domingo, 27 de abril de 2014

Três poemas de Vasco Graça Moura




fanny, a grande

amiga de minha mãe,
ossuda, esgalgada,
de cabelo escuro e curto,
e filha de uma inglesa, 

tinha um sentido prático
extraordinário e era
muito emancipada, para
os costumes da foz
daquele tempo. 

uma vez, estando
sozinha no cinema, sentiu
a mão do homem a
seu lado deslizar-lhe
pela coxa. prestou-se a isso e 

deixou-a estar assim,
com toda a placidez. mas abriu
discretamente a carteira de pelica,
tirou a tesourinha das unhas
e quando a mão no escuro

se imobilizou mais tépida,
apunhalou-a num gesto
seco, enérgico, cirúrgico.
o homem deu um salto
por sobre os assentos e

fugiu num súbito
relincho da
mão furada.
fanny foi sempre
de um grande despacho,

na sua solidão muito
ocupada num escritório. um dia
atirou-se da janela
do quinto andar
e pronto.

De Poemas com Pessoas


soneto do amor e da morte

quando eu morrer murmura esta canção 
que escrevo para ti. quando eu morrer
fica junto de mim, não queiras ver
as aves pardas do anoitecer
a revoar na minha solidão.

quando eu morrer segura a minha mão,
põe os olhos nos meus se puder ser,
se inda neles a luz esmorecer,
e diz do nosso amor como se não

tivesse de acabar, sempre a doer,
sempre a doer de tanta perfeição
que ao deixar de bater-me o coração
fique por nós o teu inda a bater,
quando eu morrer segura a minha mão.

De Antologia dos Sessenta Anos 


junto ao retrato

era vermelha a rosa
que a minha mulher cortou para pôr junto ao retrato
de minha mãe, que fazia anos ontem.
era de um fulgor surdo e recatado,
a implodir tantas coisas já sem nome
para o interior macio das pétalas.

"pus uma rosa do jardim junto ao retrato
da tua mãe", disse ela então ao telefone,
"uma rosa vermelha muito bonita", acrescentou
com uma leve sombra na voz e era sombria
a rosa, mesmo ao telefone, por ser o dia
dos seus anos. e era sombrio recordá-la.

uma flor pode ser de uma obscura incandescência
junto de alguém. prende-se a delicados filamentos da memória
como a cabelos enredados. era sombria a rosa
sobre a cabeça branca, o olhar bondoso, as feições plácidas,
o que de minha mãe não se desfigurou
e a rosa iluminava devagar,
junto ao retrato. 

De Poemas com pessoas 


Vasco Graça Moura nasceu a 3 de janeiro de 1942, em Foz do Douro, no Porto. Formado em Direito pela Universidade de Lisboa, ainda atuou com advogado até 1983. Uma década antes ingressa na carreira política e só depois de deixar a magistratura, depois de exercer vários cargos na vida pública, passa a se dedicar exclusivamente à literatura. Escreveu prosa (ficção e ensaio) e poesia, gênero que o fez reconhecido. Sua estreia aqui, acontece ainda em 1963 com Modo mudando e segue durante toda a vida com mais de duas dezenas títulos, muitos premiados. Na lista das premiações destacam-se o Prêmio Fernando Pessoa (1995), o Grande Prêmio de Poesia APE/ CTT (1997) e o Prêmio Vergílio Ferreira (2007). Exerceu importante trabalho na tradução, vertendo ao português autores como Racine, Dante, Shakespeare, Molière, Petrarca, Rainer Maria Rilke, Voltaire, dentre outros. Morreu em Lisboa no dia 27 de abril de 2014.