terça-feira, 31 de março de 2015
Dois poemas de Luiza Neto Jorge
O poema ensina a cair
O poema ensina a cair
sobre os vários solos
desde perder o chão repentino sob os pés
como se perde os sentidos numa
queda de amor, ao encontro
do cabo onde a terra abate e
a fecunda ausência excede
até à queda vinda
da lenta volúpia de cair,
quando a face atinge o solo
numa curva delgada subtil
uma vénia a ninguém de especial
ou especialmente a nós uma homenagem
póstuma.
Fábula
O animal entende-se:
tem cascos põe-os a render
tem pele aquece
fecha-se nos olhos para adormecer
tudo quanto lembra esquece
Dispende-se.
Permanece.
segunda-feira, 30 de março de 2015
Quatro poemas de Vasco Gato
Traço comum
descalço-me de sombras para chegar a ti
as linhas do meu rosto são claríssimas
nelas não vês o velho, a criança, o adulto
vês apenas o traço comum
que é onde eu procuro a tua mão
na transparência da minha palavra inteira
Janeiro
É esta a
completude dos dias
Quando se
reúnem sobre a cidade
Os sossegos
da nossa idade já meiga.
São estas as
palavras que ficam
Desde o
interior do nosso mais antigo nome.
É o inverno
aberto de janeiro
Com as
árvores despidas e o frio azul,
É o ano que
começa no tempo que é nada,
Os bolsos
que se enchem de mãos,
As casas que
parecem mais juntas.
Por esta
altura estarão a nascer
As horas
mais felizes das nossas vidas
- bebemos
chá escutando o lume
E amanhã
será um dia a menos,
Um outro som
acrescentando à voz,
Um abraço
fechando-se até ao amor.
Muito pouca
a morte é
uma coisa muito pouca
em nada se
compara ao crescimento das constelações
a morte não
respira nem se expande desde o centro
como fazem
as estações desde o coração da terra
e assim eu
sei que um sorriso é precioso
porque
respira e alarga-se dentro dos olhos
e quando
chega ao lugar em que a mão se abre
é já uma
forma de sossego uma lua coberta de luar
um modo
certo de trocar nomes em dias de excepção
Um dizer ainda puro
imagino que sobre nós virá um céu
de espuma e que, de sol em sol,
uma nova língua nos fará dizer
o que a poeira da nossa boca adiada
soterrou já para lá da mão possível
onde cinzentos abandonamos a flor.
dizes: põe nos meus os teus dedos
e passemos os séculos sem rosto,
apaguemos de nossas casas o barulho
do tempo que ardeu sem luz.
sim, cria comigo esse silêncio
que nos faz nus e em nós acende
o lume das árvores de fruto.
diz-me que há ainda versos por escrever,
que sobra no mundo um dizer ainda puro.
De Um
Mover de Mão, Assírio e Alvim, 2000.
sexta-feira, 27 de março de 2015
Cinco poemas de Tomas Tranströmer
PÁSSAROS MATINAIS
Desperto o automóvel
que tem o para-brisas coberto de pólen.
Coloco os óculos de sol.
O canto dos pássaros escurece.
Enquanto isso outro homem compra um jornal
na estação de trem
junto a um grande vagão de carga
completamente vermelho de ferrugem
que cintila ao sol.
Não há vazios por aqui.
Cruza o calor da primavera um corredor frio
por onde alguém entra depressa
e conta que como foi caluniado
até na Direção.
Por uma parte de trás da paisagem
chega a gralha
negra e branca. Pássaro agourento.
E o melro que se move em todas as direções
até que tudo seja um desenho a carvão,
salvo a roupa branca na corda de estender:
um coro da Palestina:
Não há vazios por aqui.
É fantástico sentir como cresce o meu poema
enquanto vou-me encolhendo
cresce, ocupa o meu lugar.
Desloca-me.
Expulsa-me do ninho.
O poema está pronto.
A ÁRVORE E A NUVEM
Uma árvore anda de aqui para ali sob a chuva,
com pressa, ante nós, derramando-se na cinza.
Leva um recado. Da chuva arranca vida
como um melro ante um jardim de fruta.
Quando a chuva cessa, detém-se a árvore.
Vislumbramo-la direita, quieta em noites claras,
à espera, como nós, do instante
em que flocos de neve desabrochem no espaço.
A NEVE CAI
Avizinham-se os funerais
cada vez mais densos
como placas da rua
quando nos aproximamos de alguma cidade.
De mil pessoas o contemplar
no lugar das imensas sombras.
Uma ponte constrói-se
devagar
eternamente a direito no espaço.
A INSEGURANÇA NACIONAL
A subsecretária inclina-se para a frente e desenha um X
E os seus brincos balançam com as espadas de Dâmocles.
Como uma manchada borboleta é contra o chão invisível
também o demônio se funde com o jornal aberto.
Um elmo que por ninguém usado o poder tomou
A mãe tartaruga foge voando sob as águas.
HISTÓRIAS DE MARINHEIROS
Há dias de Inverno sem neve em que o mar é parente
de espaços montanhosos, encolhido sob plumagem cinza,
azul apenas por um minuto, longas horas com ondas quais pálidos
linces, em vão buscando sustento nas pedras à beira-mar.
Em dias como estes saem do mar restos de naufrágios à procura
dos seus proprietários, sentados no sussurro da cidade, e afogadas
tripulações vêm a terra, mas tênues que fumaça de cachimbo.
(No Norte andam verdadeiros linces, com garras afiadas
e olhos sonhadores. No Norte, onde o dia
vive numa mina, de dia e de noite.
Ali, onde o único sobrevivente pode estar
junto ao forno da Aurora Boreal escutando
a música dos mortos de frio).quinta-feira, 26 de março de 2015
Três poemas de "A morte sem mestre", Herberto Helder
foto: Alfredo Cunha. |
nunca estive numa só linha a tão vertiginosa altura,
oh Anjo Príapo, oh Nossa Senhora Côna!
quando nos vimos nus um em frente ao outro,
em nossa primeira noite nos começos do mundo,
numa pensão rasca de um bairro de quinta ordem,
o putedo sai que entra pelos quartos à volta
- peço por isso que um qualquer erro de ortografia ou
sentido
seja um grão de sal aberto na boca do bom leitor impuro.
o teu nome novo, comecei eu a tirá-lo com uma navalha
de madeira grossa,
e nunca mais saía a única letra até dentro,
a primeira, e já toda a mão me sangrava
com o talho à volta dos dedos,
e a letra e o melhor do meu sangue e a seiva
metiam-se pela ferida como se ela mesma fosse
o meu trabalho apenas,
sangue que escorria pulso abaixo e me escoava:
a própria lavra da escrita -
oh quando arranjarei mão que alcance em sangue e força
o fundo final desse começo de ti,
nome terreno,
isso: coisa amada tanto quanto o alvoroço mortal deste fim
de idade:
será que nenhum poder me devasta ainda?
que um nós de sangue na garganta,
um nó de ar no coração,
que a mão fechada sobre uma pouca de água,
e eu não possa dizer nada,
e o resto seja só perder de vista a vastidão da terra,
sem mais saber de sítio e hora,
e baixo passar a brisa
pelo cabelo e a camisa e a boca toda tapada ao mundo,
por cada vez mais frios
o dia, a noite, o inferno, o inverno,
sem números para contar os dedos muito abertos
cortados das pontas dos braços,
sem sangue à vista:
só uma onda, só uma espuma entre pés e cabeça,
para sequer um jogo ou uma razão,
oh bela morte num dia seguro em qualquer parte
de gente em volta atenta à espera de nada,
um nós de sangue na garganta,
um nó apenas duro
•
Herberto Helder nasceu em 1930 no Funchal. Estudo na terra natal até o 5.º ano. Em 1948
matriculou-se em Direito mas cedo abandonou esse curso para se inscrever em
Filologia Românica, que frequentou durante três anos. Teve inúmeros trabalhos e
colaborou em vários periódicos como A Briosa, Re-nhau-nhau, Búzio, Folhas
de Poesia, Graal, Cadernos do Meio-dia, Pirâmide, Távola
Redonda, Jornal de Letras e Artes. Em 1969 trabalhou como
diretor literário da editorial Estampa. Viajou pela Bélgica, Holanda,
Dinamarca e em 1971 partiu para África onde fez uma série de reportagens para a
revista Notícias. Escreveu diversas obras em vários gêneros, mas sempre com maior afeição pela poesia; desta última forma, destacam-se livros como A colher na boca, Poemacto, O bebedor noturno, Ou o poema contínuo e A faca não corta o fogo. Em 1994 foi-lhe atribuído o Prêmio Pessoa, que recusou.
Faleceu em Cascais a 23 de março de 2015.
quinta-feira, 5 de março de 2015
Três poemas de Pedro Homem de Mello
Revelação
Tinha
quarenta e cinco… e eu, dezasseis…
Na minha
fronte, indómitos anéis
Vinham da
infância, saltitando ainda.
Contavam
dela: — Já falou a Reis!
Tinha
quarenta e cinco… e eu, dezasseis…
Formosa?
Não. Mais que formosa: linda.
Seu olhar
diz: Seja o que o Amor quiser
A verdade
planta que os meus dedos tomem!
Pela última
vez foste mulher…
E eu, pela
vez primeira, fui um homem!
Não choreis
os mortos
Não choreis
nunca os mortos esquecidos
Na funda escuridão das sepulturas.
Deixai crescer, à solta, as ervas duras
Sobre os seus corpos vãos adormecidos.
E quando, à tarde, o Sol, entre brasidos,
Agonizar... guardai, longe, as doçuras
Das vossas orações, calmas e puras,
Para os que vivem, nudos e vencidos.
Lembrai-vos dos aflitos, dos cativos,
Da multidão sem fim dos que são vivos,
Dos tristes que não podem esquecer.
E, ao meditar, então, na paz da Morte,
Vereis, talvez, como é suave a sorte
Daqueles que deixaram de sofrer.
Na funda escuridão das sepulturas.
Deixai crescer, à solta, as ervas duras
Sobre os seus corpos vãos adormecidos.
E quando, à tarde, o Sol, entre brasidos,
Agonizar... guardai, longe, as doçuras
Das vossas orações, calmas e puras,
Para os que vivem, nudos e vencidos.
Lembrai-vos dos aflitos, dos cativos,
Da multidão sem fim dos que são vivos,
Dos tristes que não podem esquecer.
E, ao meditar, então, na paz da Morte,
Vereis, talvez, como é suave a sorte
Daqueles que deixaram de sofrer.
Obrigado
Por teu sorriso
anónimo, discreto,
(O meu país é um reino sossegado…)
Pela ausência da carne em teu afecto,
Obrigado!
(O meu país é um reino sossegado…)
Pela ausência da carne em teu afecto,
Obrigado!
Pelo perdão
que o teu olhar resume,
Por tua formosura sem pecado,
Por teu amor sem ódio e sem ciúme,
Obrigado!
Por tua formosura sem pecado,
Por teu amor sem ódio e sem ciúme,
Obrigado!
Por no
jardim da noite, a horas más,
A tua aparição não ter faltado,
Pelo teu braço de silêncio e paz,
Obrigado!
A tua aparição não ter faltado,
Pelo teu braço de silêncio e paz,
Obrigado!
Por não
passar um dia em que eu não diga
— Existo, sem futuro e sem passado.
Por toda a sonolência que me abriga…
Obrigado!
— Existo, sem futuro e sem passado.
Por toda a sonolência que me abriga…
Obrigado!
E tu, que
hoje és meu íntimo contraste,
Ó mão que beijo por me haver cegado!
Ai! Pelo sonho intacto que salvaste,
Obrigado! Obrigado! Obrigado!
Ó mão que beijo por me haver cegado!
Ai! Pelo sonho intacto que salvaste,
Obrigado! Obrigado! Obrigado!
•
Pedro Homem de Mello nasceu a 6 de
setembro de 1904, no Porto, cidade onde viveu toda sua vida até 5 de março de
1984. Formado em Direito, optou por, anos depois de iniciar uma carreira como
advogado, ser professor de Língua Portuguesa. Começa a publicar em revistas
como a Presença e escreveu vasta obra poética e ensaística — nesta,
tomando como interesse o folclore português. Entre, alguns dos seus trabalhos,
destacam-se Bodas vermelhas (1947) e Ecce Homo (1974).
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