domingo, 21 de junho de 2015

Um poema de Adriano Wintter

César Paternosto. Confluence 5, 1998.

LEGE ARTIS 
I

a beleza tem leis
que as palavras apagam
quando grafam seu gênesis
no princípio da página

e revelam que o belo
surge brusco e sozinho
como sonho ou delírio
na pupila da linha

(não há luz que construa
nem engenho que gere
a sua flor na brancura
insondável do cérebro
onde pétalas lusas
ditam versos inéditos)

ela anula a estrutura
cinde a lira do logos
parte o fêmur do número
ri do rosto de Apolo
e na mão do arquiteto
crava o da(r)do do acaso

quando quer, como quer
a si tudo submete
tem um trono no caos
outro sólio na ordem

reino em branco do arcano
onde incógnita impera
às vogais, consoantes
dando timbre e mistério

II
a beleza tem leis
que o poeta obedece
feito cego refém
de suas hostes secretas

as safiras da forma
ele pensa que amolda
que lapida, que pole
ou colares concebe
mas as pedras precisas
são geradas por ela

ruge azul e se insere
no momento que escolhe
sob o molde que elege
pressionando sua mente
a cingir cada verso
da maneira que pede

advém do inconsciente
que antecede a palavra
e em riquezas excede
as jazidas da fala

um silêncio que ao léxico
alimenta e revela
hermertiza e esclarece
ou destrói, desespera

luta eterna do ser
contra o som e o alfabeto
contra a arte que o diz
sem contudo expressá-lo

III
a beleza tem leis
que o poeta ignora
apesar de contê-las
na extensão de sua obra

linha a linha reflete
harmoniosa herméticas
de suas luzes simétricas
que jamais entrevê
mas cintilam no avesso
do céu negro que versa

lê de luas ilógicas
raios presos nas letras
tão sutis que velozes
somem quando aparecem
lê de estrelas o eco
sob a trevas fonéticas

e por todo poema
em discurso de eclipse
lê o zênite líquido
do vocábulo impresso

mas em língua ilegível
– um dialeto do nada –
que reflete o invisível
escrevendo o que apaga

lê a lei do silêncio
no limite da lauda:
a poesia começa
onde o verbo acaba


* A partir da Revista Brasileira, jan-mar. 2015, ano IV, n.82, p. 218-220. Adriano Wintter tem poemas publicados na 6ª edição do caderno-revista 7faces, leia aqui.

sexta-feira, 19 de junho de 2015

Dois poemas de Hélia Correia



1

Para quê, perguntou ele, para que servem
Os poetas em tempo de indigência?
Dois séculos corridos sobre a hora
Em que foi escrita esta meia linha,
Não a hora do anjo, não: a hora
Em que o luar, no monte emudecido,
Fulgurou tão desesperadamente
Que uma antiga substância, essa beleza
Que podia tocar-se num recesso
Da poeirenta estrada, no terror
Das cadelas nocturnas, na contínua
Perturbação, morada da alegria


2


Essa beleza que era também espanto
Pelo dom da palavra e pelo seu uso
Que erguia e abatia, levantava
E abatia outra vez, deixando sempre
Um rasto extraordinário. Sim, a hora,
Dois séculos antes, em que uma ausência
E o seu grande silêncio cintilaram
Sobre a mão do poeta, em despedida.

quarta-feira, 10 de junho de 2015

Três poemas políticos de Fernando Pessoa




À EMISSORA NACIONAL

Para a gente se entreter
E não haver mais chatice
Queiram dar-nos o prazer
De umas vezes nos dizer
O que Salazar não disse.

Transmitem a toda a hora,
Nas entrelinhas das danças,
«Salazar disse» (Emissora)
E aí vem essa senhora
A Estada Nova com tranças.

Sim, talvez seja o melhor,
Porque estes homens do estado
Quando falam, é o pior,
E então quando são do teor
Do Salazar já citado!

1935


SOLENEMENTE

Solenemente
Carneiríssimamente
Foi aprovado
Por toda a gente
Que é, um a um, animal,
Na assembleia nacional
Em projecto do José Cabral.

Está claro
Que isso tudo
É desse pulha austero e raro
Que, em virtude de muito estudo,
E de outras feias coisas mais
É hoje presidente do concelho,
Chefe de internormas animais,
E astro de um estado novo muito velho.

Que quadra
Isso com qualquer espécie de graça?
Nada.
A Igreja Católica ladra
E a Maçonaria passa.

E eles todos a pensar
Na vitória que os uniu
Neste nada que se viu,
Dizem, lá se conseguiu,
Para onde agora avançar?
Olhem, vão p’ra o Salazar
Que é a p… que os pariu.

1935


FADO DA CENSURA

Neste campo da Política
Onde a Guarda nos mantém,
Falo, responde a Censura;
Olho, mas não vejo bem.

Há um campo lamacento
Onde se dá bem o gado;
Mas, no ar mais elevado,
Na altura do pensamento,
Paira um certo pó cinzento,
Um pó que se chama Crítica.
A Ideia fica raquítica
Só de sempre o respirar.
Por isso é tão mau o ar
Neste campo da Política.

Às vezes nesta planura,
Se o vento sopra do Norte,
O pó torna-se mais forte,
E chama-se então Censura.
É um pó de mais grossura,
Sente-se já muito bem,
E a Ideia, batida, tem
Uma impressão de pancada,
Como a que dão numa esquadra
Onde a Guarda nos mantém.

O pó parece que chove,
Paira em todos os sentidos,
Enche bocas e ouvidos,
Já ninguém fala nem ouve.
Se a minha boca se move,
Logo à primeira abertura
A enche esta areia escura.
Só trago e me oiço tragar.
É uma conversa a calar.
Falo, responde a Censura.

Vem então qualquer vizinho,
Dos que podem abrir boca;
No braço, irado, me toca,
E diz, «Não vê o caminho?
O seu dever comezinho
De patriota aí tem.
Vê o caminho e não vem?!»
Para isso, bolas aos molhos!
Se este pó me entrou prós olhos,
Olho, mas não vejo bem.

1935

Fernando Pessoa nasceu em 13 de junho de 1888, em Lisboa. Considerado um dos mais importantes poetas das literaturas de língua portuguesa, a sua poesia acabou por ser decisiva na evolução de toda a produção poética do século XX. Se nele é ainda notória a herança simbolista, Pessoa foi mais longe, não só quanto à criação (e invenção) de novas tentativas artísticas e literárias, mas também no que respeita ao esforço de teorização e de crítica literária. É um poeta universal, na medida em que nos foi dando, mesmo com contradições, uma visão simultaneamente múltipla e unitária da Vida. É precisamente nesta tentativa de olhar o mundo duma forma múltipla (com um forte substrato de filosofia racionalista e mesmo de influência oriental) que reside uma explicação plausível para ter criado os célebres heterônimos - Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis, sem contarmos ainda com o semi-heterônimo Bernardo Soares. Morreu em 30 de novembro de 1935.

terça-feira, 9 de junho de 2015

Um poema para Saramago



Espuma das palavras traz a relevo o exercício da força imaginativa do escritor como produto da relação com os acontecimentos de sua própria vida, das leituras e da aproximação que mantém com os principais temas de seu tempo” (Pedro Fernandes)

Em julho de 2015, cumprem-se 5 anos da publicação da edição especial do caderno-revista 7faces Variações de um mesmo tom: diálogos sobre a poesia de José Saramago. A edição que, ainda sem data, irá ganhar um formato impresso. 

E antes disso, merece ter entre o percurso de seu aparecimento e de sua consolidação o gesto que agora se cumpre. Um poema de Rui Santos ganha vida pelo trabalho plástico de Diane Sbardelotto. Espuma das palavras. O trabalho vem a lume no dia 18 de junho, quando assinala a passagem dos 5 anos da morte de José Saramago.  

Enquanto isso, reveja este número que tanto nos orgulha. São mais de 200 páginas de conteúdo e um encarte com 100 páginas.

segunda-feira, 8 de junho de 2015

Seis poemas de Daniel Faria



Eu peneiro o espírito e crivo o ritmo
Do sangue no amor, o movimento para fora
O desabrigo completo. Penetro os múltiplos
Sentidos da palavra que sopra a sua voz
Nos pulsos. Crivo a pulsação do canto
E encontro
O silêncio inigualável de quem escuta

Eis porque as minhas entranhas vibram de modo igual
Ao da cítara

Eu peneiro as entranhas e encontro a dor
De quem toca a cítara. A frágil raiz
De quem criva horas e horas a vida e encontra
A corda mais azul, a veia inesgotável
De quem ama
Encontro o silêncio nas entranhas de quem canta

Eis porque o amor vibra no espírito de quem criva

O músico incompleto peneira a ideia das formas
Eu sopro a água viva. Crivo
O sofrimento demorado do canto
Encontro o mistério
Da cítara


*

Trabalho a partir da existência da luz
E de certos minerais
Mesmo se não mereço a matéria luminosa
Da terra soprada donde o homem vem. A ânfora, o vidro. E recolho
O fogo
Quando como no princípio a manhã se abeira

Trabalho a partir da ceifa matinal. Experimento
A paveia antiga do homem vergado, o rumor enxugado do líquido
Na névoa, no orvalho, na carne
Da palavra calculando o voo
Pelo reflexo sobre as águas: no início

Trabalho na água que a voz movimentou
Gerando os sismos: e sou
O húmus, o barro nas margens
O homem que nunca compreendeu


*

Sem outra palavra para mantimento
Sem outra força onde gerar a voz
Escada entre o poço que cavaste em mim e a sede
Que cavaste no meu canto, amo-te
Sou cítara para tocar as tuas mãos.
Podes dizer-me de um fôlego
Frase em silêncio Homem que visitas
Ó seiva aspergindo as partículas do fogo
O lume em toda a casa e na paisagem
Fora da casa
Pedra do edifício aonde encontro
A porta para entrar
Candelabro que me vens cegando.
Sol
Que quando és nocturno ando
Com a noite em minhas mãos para ter luz.


*

Homens que são como lugares mal situados
Homens que são como casas saqueadas
Que são como sítios fora dos mapas
Como pedras fora do chão
Como crianças órfãs
Homens agitados sem bússola onde repousem

Homens que são como fronteiras invadidas
Que são como caminhos barricados
Homens que querem passar pelos atalhos sufocados
Homens sulfatados por todos os destinos
Desempregados das suas vidas

Homens que são como a negação das estratégias
Que são como os esconderijos dos contrabandistas
Homens encarcerados abrindo-se com facas

Homens que são como danos irreparáveis
Homens que são sobreviventes vivos
Homens que são sítios desviados
Do lugar


*

A pedra tem a boca junto do ouvido
E para dentro de si mesma sem cessar se diz.

Se cair nos olhos
Quebrar-se-á em pranto.
Se rodar no dorso
Vergar-me-á.

Pesa-me no bolso
E na cabeça.
Não é um pensamento.
É uma ideia ensimesmada. Uma pedra fechada
Pelo lado de dentro.


*

Sou gémeo de mim e tudo
O que sou é
Distância.
Estou sentado sobre os meus joelhos
Separado.
Aquilo que une
É um rumor.
Não descanso. Sou urgência
De outro sítio. E pudesse velar-me
Longe
Dos homens como se neles
Adormecesse.

Daniel Faria nasceu a 10 de abril de 1971, em Baltar-Paredes. Seu interesse pela poesia é despertado quando foi estudar no seminário e pelo contato com a obra de autores como Eugénio de Andrade e Sophia de Mello Breyner Andresen. É desse período de férteis leituras que inicia a publicação esparsa de seus primeiros poemas. Morreu a 9 de junho de 1999. Sua poesia completa foi reunida por Vera Vouga e está publicada pela Assírio e Alvim.

domingo, 7 de junho de 2015

Três poemas de Max Martins




Sou um homem sem títulos

Sou um homem sem títulos,
Sou todo legenda.

O que me consola é a valsa
A linha azul sem rumo
Que me envolve e me supera,
O sol que me entontece,
A carta que me busca,
A lágrima sem dor.

Percebe-se que de meus bolsos brotam ervas
Com raízes no deserto
E o paletó me embrulha das mentiras
Que julgo convencionais.

Não atino com o público
Se não o seu jeito de me odiar.
Se no vento busco a forma de meus cabelos
Nos quais me deito e me enrijeço,
De outro modo, o corpo, sem relevo, escuda-me.


As anônimas

Ó amadas de todas as noites
Sei que vos esquecereis todas
Vossos olhos vossos peitos.

Ó amadas pretas e brancas
Incógnitas das ruas longínquas,
Amadas franzinas
De lírios portões sereis esquecidas.

Amadas de quartos cheirando a água de Colônia,
Vos esquecereis,
Vossos olhos,
Vossos peitos.


A casa

Esta casa é uma ruína,
quase terreno baldio:
coração de minha mãe
– esta terra de ninguém,
está cheio e está vazio.

Esta casa vem abaixo,
está prestes a cair.
Esta casa foi à lua,
esta casa foi um tronco,
foi navio
Com seu mar encapelado
e bandeiras em abril
 (minha mãe na capitânea,
na janela minha irmã).

Tantos anos se passaram,
tantos sonhos se esgotaram;
minha mãe nos sustentava,
nos amava e costurava,
nossa vida a sua alma
como a roupa que vestia.

Esta casa é uma ruína
que dá pena a seus vizinhos.
Sobem ervas nas paredes
desta casa-soledade
encolhida pela vida
 que dentro dela cresceu;
esta vida que é poeira
esta vida que é silêncio
esta vida que é fechada
esta vida que é goteira
nesta casa condenada.

Esta casa tinha escada,
esta escada três degraus.
E no último tropeçaram
estes sete filhos seus.
Nesta casa inda ressoa
o pigarro de meu pai
(seu cigarro era uma brasa
nessa noite que o escondeu
de seus filhos tropeçados
nesta vida que os comeu).

Esta casa vai cair!
Veio abaixo nossa vida,
veio a chuva, foi-se o sol;
a lama sobe a escada,
às paredes sobe o limo:
esta casa enlouqueceu!

Nossa mãe se ressequiu.
Sua vida é esta máquina
que de surda enrouqueceu
(único sinal de vida
Que a escada não desceu).
Mas é forte esta sua lida,
sua máquina que não pára
que nos cose e nos trabalha.

Max Martins nasceu a 20 de junho de 1926, em Belém, no Pará. Sua vivência com a escrita começa no jornal O Colegial e nas colaborações com revistas como Encontro e cadernos de cultura como Folha do Norte. Publica o primeiro livro, O estranho, em 1952. O título abre uma rica obra que reúne ainda outras publicações como Anti-retrato (1960), H’era (1971), O risco subscrito (1980), A fala entre parêntesis (1982), Caminho de Marahu (1983) Para ter onde ir (1992) e Colmando a lacuna (2001). O poeta morreu em Belém, no dia 9 de fevereiro de 2009. 

quarta-feira, 3 de junho de 2015

Uma antologia com novas traduções para poemas de Allen Ginsberg



Quando anunciamos a chegada da edição 9 do caderno-revista 7faces em agosto de 2014 anunciamos a publicação de um catálogo com novas traduções para poemas de Allen Ginsberg. Já estamos na 10ª edição, publicada em fevereiro. E antes que saia o número 11, no qual trabalhamos e que deve vir on-line em 2016 até o fim de julho  de outubro, esse material estará disponível aos leitores.

A antologia tem poemas de Howl, Kaddish, Reality Sandwiches, The Fall of America e Mind Breaths com tradução de Cesar Kiraly. Alguns poemas foram publicados na edição #9 (aqui) e outros foram lidos durante uma sessão aberta ao público realizada em 2014 no Rio de Janeiro (tem vídeos aqui). Assina um prefácio Guilherme Gontijo Flores; assina a capa da edição Helton Souto, o mesmo autor da ilustração desta post.

Garantimos: está uma edição belíssima!