quarta-feira, 29 de abril de 2015

Cinco poemas de Judith Texeira



Mais beijos

Devagar...
outro beijo... outro ainda...
O teu olhar, misterioso e lento,
veio desgrenhar
a cálida tempestade
que me desvaira o pensamento!

Mais beijos!...
Deixa que eu, endoidecida,
incendeie a tua boca
e domine a tua vida!

Sim, amor...
deixa que se alongue mais
este momento breve!...
- que o meu desejo subindo
solte a rubra asa
e nos leve!

Maio, 1925.


Fim

Asa negra que esvoaça...
- Negos dias ensombrados!
Roubaram-me toda a graça
aos meus olhos macerados.

Nevrótica, fim de raça...
Os meus nervos delicados
vão sucumbindo à desgraça
dos tristes degenerados.

Trago nos nervos a morte!
sou uma sombra em recorte
de tristeza e de ruína...

Uivou dentro de mim a dor...
só lhe perco o som e a cor
em orgias de morfina!


Porquê?

Que tens dentro de ti
estranho obreiro?
Que silêncio angustioso
traduzem
os teus Crepúsculos doentes
- Bizarro caminheiro
do infortúnio!
Onde foste ouvir a dor
dos teus Poentes?

Que rumor imenso,
que tragédia contas
em cada cor?
Que grãos de incenso,
queimas tu, em cada Alvor?

Ó romeiro da desgraça!
Predestinado sonhador
de noites sem estrelas!
Trágico e errante...
Porque pintas tu sempre um Céu distante,
nas mortificadas cores
das tuas telas?

Julho – Céu Nublado
1922


O outro

Vão para ti, amor de algum dia,
os gritos rubros da minha alma em sangue;
vives em mim, corres-me nas veias,
andas a vibrar
na minha carne exangue!

Mas, quando nos teus olhos poisa o meu olhar
enoitado e triste,
vejo-te diferente...
Aquele que tu eras, e que eu amo ainda,
perdeu-se de ti
... e só em mim existe!

Agosto, 1924


Quando, não sei...

Há de chegar o dia
em que a minha tristeza há de acabar...
Tudo finda... renasce e recomeça...
E esta tristeza há de ter fim!
E então minha alegria
há de voltar!...

Só tenho medo
que, quando ela regressar
eu esteja tão cansada de viver,
que não chegue a festejar
esta ânsia enorme de vencer!...

Sim, porque da tristeza sempre fica
um jeito desolado...
Mas não! Eu hei de ser alegre,
e endoidecer cá dentro
toda a amargura do passado!

Mas não tardes
a realidade
do meu sonho!....
Porque há quem morra de saudade
e dor!
E eu não sei se terei vida
que chegue
se a tua demora
for mais longa, meu amor!


Dezembro, 1925

sexta-feira, 24 de abril de 2015

Dois poemas de Ascenso Ferreira



NANA, NANANA

Sentes que a minha vida é um rio caudaloso,
tomado do delírio das enchentes,
correndo alucinado para o mar!
E te assombras, com medo dos abismos,
onde as águas nos seus loucos paroxismos
te possam arrastar...

No entanto, sobre a flor dessas águas tempestuosas,
leve com as espumas vaporosas,
hás de sempre boiar...

Sentindo a sensação deliciosa
de que as águas arrogantes, tumultuosas,
estão cantando para te ninar.


MISTICISMO

Na paisagem da rua calma,
tu vinhas vindo… vinhas vindo…,
e teu vestido era tão lindo
que parecia que tu vinhas envolvida na tu’alma…
Alma encantada;
ama lavada
e como que posta ao sol para corar…
E que mãos misteriosas terão feito o teu vestido,
que até parece o de Maria Borralheira,
quando foi se casas…!
─ Certamente foi tecido
pelas mãos de uma estrela fiandeira,
com fios de luz, no tear do luar…
no tear do luar…
O teu vestido era tão que parece o de Maria Borralheira
quando foi se casar…
─ “Cor do mar com todos os peixinhos…!
─ Cor do céu com todas as estrelas…!
E vinhas vindo… vinhas vindo…
na paisagem da rua calma,
e o teu vestido era tão lindo

que parece que tu vinhas envolvida na tu’alma…


sábado, 18 de abril de 2015

A simplicidade de Cora Coralina



MEU EPITÁFIO

Morta... serei árvore
Serei tronco, serei/ronde
E minhas raízes
Enlaçadas às pedras de meu berço
São as cordas que brotam de uma lira

Enfeitei de/olhas verdes
Apedra de meu túmulo
Num simbolismo
De vida vegetal

Não morre aquele
Que deixou na terra
A. melodia de seu canto
Na música de seu verso.


CONSIDERAÇÕES DE ANINHA

Melhor do que a criatura,
fez o criador a criação.
A criatura é limitada.
O tempo, o espaço,
normas e costumes.
Erros e acertos.
A criação é ilimitada.
Excede o tempo e o meio.
Projeta-se no Cosmos


ANINHA E SUAS PEDRAS

Não te deixes destruir…
Ajuntando novas pedras
e construindo novos poemas.

Recria tua vida, sempre, sempre.
Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça.

Faz de tua vida mesquinha
um poema.
E viverás no coração dos jovens
e na memória das gerações que hão de vir.

Esta fonte é para uso de todos os sedentos.
Toma a tua parte.
Vem a estas páginas
e não entraves seu uso
aos que têm sede.

Cora Coralina nasceu na cidade de Goiás, antiga Villa Boa de Goyaz no dia 20 de agosto de 1889. Poeta e contista brasileira de prestígio, tornou-se um dos marcos da literatura brasileira. Iniciou sua carreira literária aos 14 anos com o conto “Tragédia na roça” publicado no Anuário Histórico e Geográfico do Estado de Goiás. Casou-se com o advogado Cantídio Tolentino de Figueiredo Brêtas e teve seis filhos. O casamento a afastou de Goiás por 45 anos. Ao voltar às suas origens, viúva, Cora Coralina iniciou uma nova atividade, a de doceira. Além de fazer seus doces, nas horas vagas ou entre panelas e fogão, Aninha, como também era chamada, escreveu a maioria de seus versos. Publicou o seu primeiro livro aos 76 anos de idade e despontou na literatura brasileira como uma de suas maiores expressões na poesia moderna. Em 1982 – mesmo tendo estudado somente até o equivalente ao 2º ano do Ensino Fundamental – Cora Coralina recebeu o título de doutora Honoris Causa pela Universidade Federal de Goiás e o Prêmio Intelectual do Ano, sendo, então, a primeira mulher a receber o troféu Juca Pato. No ano seguinte foi reconhecida como Símbolo Brasileiro do Ano Internacional da Mulher Trabalhadora pela FAO. Morreu em Goiânia em 10 de abril de 1985.


domingo, 5 de abril de 2015

Três poemas de "A faca não corta o fogo", de Herberto Helder


foto: Alberto Cunha


aparas gregas de mármore em redor da cabeça,
torso, ilhargas, membros e nos membros,
rótulas, unhas,
irrompem da água escarpada,
o vídeo funciona,
água para trás, crua, das minas,
tu próprio crias pêso e leveza,
luz própria,
levanta-os com o corpo,
cria com o corpo a tua própria gramática,
o mundo nasce do vídeo, o caos do mundo, beltà, jubilação, abalo,
que Deus funciona na sua glória electrónica

a vida inteira para fundar um poema,
a pulso,
um só, arterial, com abrasadura,
que ao dizê-lo os dentes firam a língua,
que o idioma se fira na boca inábil que o diga,
só quase pressentimento fonético,
filológico,
mas que atenção, paixão, alumiação
¿e se me tocam na boca?
de noite, a mexer na seda para, desdobrando-se,
a noite extraterrestre bruxulear um pouco,
o último,
assim como que húmido, animal, intuitivo, de origem,
papel de seda que a rútila força lírica rompa,
um arrepio dentro dele,
batido, pode ser, no sombrio, como se a vara enflorasse com as faúlhas,
e assim a mão escrita se depura,
e se movem, estria atrás de estria, pontos voltaicos,
manchas ultravioletas a arder através do filme,
leve poema técnico e trémulo,
linhas e linhas,
línguas,
obra-prima do êxtase das línguas,
tudo movido virgem,
e eu que tenho a meu cargo delicadeza e inebriamento
¿tenho acaso no nome o inominável?
mão batida, curta, sem estudo, maravilhada apenas,
nada a ver com luminotecnia prática ou teórica,
mas com grandes mãos, e eu brilhei,
o meu nome brilhou entrando na frase inconsútil,
e depois o ar, e os objectos que ocorrem: onde?
fora? dentro?
no aparte,
no mais vidrado,
no avêsso,
no sistema demoroso do bicho interrompido na seda,
fibra lavrada sangrando,
uma qualquer arte intrépida por uma espécie de pilha eléctrica
como alma: plenitude,
através de um truque:
os dedos com uma, suponhamos, estrela que se entorna sobre a mesa,
poema trabalhado a energia alternativa,
a fervor e ofício,
enquanto a morte come onde me pode a vida toda



rosto de osso, cabelo rude, boca agra,
e tão escuro em baixo até em
cima a linha
de ignição das pupilas
¿em que te hás-de tornar, em que nome, com que
potência e inclinação de cabeça?
o rosto muito, o ofício turvo, o génio, o jogo,
as mãos inexplicáveis,
a luz nas mãos faz raiar os dedos,
que a luz se desenvolva,
e a madeira se enrole sobre si mesma e teça e esconda a obra
e retorne e abra e mostre então
a abundância intrínseca,
porque se eriça num arrepio e se alvoroça
o espaço, e brilha quando,
no dia global,
espacial, no visível,
o caos alimenta a ordem estilística:
iluminação,
razão de obra de dentro para fora
— mais um estio até que a força da fruta remate a forma



Herberto Helder nasceu em 1930 no Funchal. Estudo na terra natal até o 5.º ano. Em 1948 matriculou-se em Direito mas cedo abandonou esse curso para se inscrever em Filologia Românica, que frequentou durante três anos. Teve inúmeros trabalhos e colaborou em vários periódicos como A BriosaRe-nhau-nhauBúzioFolhas de PoesiaGraalCadernos do Meio-diaPirâmideTávola RedondaJornal de Letras e Artes. Em 1969 trabalhou como diretor literário da editorial Estampa. Viajou pela Bélgica, Holanda, Dinamarca e em 1971 partiu para África onde fez uma série de reportagens para a revista Notícias. Escreveu diversas obras em vários gêneros, mas sempre com maior afeição pela poesia; desta última forma, destacam-se livros como A colher na bocaPoemactoO bebedor noturnoOu o poema contínuo e A faca não corta o fogo. Em 1994 foi-lhe atribuído o Prêmio Pessoa, que recusou. Faleceu em Cascais a 23 de março de 2015.