sábado, 30 de maio de 2015

Duas traduções inéditas para poemas de Vicente Aleixandre



CHOVE
Nesta tarde chove, e chove pura
a tua imagem. E o dia abre-se na minha memória.
Entraste.
Não ouço. A memória me dá apenas a tua imagem.
Só o teu beijo ou chuva cai na lembrança.
A tua voz chove, e chove o beijo triste,
o beijo fundo,
beijo molhado em chuva. O lábio é úmido.
Úmido de memória o beijo chora
de uns céus cinzentos
delicados.
Chove o teu amor molhando a minha memória
e cai e cai. O beijo
ao fundo cai. E cinzenta também
vai caindo a chuva.


PLENITUDE DO AMOR
Que fresco e novo encanto,
que doce perfil louro emerge
da tarde sem neblina?
Quando julguei que a esperança, a ilusão, a vida,
desviava o seu rumo para o oriente
em triste e vã procura do prazer.
Quando eu vira vogar pelos céus
imagens sorridentes, doces corações cansados,
espinhos que atravessavam belos lábios,
e um fumo quase dolorido
onde palavras enamoradas se desfaziam como um alento
do amor sem destino.
Apareceste leve como a árvore,
como a brisa cálida que uma ressaca envia do meio-dia, envolta
nos sais febris, como nas frescas águas do azul.

Uma árvore jovem, sobre um curvo horizonte,
horizonte palpável para beijos apaixonados;
uma árvore nova e verde que melodiosamente move suas folhas altivas
louvando a ventura do seu vento nos braços.

Um peito alegre, um coração simples como a praia-mar distante
que herda sangue, espuma, de outras regiões vivas.
Uma enorme onda lúcida sob o vasto sol aberto,
desdobrando a plumagem de um mar inspirado;
plumas, aves, espumas, mares verdes ou cálidos:
toda a mensagem viva de um peito rumoroso.

Eu sei que o teu perfil sobre o azul recente do crepúsculo intacto,
não finge vaga nuvem criada por um sonho.
Que forte fronte doce, que bela pedra viva,
acesa de beijos sob o sol melodioso,
é tua fronte beijada por uns lábios livres,
jovem ramo belíssimo que um ocaso arrebata!

Ah, a verdade tangível de um corpo que estremece
entre os braços vivos de teu amante arrebatado,
que beija vivos lábios, brancos dentes, ardores
e um colo como uma água calidamente alerta!

Por um torso nu giram tépidos fios.
Que risada de chuva sobre o teu peito ardente!
Que fresco ventre puro, onde sua curva oculta
leve musgo de sombra rumoroso de peixes!

Coxas de terra, barcas onde vogar um dia
pelo harmonioso mar do amor enturvado,
onde fugir libérrimos, rumo aos altos céus
em que a espuma nasce de dois corpos que voam.

Ah, a maravilha lúcida do teu corpo cantando,
faiscante de beijos sobre tua pele desperta:
resplandecente abóbada, noturnamente bela,
que umedece o meu peito de estrelas ou de espumas!

Já distante a agonia, a solidão gemente,
as torpes aves baixas que gravemente roçaram minha fronte nos sombrios dias dolorosos.
Já longe os mares ocultos que enviavam suas águas
pesadas, densas, lentas, sob a extinta zona da luz.

Agora, volto à tua claridade, não é difícil
reconhecer os pássaros matinais que gorgeiam,
nem descobrir nas faces os impalpáveis véus da aurora,
como é possível sobre as suaves rugas da terra
divisar o forte, vivo, generoso corpo nu do dia,
que mergulha os pés velozes em águas transparentes.

Deixai-me então, ondas preocupações de ontem,
abandonar meu lento vestuário sem música,
qual uma árvore que depõe o seu luto rumoroso,
seu pálido adeus à tristeza,
para exalar feliz suas folhas verdes, suas campânulas azuis
e essa espuma feliz que se encapela em sua copa
quando pela primeira vez a invade a ridente primavera.

Depois do amor, da felicidade ativa do amor, repousado,
deitado, imitando descuidadamente um regato,
reflito em mim as nuvens, os pássaros, as futuras estrelas,
a teu lado, oh recente, oh viva, oh entregada;
e olho-me em teu corpo, em tua forma branda, dulcíssima, apagada,
como se contempla a tarde que transbordante termina.

* As traduções são de Pedro Fernandes.


quinta-feira, 28 de maio de 2015

Três poemas de José Alberto Oliveira



A PROVÍNCIA

1. CHAVES
Qual a virtude
das cidades pequenas?
A bondade das sestas?
A excelência de almoços,
nos fins-de-semana?
A melancolia do crepúsculo,
no traço das serras?
Se outros preferem
mediocridade mais anónima,
haverá quem pense
que algum sítio
é bom para viver.
Ou nenhum.
O que é o mesmo.

2. CHÁ (E UM EPIGRAMA DE PALLADAS)
As tias do Castelejo
não permitiam que as visitas
saíssem sem beber
xícaras de chá forte e açucarado 
eu tinha por esse chá a devoção
e o entusiasmo de um prosélito.
Agora que lavam os pires
nas ribeiras do paraíso
e eu substituí tal infusão
benévola por sublimados bárbaros,
estarei também já morto
e a vida é um sonho,
ou estarei vivo e foi
a vida que morreu?


CRÔNICA
Uma gripe que se arrasta
um jantar que ficou azedo,
uma lembrança por enganosa,
um empenho que não vale o que custa.
Para outra altura fica o resumo
dos milagres, o relato dos prodígios
a prova derradeira da falência dos humores.

Agora, mais do que antes, os artistas
têm pressa e o demiurgo acordou;
o espírito afundou-se nas águas.
Amanhã, quem acordar cedo terá
mais tempo para se arrepender.

sábado, 23 de maio de 2015

Os poemas do ministro*



UM ARTIGO DE COURO

a plana cama
do cara da marmita
agita
coma a cama
como arroz e repolho frito.

o encontro trama
um afeto
mas ele pensa
repensa (às 5 da manhã
              na banca
              o cartaz nu
              da nua mulher)
repensa com gana
               (às 18:30 hs
               na americana
               os seios a ceia
               as mulheres a grana
em baixo de sua luva
o suor com ares de orgasmo
apenas Joana
a plana cama
dura
cura
o dia de tanto faz
o dia normal
anormal igual
desigual o dia dia
sem mudança
mesmo dança
não cansa
tudo tanto faz

a plana cama
aos poucos desfaz
as rugas, filhos e flores.


ré REI rainha

olha firme
nas partes do
Rei
olhos do Rei
com as dobras
flagas
E os mesmos números pela conta
nos mesmos dias
Olha firme
nas partes do
Rei

Observa o pé
a calça
firme
cuidado
firme
Observá o ré
Rei


SONETO DESATAVIADO

Figuras no mundo, sozinhas
entristecem os seus olhares perdidos
com a mesma solidão
dum canto espremido de angústia.

Num canto, o medo
noutro, desconsolos
de um tempo sem rumo
num tempo sem fim.

Se contorce de fome o homem
sôfrego, feroz a ânsia
o perturba, E geme surrado.

Atira-se com força e loucura
no grito maior - liberdade contra a morte.
Insano, dobra os joelhos e chora.

* Na coluna "Painel das Letras", no jornal "Folha de São Paulo", Raquel Cozer faz o divertido registro sobre o passado como poeta do novo ministro Luiz Edson Fachin. "Enquanto cursava Direito na Universidade Federal do Paraná, no final dos anos 1970, ele frequentava os mesmos círculos literários de Paulo Leminski e Alice Ruiz, e chegou a publicar um livro, "Abaixo-Assinado", com o amigo João Bosquo", registra a colunista que foi resgatar o lado menos conhecido dessa verve através do jornalista João da Penha, que na época foi um dos editores do suplemento literário do jornal carioca "Tribuna da Imprensa".  "Tenho a impressão de que, se ele não tivesse escrito poesia, a literatura brasileira não iria se ressentir", brinca o jornalista. 

sexta-feira, 15 de maio de 2015

Poemas Canhotos, do último livro de Herberto Helder

foto: Alberto Cunha.


em boa verdade houve tempo em que tive uma ou duas artes poéticas,
agora não tenho nada:
sento-me, abro um caderno, pego numa esferográfica
e traço meia dúzia de linhas:
as vezes apenas duas ou três linhas;
outras, vinte ou trinta:
houve momentos em que fui apanhado neste jogo e cheguei
a encher umas quantas páginas do caderno
aconteceu também por vezes que o papel pareceu
estremecer,
mas o mundo, não: nunca senti que o mundo estremecesse
sob as minhas palavras escritas,
o que já senti, e é de facto um pouco estranho, foi isto:
enquanto escrevia, o mundo parecia deslocar-se,
e quando eu chegava ao fim das linhas escritas,
sabia que estava tudo feito,
sentia que deveria morrer
mas, como se vê, nunca o mais simples atingiu em mim a
sua própria profundidade

*

escrever poemas não é boa maneira de atordoar os
tempos do verbo,
não é o mesmo que meter a cabeça num buraco abissínio,
nem perder algures uma perna
e lembrar-me depois de perder ainda a outra:
ninguém ganha assim uma barra de ouro,
ninguém glorifica o corpo queimando-o com barras de ouro,
ninguém transforma assim uma chaga a beleza humana,
tórax e membros e a cabeça por entre a espuma:
e como só de pensá-lo o corpo avança!
escrever, deixar de escrever,
escrever ou não escrever não é acabar assim tão depressa
quanto se pensava
um poema ou dois ou cem não é nunca até ao fim,
escrever poemas não é apenas vou ali e já volto à morte do
costume:
colinas tão próximas como se guardassem os nossos próprios
olhos,
e logo depois leva-as o vento para adjectivos longínquos,
tudo tão prodigioso que se não entende nada:
uma rosa é uma rosa é uma rosa - disse ela em inglês
(há quantos anos li isso!)
(há quantos anos fiquei bêbedo desse talhão de roseiras!)
a rose is a rose is a rose et coetera
- mudou-me a vida?
oh faminta ciência da paciência!
coisas bem menores mudaram para sempre a minha vida,
e então porque não a mudaria uma rosa compactamente
múltipla?
morrer por uma rosa é que fia mais fino:
que fabuloso fio em que roca e em que fuso,
que segredo do mundo

*

fico tão feliz quando vejo como os golfinhos são inteligentes
tão subtis no súbito entendimento das intenções segundas
que temos em relação a eles
se lhes dessem a ler bons poemas maior proveito teriam
aqueles que os escrevem
do que têem com A ou B
eu cá por mim estou certo de que nenhum golfinho diria
a propósito da morte de Deus e da glória do poema onde
morre
as palavras turvas que transmitiram algumas bocas
maometanas
uma dessas bocas foi a mesma que disse
viva o profeta!
quando decretaram a morte de Salman Rushdue
por causa dos Poemas Satânicos
parecia Lisboa nas trevas católicas
mas não ele felizmente não estava à mão de matar
até aproveitou a confusão e mudou de mulher
e na Dinamarca para aquecer um pouco
a malta gozava fazendo caricaturas sacrílegas dos ayatolas
mais um pouco e salva-se o mundo

*

o António Ramos Rosa estava deitado na cama
contra a parede
e deu meia volta sobre si mesmo
e ficou de cara voltada contra a parede
e fechou os olhos
e fechou a boca
e ficou todo fechado
e então morreu todo
fundo e completo de uma só vez
e apenas ele no tempo e no espaço
e só agora passado ano e meio eu compreendo
como era preciso ser assim tão íntimo para sempre
tão compacto
mais que o mundo inteiro
— e ele sou eu

Herberto Helder nasceu em 1930 no Funchal. Estudo na terra natal até o 5.º ano. Em 1948 matriculou-se em Direito mas cedo abandonou esse curso para se inscrever em Filologia Românica, que frequentou durante três anos. Teve inúmeros trabalhos e colaborou em vários periódicos como A BriosaRe-nhau-nhauBúzioFolhas de PoesiaGraalCadernos do Meio-diaPirâmideTávola RedondaJornal de Letras e Artes. Em 1969 trabalhou como diretor literário da editorial Estampa. Viajou pela Bélgica, Holanda, Dinamarca e em 1971 partiu para África onde fez uma série de reportagens para a revista Notícias. Escreveu diversas obras em vários gêneros, mas sempre com maior afeição pela poesia; desta última forma, destacam-se livros como A colher na bocaPoemactoO bebedor noturnoOu o poema contínuo e A faca não corta o fogo. Em 1994 foi-lhe atribuído o Prêmio Pessoa, que recusou. Faleceu em Cascais a 23 de março de 2015.

domingo, 10 de maio de 2015

Três poemas de Carlos Nejar



DE COMO A TERRA E O HOMEM SE UNEM

Fica a terra, passa o arado,
mas o homem se desgasta;
sangra o campo, pasce o gado,
brota o vento de outro lado
e a semente também brota.
Fica a terra, passa o arado
e o trabalho é o que nos passa,
como nome, como herança;
fica a terra, a noite passa. 

A semente nos consome, 
mas a terra se desgasta. 

2. 

Que será do novo homem 
sobre a terra que vergasta ?
Sangra a terra, pasce o gado
e o trabalho é o que nos passa. 

Vem o sol e cava a terra; 
a semente é como espada.
Há uma noite que nos gera
quando a noite é dissipada. 

Vem a noite e cava a terra; 
vem a noite, é madrugada. 

3. 

O homem se desgasta, 
sopro misturado
ao sopro rijo do arado.
Vai cavando. 

Madrugada sai da terra, 
como um corpo se entreabre
para o orvalho e para o trigo. 

O homem vai cavando, 
vai cavando a madrugada. 


ASSENTADA

Chega a esta casa
sem prazo ou contrato.
Faze de pousada
as salas e quartos.
Os nossos arreios
ninguém os desata
com ódio e receios.

O tempo não sobe
nas suas paredes;
secou como um frio
nos beirais da sede;
calou-se nos mapas,
na plácida aurora,
nos pensos retratos.

Entra nesta casa
que é tua e de todos,
há muito deixada
aberta aos assombros.

Entra nesta casa
tão vasta que é o mundo,
pequena aos enganos,
perdida, encontrada.
Os dias, os anos
são palmos de nada.


POEMA DA DEVASTAÇÃO

Há uma devastação
nas coisas e nos seres,
como se algum vulcão
abrisse as sobrancelhas
e ali, sobre esse chão,
pousassem as inteiras
angústias, solidões,
passados desesperos
e toda a condição
de homem sem soleira,
ventura tão curta,
punição extrema.

Há uma devastação
nas águas e nos seres;
os peixes, com seus viços,
revolvem-se no umbigo
deste vulcão de escamas.

Há uma devastação
nas plantas e nos seres;
o homem recurvado
com a pálpebra nos joelhos.
As lavas soprarão,
enquanto nós vivermos. 

sexta-feira, 1 de maio de 2015

Quatro poemas de Ruy Cinatti



AGARREI NO AR

Agarrei no ar um véu
esmaecido de azul,
igual ao azul do céu
iluminado pela lua.
Eu passo a vida a sonhar
iluminado pela lua.


TEUS OLHOS

Teus olhos, Honorine, cruzaram oceanos,
longamente tristes, sequiosos,
como flor aberta nas sombras em busca do Sol.
Vieram com o vento e com as ondas,
através dos campos e bosques da beira-mar.
Vieram até mim, estudante triste,
dum país do Sul.


PRAIA PRESA

Praia presa, adiantada
no mar, no longe, no círculo
de coral que o mar represa.
Praia futura invocada.
Timor ressurge das águas,
praia futura invocada.


AMANHÃ É OUTRO DIA 

Andamos à deriva como num pranto de morto
ungido por mãos amigas, renovado
pela saudade e pelo tacto
físico, pela dor nata,
palavrório e facto
que entanto ferem como ortiga
oculta e cardo.

Então é ver como acorrem,
pressurosos, os benquistos
presentes sempre ao festim
da morte, por devoção.

Mas há que tomar destino,
morder o pó respirado,
cegar com amor, com ódio,
a comum face dos vivos.

Ruy Cinatti nasceu a 8 de março de 1915 em Londres. Autor de vasta obra que avança pela poesia, campo de maior interesse e pelo qual foi reconhecido, pela historiografia, antropologia e agronomia, além de prosa memorialística. Sua estreia na literatura acontece em 1941 com o livro Nós não somos deste mundo e das obras de destaque estão O tédio recompensado, Memória descritiva, Manhã imensa, Corpo-alma e Tempo da cidade, este último, póstumo. Morreu em Lisboa a 12 de outubro de 1986.  ca