segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Minerações




Há que se afinar o corpo até o último
sempre. Exercer-se como
instrumento capaz de receber a
poesia do mundo. Poesia suspensa
em rotação e translação. Movimentos
moderados alinhavando dias e
luares, estações e colheitas, minutos
e milênios, provisoriamente.

Há que se ter ouvido incapaz de
olvidar ruídos de asa e bússola que
arranham o silêncio com viagens. Ler
no vento notícia de aroma e sumo.
Pisar a terra sem sufocar a semente
grávida de árvore e fruto.

Há que se ter os carecimentos da terra
- sem luz e aquecida por estrela de
grandeza menor – onde eliminar
uma névoa é subtrair-se em aurora.

Há que se chorar com lágrimas
invisíveis como choram os peixes.
Nutrir-se de limo e lodo umedecidos
pelo próprio pranto. Nadar em
mágoas, repousar sob a sombra da
lua – cercar-se dessa fascinante farsa
do céu se mirando em espelho de
água e noite. Depois dormir, fechado
sobre si, como concha, sonhando
pérolas.

Há que se aprender do rio o ritmo.
Ao buscar o sal, seu curso não desfaz
paisagem, mas se refaz em paisagem.
Percorrendo o exato limite das
montanhas e planícies, o rio cumpre
a rota original esculpida pelo tempo,
pacientemente.

Há que se existir sem sede como a
chuva.  Crina e cauda de nuvem em
relâmpago e galope, destilando
macios espinhos de cristais. Chicote
acariciando pétalas, pontuando
flores  na superfície dos mares.
Desprender-se pautando o nada.
Enxaguar cansaços e entremear-se,
sem incômodo, nos poros da terra.
Regar raízes e outros mistérios
sigilosos do nascimento,
silenciosamente.

Há que se ser frágil o suficiente e
reconhecer-se inábil para inferir
emendas na lei que equilibra as
águas. Inábil para decretar outros
ministérios ao destino das
constelações. Inábil para escolher as
cores dos crepúsculos.

Há que se vicejar como fazem as
florestas. Unir-se em copas para
aniversariar com sombra o esforço
das raízes suportando tronco, galho,
fruto e flor, que tudo abraçam
desinteressadamente. Como as
árvores há que se receber a gota do
orvalho sem se molhar, preservando
o extrato da noite.

Há que se queimar em calor e luz
como faz o fogo. Chama
desenhando votivas sombras em
ouro e fumaça. Lume que arde
enquanto consome as causas.

Há que se escrever a vida em flauta e
vôo como cantam os pássaros.
Buscar na memória a lembrança e a
direção. Ocultar os rastros
percorridos para perder-se no
encontro e ninho. Decifrar o alfabeto
rabiscado nas linhas do vento,
gravado no fruto maduro,
embaraçado na pena trocada. Como
os pássaros, há que se escrever
enquanto é dia e para todos.

Há que se ter a discrição dos
minérios entretidos com os tons do
ar, da água, do fogo – e tão somente –
sem desconfiar fortunas. Ser na
terra o útero e o filho, sem sinais de
medo, nascimento, morte. E como
os minérios ignorar o até quando.

Há que se dormir como dormem as
noites. Aninhando, do poente ao
nascente, o mundo e seus pertences,
apenas para o repouso. Baixar as pálpebras –
asas que acordam sonhos.
E sem se surpreender com
os enigmas da treva, dormir. Dormir
como dorme a noite: sem se assustar
com os pios inusitados que cortam
o escuro até aos fantasmas.

Há que se ter a paciência dos caramujos
visitando veredas e várzeas sem se
ferir. Vagar sem pressa, polindo com
prata e alma o percurso. Sem se
desviar do acaso, vestido de espiral
e compasso, passear desejos em fio
e luz, serenamente. Estar assim, sem
perdas e heranças. Ser sem volta.

Há que se morrer como morrem as
sempre-vivas. Escapar-se de si sem
furtar-se aos olhares alheios. Ser, a um
tempo, presença e ausência.

Sorvê-la como seiva que inaugura no
homem um destino vertical. Há que
se somar à natureza até o último
sempre.