque nem Pedro Fernandes, mentor da ideia, nem Cesar Kiraly, quem chegou para somar parceria, se conhecem pessoalmente.

Pois bem, esse encontro será celebrado agora, no próximo dia 05 de setembro, no Rio de Janeiro. Na ocasião será apresentada a edição mais recente do periódico ao som de leituras dos poemas do Allen Ginsberg nas inéditas traduções de Cesar Kiraly (uma pequena mostra está no caderno-revista). Através de um clique aqui (para não perder o gosto pelo virtual) os interessados em participar dessa ocasião podem já fazer suas reservas.

A edição n.9 do caderno-revista 7faces está on-line!



Esta não é apenas uma edição. São várias. São vozes diversas agregadas em torno de um uníssono tom. Por vezes diversas conseguirão essa unidade. Mas, se desregram. Igualmente diversas vezes. E aí talvez esteja, de fato, a unidade.

É uma edição, por isso, das mais ambiciosas nesses quase cinco anos do periódico. Sai da unidade interna – a poesia terá local (?) – e busca entre tantas vozes a voz que se levanta para desengessar o poema. Allen Ginsberg. O Beat-Poeta. O Poeta. Sobre ele, Claudio Willer, Sandra Erickson e Paulo Rafael se desdobram para dizer o nome e a obra. Dele, Evaldo Gondim se desdobra para fazer-nos compreender em outra língua o que Ginsberg compreendia sobre si e a obra. Dele, recolhem-se faces. Vestidas e nuas. Escritas e imaginadas. Ginsberg está em toda parte. Até nos versos ainda por conhecer ou conhecer de outra maneira. Cesar Kiraly se desdobra em trazê-lo ao português. Inédito. Mas ainda só uma amostra. Mais, o leitor terá acesso mais tarde. Quando o caderno desdobrar-se em catálogo. É boa essa coisa do work in progress.

Costuram esses retalhos três cadernos de poesia. Brasileiros: Vivian de Moraes. Noemi Jaffe. Ricardo Domeneck. Espanhol: Pedro Sevylla de Juana. Brasileiros de novo: Mariana Laje. Cleyson Gomes. Davi Kinski. Francisco Hutz. Danilo Augusto. Rebeca Rasel. Português: Luiz Felipe Marinheiro. E a arte de Falves Silva. Um dos pioneiros entre o balancê das Vanguardas no Brasil.

Um modo de conhecer-se. O poeta diante de si. O poeta diante os poetas. Os poetas diante de si. Os poetas diante do poeta. O poeta e poetas diante dos leitores. Os leitores diante do poeta e dos poetas. Um exercício de multifaces. 

terça-feira, 19 de agosto de 2014

Uma tradução inédita de Allen Ginsberg


A Prophecy

O Future bards
chant from skull to heart to ass
as long as language lasts
Vocalize all chords
zap all consciousness
I sing out of mind jail
in New York State
without electricity
rain on the mountain
thought fills cities
I'll leave my body
in a thin motel
my self escapes
through unborn ears
Not my language
but a voice
chanting in patterns
survives on earth
not history's bones
but vocal tones
Dear breaths and eyes
shine in the skies
where rockets rise
to take me home

May 1968

* The Fall of America. 87.



Uma Profecia

Ó futuros bardos
cantadores: da caveira pro coração pro cu
o quão a linguagem perdure
Vocalize todos os acordes
frequente toda a consciência
Canto além da prisão da mente
no Estado de Nova Iorque
sem eletricidade
chove sobre a montanha
pensamento inunda cidades
Vou deixar meu corpo
num hotel caro
eu me escapo
por ouvidos não nascidos
Não minha linguagem
mas uma voz
cantando em padrões
sobreviventes na terra
não ossos históricos
mas tons vocálicos
Caros, respirações e olhos
brilhem nos céus
onde foguetes decolam
para me levar para casa

Maio 1968

* Tradução de Cesar Kiraly


segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Dois poemas de Urbano Tavares Rodrigues





DOIS POEMAS DE AMOR E VIDA 

I

Rosa vibrante dos subterrâneos
de uma nova resistência
desabrochas
com a luz do dia
sempre ao meu lado
o rosto e o seio
irradiando
o fogo jovem da paixão
dá-me essa água
da felicidade
que nos teus olhos brilha
Quero o sumo dos teus lábios
Entrar no jardim do teu corpo
é o esplendor da vida.


II

Nas folhagens do azul
mais luminoso
encontro a música silenciosa
do teu primeiro sorriso
e lembro
depois
o automóvel cortando a noite
a tua boca fremente
a tua mão na minha
Lisboa a madrugar
no renascer do mundo

Urbano Tavares Rodrigues nasceu a 6 de dezembro de 1923 em Lisboa. Autor de vasta obra que inclui ensaio, romance, novela, crônica, conto e poesia. Deste gênero, publicou títulos como O Alentejo (1958), A estremadura (1968), O Algarve em poemas (2003) e Poemas da minha vida (2004). O escritor português morreu a 9 de agosto de 2013, na sua cidade natal.



* Em Horas de vidro 

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Euclides da Cunha, o poeta segundo Augusto de Campos


Ilustração: Andrés Sandoval (detalhe)

DODECASSÍLABOS 

Estala na mudez universal das coisas
estrídulo tropel de cascos sobre pedras
e naquela assonância ilhada no silêncio
o cataclismo irrompe arrebatadamente.

O doer infernal das folhas urticantes
corta a região maninha das caatingas
fazendo vacilar a marcha dos exércitos
sob uma irradiação de golpes e de tiros.

Por fim tudo se esgota e a situação não muda,
lembrando um bracejar imenso, de tortura,
em longo apelo triste, que parece um choro.

Num prodigalizar inútil de bravura
desaparecem sob as formações calcáreas
as linhas essenciais do crime e da loucura.


OS CRENTES

Não inquiriram para onde seguiam.
E atravessaram serranias íngremes,
tabuleiros estéreis e chapadas rasas
na marcha cadenciada pelo toar das ladainhas
e pelo passo tardo do profeta...


TOCAIA

Dentre as frinchas,
dentre os esconderijos,
dentre as moitas esparsas, aprumados
no alto dos muramentos rudes,
ou em despenhos ao viés das vertentes
— apareceram os jagunços,
num repentino deflagrar de tiros.
Toda a expedição caiu, de ponta a ponta,
debaixo das trincheiras do Cambaio.


Euclides da Cunha nasceu a 20 de janeiro de 1866, em Cantagalo. Militar e logo destacado jornalista, cobriu o desfecho do conflito de Canudos, acontecimento que favoreceu a publicação de seu principal livro, Os sertões. Além de várias outras expressões da prosa, também escreveu poesia; as peças desse último gênero foram reunidas primeiro em Ondas (1883). Em 2009 saiu uma edição organizada por Leopoldo M. Bernucci e Francisco Foot Hardman intitulada Poesia reunida. Euclides da Cunha morreu a 15 de agosto de 1909, no Rio de Janeiro.



* Os poemas aqui apresentados é uma transcrição e versificação cuidada por Augusto de Campos a partir de Os Sertões, de Euclides da Cunha.




terça-feira, 12 de agosto de 2014

Dois poemas de Souzalopes




as mulheres são amadas na exata
terra da palavra água seu sol e
sua fala rio mais veloz o fo
go mais voraz a fera mais fera
garras de areia e dentes
de maré-cheia: chão

amor se amarra márcia de cabeça pelo avesso
no seco ou sob água ou onde roce o pelo ou seja
amor o corpo sempre e sempre o corpo
chama o corpo márcia amor é cego e louco
cego como fogo amor é todo pouco e sem
amor o mundo não se move a vida não revém

se vem a onda márcia ou uma onça passa onde eu
estou antes vivo ou morto e solta um osso meu
depois de morto ou vivo e diz o sonho a unha ou a
marra a palavra aranha diria arranha digo a
garra que é amor que fala é manha

quero palavra márcia que amor se faça
de nervo e osso e todo corpo como me fazes
amor quando entro e mais me invento
palavra no teu mais dentro e mais me faço
caminho de fala e água que amor me tragas

amor parece palavra márcia muda e emudece
o que a fala esconhece e a gente se pega
de unhas se pega de dentes e dedos e duas
mãos onde o mar onda e desonda palavra e amor
se pega pelos pés pelos cabelos e pelos e
no coração do corpo e onde mais maduraflor

meu pênis te penetra márcia melhor dizer
como nessa mesa-cama tua carne boa e brava ou
falando mais claro ponho meu pau na tua
buceta nua e crua alga de brasa e lua e
na água da palavra te falo como só amor re
volta a fala e fala o que mais claro calo

* de todo fogo

um dia ainda digo poesia
minha palavra de outra
um dia nunca será minha

porque poesia é cobra
a língua da cobra
é uma cobra e duas cobras


* de hágua

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Minerações




Há que se afinar o corpo até o último
sempre. Exercer-se como
instrumento capaz de receber a
poesia do mundo. Poesia suspensa
em rotação e translação. Movimentos
moderados alinhavando dias e
luares, estações e colheitas, minutos
e milênios, provisoriamente.

Há que se ter ouvido incapaz de
olvidar ruídos de asa e bússola que
arranham o silêncio com viagens. Ler
no vento notícia de aroma e sumo.
Pisar a terra sem sufocar a semente
grávida de árvore e fruto.

Há que se ter os carecimentos da terra
- sem luz e aquecida por estrela de
grandeza menor – onde eliminar
uma névoa é subtrair-se em aurora.

Há que se chorar com lágrimas
invisíveis como choram os peixes.
Nutrir-se de limo e lodo umedecidos
pelo próprio pranto. Nadar em
mágoas, repousar sob a sombra da
lua – cercar-se dessa fascinante farsa
do céu se mirando em espelho de
água e noite. Depois dormir, fechado
sobre si, como concha, sonhando
pérolas.

Há que se aprender do rio o ritmo.
Ao buscar o sal, seu curso não desfaz
paisagem, mas se refaz em paisagem.
Percorrendo o exato limite das
montanhas e planícies, o rio cumpre
a rota original esculpida pelo tempo,
pacientemente.

Há que se existir sem sede como a
chuva.  Crina e cauda de nuvem em
relâmpago e galope, destilando
macios espinhos de cristais. Chicote
acariciando pétalas, pontuando
flores  na superfície dos mares.
Desprender-se pautando o nada.
Enxaguar cansaços e entremear-se,
sem incômodo, nos poros da terra.
Regar raízes e outros mistérios
sigilosos do nascimento,
silenciosamente.

Há que se ser frágil o suficiente e
reconhecer-se inábil para inferir
emendas na lei que equilibra as
águas. Inábil para decretar outros
ministérios ao destino das
constelações. Inábil para escolher as
cores dos crepúsculos.

Há que se vicejar como fazem as
florestas. Unir-se em copas para
aniversariar com sombra o esforço
das raízes suportando tronco, galho,
fruto e flor, que tudo abraçam
desinteressadamente. Como as
árvores há que se receber a gota do
orvalho sem se molhar, preservando
o extrato da noite.

Há que se queimar em calor e luz
como faz o fogo. Chama
desenhando votivas sombras em
ouro e fumaça. Lume que arde
enquanto consome as causas.

Há que se escrever a vida em flauta e
vôo como cantam os pássaros.
Buscar na memória a lembrança e a
direção. Ocultar os rastros
percorridos para perder-se no
encontro e ninho. Decifrar o alfabeto
rabiscado nas linhas do vento,
gravado no fruto maduro,
embaraçado na pena trocada. Como
os pássaros, há que se escrever
enquanto é dia e para todos.

Há que se ter a discrição dos
minérios entretidos com os tons do
ar, da água, do fogo – e tão somente –
sem desconfiar fortunas. Ser na
terra o útero e o filho, sem sinais de
medo, nascimento, morte. E como
os minérios ignorar o até quando.

Há que se dormir como dormem as
noites. Aninhando, do poente ao
nascente, o mundo e seus pertences,
apenas para o repouso. Baixar as pálpebras –
asas que acordam sonhos.
E sem se surpreender com
os enigmas da treva, dormir. Dormir
como dorme a noite: sem se assustar
com os pios inusitados que cortam
o escuro até aos fantasmas.

Há que se ter a paciência dos caramujos
visitando veredas e várzeas sem se
ferir. Vagar sem pressa, polindo com
prata e alma o percurso. Sem se
desviar do acaso, vestido de espiral
e compasso, passear desejos em fio
e luz, serenamente. Estar assim, sem
perdas e heranças. Ser sem volta.

Há que se morrer como morrem as
sempre-vivas. Escapar-se de si sem
furtar-se aos olhares alheios. Ser, a um
tempo, presença e ausência.

Sorvê-la como seiva que inaugura no
homem um destino vertical. Há que
se somar à natureza até o último
sempre.


domingo, 3 de agosto de 2014

A edição n. 9 do caderno-revista 7faces já tem data de apresentação





Chega on-line no próximo dia 22 de agosto a edição n.9 do caderno-revista 7faces. Está tudo pronto já para o lançamento! A edição homenageia – como já divulgamos no Facebook – Allen Ginsberg. Traz ensaios de Claudio Willer, Sandra Erickson e Paulo Rafael sobre a obra do Beat-Poeta. Além disso, apresentamos uma entrevista inédita em português com Ginsberg mais poemas – como dissemos por aqui – de Vivian de Moraes, Noemi Jaffe, Ricardo Domeneck, Pedro Sevylla de Juana, Mariana Laje, Cleyson Gomes, Davi Kinski, Francisco Hutz, Danilo Augusto, Rebeca Rasel, Luiz Felipe Marinheiro. 


segunda-feira, 21 de julho de 2014

Poema inédito de João Ubaldo Ribeiro


Até a morte eu me atormentarei
Pelo que descobri e não encontrei,
Pelo que, pascaliano como sou,
Eu compreendi, e ainda assim maldigo.
Sou o idiota mais perfeito, aliás,
Por feito mais de carne que de gás.
É esse o fado que me leva adiante,
Num mundo para o qual não sou prestante.
Tudo o que tenho as mulheres me deram,
Consolação, razão para existir.
Benditas Berenices, Beneditas.
Também sejam benditos meus amigos,
Pois gosto deles, tenham longa vida,
E até eu mesmo que não a mereço,
Mas que a observo e sei qual é seu preço.

"De vez em quando, o João tinha surtos poéticos e escrevia poemas em inglês, língua que ele conhecia como raros nativos, mas tinha vergonha de mostrá-los e costumava destruí-los logo depois de escrevê-los. Certa vez, ainda no tempo do fax, ele me enviou um poema, que traduzi quase instantaneamente. Deste, felizmente, o João se afeiçoou e de vez em quando me pedia que o repetisse. E o repito aqui, porque parece um autorretrato desse que, além de um ser um dos mais complexos e deslumbrantes brasileiros de todas as eras, era também um amigo perfeito" - assim comenta Geraldo Carneiro em texto publicado n'O Globo, de 21 julho de 2014.

quinta-feira, 10 de julho de 2014

Dois poemas de Marcel Proust





SCHUMANN

Velho jardim cuja amizade te acolheu,
Vozes e arbustos que sibilam nos valados,
Suspiros e aflições de amantes fatigados
Schumann, soldado cantor que a guerra abateu.

Lá onde passam as pombas o vento truão
Impregna de jasmim a sombra da nogueira,
O infante lê o porvir nas chamas da lareira,
A nuvem fala do sepulcro ao coração.

Vertias lágrimas em meio ao carnaval,
Mesclava-se a doçura à amarga vitória,
Ainda freme a loucura na tua memória;
Podes chorar: ela pertence ao teu rival.

Rumo a Colônia, as águas do Reno sagradas...
Em suas margens, que regozijo de festas! Tudo cantava!
Mas agora só funestas Lágrimas rolam nas trevas iluminadas.

Com lealdade, a morte viceja em teu sonho,
São flores de esperança e o seu mal se desfaz...
Mas aflito despertas e a ingrata falaz
Outra vez te golpeia o coração tristonho.

Coleia ao som dos guizos, desfila, tão bela!
Schumann, doce amigo das almas e das flores,
A apascentar feliz o riacho das dores
Pelo velho jardim, fiel, sob a cancela
Onde o luar e os lírios se beijam – e ela
Se afasta, criança, a suplicar teus amores.


CUYP

Cuyp, sol poente, os pombos revoam, o céu
Tremula como água e a umidade de ouro
Rola da bétula, auréola à frente do touro,
Resina azul da tarde fumegante, agouro
Do charco inerte sob o límpido ouropel.
Cavaleiros a postos, plumas rosa-ouro,
As mãos do lado: o ar vivaz é um sorvedouro
A inflamar seus finos cachos anelados;
Sem perturbar o avanço do nimbado touro,
As frescas ondas vagam em campos raiados,
E partem, nevoeiro, rumo ao nascedouro
Onde vão aspirar uns minutos dourados.

Marcel Proust nasceu em Auteuil a 10 de julho de 1871. Autor de vasta obra, da qual se destaca Em busca do tempo perdido, escreveu também contos, crônicas e poesia. As produções neste último gênero saíram em Les Plaisirs et les Jours (traduzido no Brasil por Carlos Felipe Moisés como Os prazeres e os dias). Este livro, aliás, marcou sua estreia na literatura, em 1896. O escritor morreu em Paris a 18 de novembro de 1922.


* Traduções de Carlos Felipe Moisés. A partir de catálogo sobre a poesia de Marcel Proust editado pelo Blog Letras in.verso e re.verso. 

quarta-feira, 9 de julho de 2014

Um poema de Antonio Cisneros



RÉQUIEM (3)

Para as imensas perguntas celestes
não tenho outra resposta
além de comentários simples e sem graça
sobre as garotas
que vivem perto de minha casa
perto do farol e do dique Cisneros.
E não queiram ver
na tagarelice besta essa humildade
dos antigos gregos.
Ocorre apenas
que as imensas perguntas celestes
trazem à tona
meu desencanto e meus tédios.
Que por fim
me fazem ficar rondando
como um mosquito no final da tarde.
Fazendo hora,
enquanto chega o momento de oficiar
minhas pompas fúnebres,
que não serão grande coisa
com certeza.
Neste tempos duros bastará
uma mula velha
e uma ânfora de madeira
brilhante e negra
como o dorso molhado de um delfim.
Ah as perguntas celestes!
As imensas.


quinta-feira, 3 de julho de 2014

Quatro poemas + dois inéditos de Ivan Junqueira



Esse punhado de ossos

Esse punhado de ossos que, na areia,
alveja e estala à luz do sol a pino
moveu-se outrora, esguio e bailarino,
como se move o sangue numa veia.

Moveu-se em vão, talvez, porque o destino
lhe foi hostil e, astuto, em sua teia
bebeu-lhe o vinho e devorou-lhe à ceia
o que havia de raro e de mais fino.

Foram damas tais ossos, foram reis,
e príncipes e bispos e donzelas,
mas de todos a morte apenas fez
a tábua rasa do asco e das mazelas.

E ali, na areia anônima, eles moram.
Ninguém os escuta. Os ossos não choram.


No leito fundo

No leito fundo em que descansas,
em meio às larvas e aos livores,
longe do mundo e dos terrores
que te infundia o aço das lanças;

longe dos reis e dos senhores
que te esqueceram nas andanças,
longe das taças e das danças,
e dos feéricos rumores;

longe das cálidas crianças
que ateavam fogo aos corredores
e se expandiam, quais vapores,
entre as alfaias e as faianças

de tua herdade, cujas flores
eram fatídicas e mansas,
mas que se abriam, fluidas tranças,
quando as tangiam teus pastores;

longe do fel, do horror, das dores,
é que recolho essas lembranças
e as deito agora, já sem cores,
no leito fundo em que descansas.


E se eu disser

E se eu disser que te amo - assim, de cara,
sem mais delonga ou tímidos rodeios,
sem nem saber se a confissão te enfara
ou se te apraz o emprego de tais meios?

E se eu disser que sonho com teus seios,
teu ventre, tuas coxas, tua clara
maneira de sorrir, os lábios cheios
da luz que escorre de uma estrela rara?

E se eu disser que à noite não consigo
sequer adormecer porque me agarro
à imagem que de ti em vão persigo?

Pois eis que o digo, amor. E logo esbarro
em tua ausência - essa lâmina exata
que me penetra e fere e sangra e mata


O Poema

Que será o poema,
essa estranha trama
de penumbra e flama
que a boca blasfema?

Que será, se há lama
no que escreve a pena
ou lhe aflora à cena
o excesso de um drama?
Que será o poema:
uma voz que clama?
Uma luz que emana?
Ou a dor que algema?

De Poemas reunidos.


Essa música (inédito)

Essa música que retorna
como perfume de uma rosa,
essa música que se entorna
de uma ânfora por cujas bordas
escorre ainda o mel de outrora,
essa música insidiosa
numa antiquíssima harpa eólica:
seria o vento em suas cordas?
Seria Orfeu vindo das forjas
do inferno a que baixou, apóstata,
em busca da filha de Apolo,
Eurídice, a esposa morte
por quem até hoje ele chora?
Não é nada enfim. Tudo dorme.
Há, sim, alguém que à noite acorda
e vê-se em ruínas, sem memória
de um tempo que fugiu, mas volta
nessa música que se entorna,
e vai e vem, e vem e torna,
nessa música que retorna
como o perfume de uma rosa.

O poema (inédito)

Não sou eu que escrevo o meu poema:
ele é que se escreve e que se pensa,
como um polvo a distender-se, lento,
no fundo das águas, entre anêmonas
que nos abismos do mar despencam.

Ele é que se escreve com a pena
da memória, do amor, do tormento,
de tudo o que aos poucos se relembra:
um rosto, uma paisagem, a intensa
pulsação da luz manhã adentro.

Ele se escreve vindo do centro
de si mesmo, sempre se contendo.
É medido, estrito, minudente,
música sem clave ou instrumentos
que se escuta entre o som e o silêncio.

As palavras com que em vão o invento
não são mais que ociosos ornamentos,
e nenhuma gala lhe acrescentam.
Seja belo ou, ao invés, horrendo,
a ele é que cabe todo o engenho,

não a mim, que apenas o contemplo
como um sonho que se sustenta
sobre o nada, quando o mito e a lenda
eram as vísceras de que o poema
se servia para ir-se escrevendo.