sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

Dois poemas de James Joyce



NOTURNO

Lúgubres na penumbra,estrelas pálidas o archote
amortalhado ondeiam
Dos confins do céu,fogos-fantasmas alumbram
arcos sobre arcos que se alteiam,
nave pecadobreu da noite
Serafins,
As hostes sem norte despertam
para o serviço, até que tombem
na penumbra sem lua,mudas,turvas, ao fim,
assim que ela erga e vibre inquieta
o seu turíbulo
e alto,longo,á turva,
sobrelavada nave,
a estrela-sino tange,enquanto, calmas,
as espirais do incenso ascendem,nuvem sobre nuvem,
rumo-ao-vazio, do venerável
resíduo de almas


BAHNHOFSTRASSE

Olhos que zombam mostram com sinais
a rua em que ando enquanto a tarde cai-
a rua é turva, e seus sinais,violáceos-
a estrela do encontrar-se e do apartar-se
estrela má!da pena!a idade moça,
do coração pleno de alento,foi-se,
e falta um velho e sábio para entender os
sinais, que me acompanham zombeteiros


Nasceu em Dublin, em 2 de fevereiro de 1882. Em 1902, depois de se formar, mudou-se para Paris, por pensar que lá poderia estudar medicina. Porém, logo acabou por assistir a aulas e por devotar-se à escrita de poemas e rascunhos e à elaboração de um “sistema estético”. Seu primeiro livro foi a antologia de poemas de Música de câmara, publicado em Londres, em 1907; depois vieram Dublinenses, um livro de contos, em 1914; Um retrato do artista quando jovem (1916) e Exilados (1918), uma peça. Ulysses, um livro em que estivera trabalhando desde 1914, foi publicado no seu aniversário, em Paris, em 1922, e deu-lhe fama internacional. No mesmo ano, começou a trabalhar em Finnegans Wake, que publicou em 1939. Morreu em Zurique a 13 janeiro de 1941. 

* Traduções de Alípio Correia.


quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Três poemas inéditos de Caio Fernando Abreu




REALISTA N. 2

Teve um tempo que amor
era tia Clara vestida de branco na janela do trem
que levava a Porto Alegre. Com baldeação
em Santa Maria da Boca do Monte...

Hoje é supositório contra hemorroidas:
sete e quinhentos a caixinha na farmácia
mais suja do Arouche

Julho de 1978


FEVER 77°

Deixa-me entrelaçar margaridas
nos cabelos de teu peito.
Deixa-me singrar teus mares
mais remotos
com minha língua em brasa.

Quero um amor de suor e carne
agora:

enquanto tenho sangue.

Mas deixa-me sangrar teus lábios
com a adaga de meus dentes.
Deixa-me dilacerar teu flanco
mais esquivo
na lâmina de minhas unhas.

Quero um amor de faca e grito
agora:

enquanto tenho febre.

14 de janeiro de 1975



PRESS TO OPEN

Estavam ali as portas
janelas e varandas.
Estavam ali
na fronteira do olhar
onde o de dentro encontra
justamente
com o de fora.

Nesse ponto exato
elas estavam.

Bastava um gesto.

Mas o meu estar parado
era maior do que eu.
Estar parado/estar vivo:
a mesma incompreensão
e medo
entre mim e aquele estar das coisas.

Estar ali
como nunca ter chegado.
Estar ali
como ter visto absolutamente tudo.
Estar ali
por estar ali.
E além de mim
o que eu não ousava.

Ah:
relembro a amplidão dessas varandas
os pequenos raios de luz
nos vidros coloridos das janelas.
Revejo a dura consistência da porta
cerrando seu segredo. E me retomo
ali
no imóvel do gesto que não fiz.
Como se pudesse
agora
escancarar portas e janelas
para sair nu pelas varandas
desvairado e nu
— um profeta, um louco, um santo.
Sair para o vento, o sol, as tempestades,
as neves, as quedas de estrelas e Bastilhas,
o cheiro de jasmins entontecendo os quintais.

(Pudesse retomar manhãs, amigo,
manhãs perdidas como o que não fui.)

Mas continuo
ali.
Aqueles espaços
permanecem tão mortos de mim
como um corpo que se ama
e não se toca.

Londres, 4 de fevereiro de 1974.

Caio Fernando Abreu nasceu a 12 de setembro de 1948, em Santiago, Rio Grande do Sul. Destacou-se como escritor pela narrativa curta com o livro Morangos mofados. Sua atividade literária, sempre diversa, incluiu ainda trabalhos como dramaturgo e poeta. Da poesia, restaram pouco mais de uma centena de textos escritos de entre 1960 e 1990. Morreu no dia 25 de fevereiro de 1996 em Porto Alegre. 

.........
Os dois últimos poemas são oferecidos por Antonio Miranda a partir de ABREU, Caio  Fernando. Poesias nunca publicadas de Caio Fernando Abreu.  Organização Letícia da Costa Chaplin, Márcia Ivana de Lima e Silva.  Rio de Janeiro: Editora Record, 2012. 


quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Três poemas de Luísa Dacosta



Entretenimento
Como quem procura conchas à beira do mar,
escolho as palavras para te dizer,
quando o silêncio dos teus braços
vestir o frio dos meus ombros.


Apelo
Atravessa os campos da noite
e vem.

A minha pele
ainda cálida de sol
te será margem.

Nas fontes, vivas,
do meu corpo
saciarás a tua sede.

Os ramos dos meus braços
serão sombra rumorejante
ao teu sono, exausto.

Atravessa os campos da noite
e vem.

Chamamento
Da margem do sonho
e do outro lado do mar
alguém me estremece
sem me alcançar.

Um bafo de desejo
chega, vago, até mim.
Perfume delido
de impossível jasmim.

É ele que me sonha?
Sou eu a sonhar?
Sabê-lo seria
desfazer, no vento,
tranças de luar.

Nuvens,
barcos,
espumas
desmancham-se na noite.
E a vida lateja, longe,
num outro lugar.


segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Dois poemas de Philip Levine



Pequeno Villon

Diz-me ele que em Banguecoque o roubam
Por ser branco; em Londres porque é preto;
Em Barcelona, judeu; em Paris, árabe:
Em todo o lado & a qualquer hora, & ele defende-se.

Ergue sete dedos grossos e pequenos
Para me mostrar que vem em sétimo lugar a nível mundial,
E não há qualquer paixão na sua voz, nem raiva
No liso dos olhos castanhos raiados de sangue.

Pede-me que lhe conte tudo o que me lembrar
Do meu pai, seu tio; fala da guerra
No Norte de África e do que veio depois,
A perda do pai, a perda do irmão,

As montras da padaria partidas, e o pão fresco
Polvilhado de vidro, o cheiro quente a centeio,
Tão forte que ele comia até ficar com a boca cheia de sangue.
Eles vivem aqui, vivem aqui e não morrem,

E aponta a cabeça negra sulcada
De anéis de cabelo preto. Toca-me o cabelo,
Diz-me para nunca desprezar
As duras cerdas que protegem a cabeça do lutador.

De dedos tristes, percorre-me a cara,
Como sou claro, diz-me, e macio.
Ficamos de pé até ao fim desta primeira e última visita.
Duro, 50 quilos, um metro e meio,

Não era maior que uma rapariga, agarra-me pelos ombros,
Beija-me na boca, os olhos ainda abertos,
Meu irmão imaginário, meu primo,
Eu próprio de outra forma, por toda a sua dor.

Philip Levine, Not This Pig (1968)


A verdade pura e simples

Comprei dólar e meio de batatas vermelhas, pequenas,
cozinhei-as em casa, cozidas, com a casca,
e comi-as ao jantar com um pouco de manteiga e sal.
Depois caminhei pelos campos ressequidos
nos arredores da cidade. A luz de meados de Junho
suspendia-se por cima dos escuros sulcos que tinha aos pés,
e sobre os carvalhos do monte os pássaros
reuniam-se para a noite, os gaios e tordos
trinavam de um lado para o outro, os tentilhões ainda cortando
a luz poeirenta. A mulher que me vendeu as batatas
era polaca; parecia saída
da minha infância, com uma camisola de lantejoulas cor-de-rosa e de óculos de sol,
a gabar a perfeição de toda a sua fruta e verduras
junto à berma da estrada e a insistir para eu provar
mesmo o milho cru, pálido e doce que carregava para todo o lado,
jurava ela, de Nova Jérsia. "Coma, coma", dizia,
"Mesmo que não coma, eu digo que comeu."
Há coisas que sabe
toda a vida. São tão simples e verdadeiras
que têm de se dizer sem qualquer elegância, sem métrica nem rima,
têm de se pôr na mesa junto ao saleiro,
o copo de água, a ausência de luz que se reúne
à sombra das molduras, têm de estar
nuas e sós, têm de estar por si sós.
Eu e o meu amigo Henri chegamos a isto os dois em 1965,
antes de eu me ir embora, antes de ele se começar a matar,
e ambos começarmos a trair o nosso amor. Consegues perceber
a que sabe o que eu digo? A cebolas e batatas, uma simples
pitada de sal, manteiga copiosa a derreter, é claro,
fica lá no fundo da garganta como uma verdade
que nunca se pronunciou porque nunca era altura certa,
lá fica o resto da tua vida, por dizer,
feito desse lodo a que chamamos terra, o metal que chamamos sal,
numa forma para a qual não temos palavras, e vive-se disso.

Philip Levine, The Simple Truth, Knopf (1994)

* Tradução de Hugo Pinto Santos. Poemas publicados no jornal Público.


sábado, 7 de fevereiro de 2015

Está on-line a edição 10 do caderno-revista 7faces



Há muito que sonhávamos dar conta de uma edição que colocasse em relevo a obra de Sophia de Mello Breyner Andresen. Ela está, sem nenhuma dúvida, entre os nomes mais significativos da poesia escrita em língua portuguesa no último século. As razões para darmos atenção ao trabalho da poeta portuguesa tem outra dimensão para além da significativa importância que sua obra assume para a literatura escrita no idioma de Camões: é um nome cuja atenção aqui no Brasil ainda não alcançou o limite merecido por sua obra. 

Este número reúne a poesia de Ricardo Escudeiro, Bianca Coggiola, Stefano Calgaro, Suzy Freitas, Guilherme Dearo, Alexandre Guarnieri, Nathan Matos Magalhães, José de Paiva Rebouças, Rodrigo Della Santina, Douglas Siqueira, José Carlos Brandão e Victor Prado; somam os ensaios de Alexandre Bonafim Felizardo e Pedro Belo Clara, que versam sobre algum aspecto da obra de Sophia mais a reprodução de material inédito em solo brasileiro da poeta portuguesa. 

Para ver/ler a nova edição basta ir ao site do caderno-revista 7faces.

Aproveitamos a ocasião para lembrar aos poetas e artistas plásticos que a chamada para publicação na 11ª edição já está aberta; recebemos material até o dia 30 de abril. Saiba como participar acessando aqui.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

Três poemas de Hilda Hilst



Como se te perdesse, assim te quero.
Como se não te visse (favas douradas
Sob um amarelo) assim te apreendo brusco
Inamovível, e te respiro inteiro

Um arco-íris de ar em águas profundas.           

Como se tudo o mais me permitisses,
A mim me fotografo nuns portões de ferro       
Ocres, altos, e eu mesma diluída e mínima
No dissoluto de toda despedida.

Como se te perdesse nos trens, nas estações
Ou contornando um círculo de águas
Removente ave, assim te somo a mim:
De redes e de anseios inundada.

*
Que este amor não me cegue nem me siga.
E de mim mesma nunca se aperceba.
Que me exclua do estar sendo perseguida
E do tormento
De só por ele me saber estar sendo.
Que o olhar não se perca nas tulipas
Pois formas tão perfeitas de beleza
Vêm do fulgor das trevas.
E o meu Senhor habita o rutilante escuro
De um suposto de heras em alto muro.

Que este amor só me faça descontente
E farta de fadigas. E de fragilidades tantas
Eu me faça pequena. E diminuta e tenra
Como só soem ser aranhas e formigas.

Que este amor só me veja de partida.

*
Demora-te sobre minha hora.
Antes de me tomar, demora.
Que tu me percorras cuidadosa, etérea
Que eu te conheça lícita, terrena

Duas fortes mulheres
Na sua dura hora.

Que me tomes sem pena
Mas voluptuosa, eterna
Como as fêmeas da Terra.

E a ti, te conhecendo
Que eu me faça carne
E posse
Como fazem os homens.



Hilda Hilst nasceu em 21 de abril de 1930. Estudou na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, da Universidade de São Paulo.  Publicou seu primeiro livro em 1950, Presságio e, logo no ano seguinte, Balada de Alzira. Na década posterior trocou a badalada vida urbana pela tranquilidade na fazenda da mãe, São José, próxima a campinas, onde construiu a casa do Sol. Escreveu teatro e ficção a partir de 1970. Dentre eles se destacam O caderno rosa de Lori LambyCartas de um sedutor e Rútilo nada. Morreu em 2004.