quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Três poemas inéditos de Caio Fernando Abreu




REALISTA N. 2

Teve um tempo que amor
era tia Clara vestida de branco na janela do trem
que levava a Porto Alegre. Com baldeação
em Santa Maria da Boca do Monte...

Hoje é supositório contra hemorroidas:
sete e quinhentos a caixinha na farmácia
mais suja do Arouche

Julho de 1978


FEVER 77°

Deixa-me entrelaçar margaridas
nos cabelos de teu peito.
Deixa-me singrar teus mares
mais remotos
com minha língua em brasa.

Quero um amor de suor e carne
agora:

enquanto tenho sangue.

Mas deixa-me sangrar teus lábios
com a adaga de meus dentes.
Deixa-me dilacerar teu flanco
mais esquivo
na lâmina de minhas unhas.

Quero um amor de faca e grito
agora:

enquanto tenho febre.

14 de janeiro de 1975



PRESS TO OPEN

Estavam ali as portas
janelas e varandas.
Estavam ali
na fronteira do olhar
onde o de dentro encontra
justamente
com o de fora.

Nesse ponto exato
elas estavam.

Bastava um gesto.

Mas o meu estar parado
era maior do que eu.
Estar parado/estar vivo:
a mesma incompreensão
e medo
entre mim e aquele estar das coisas.

Estar ali
como nunca ter chegado.
Estar ali
como ter visto absolutamente tudo.
Estar ali
por estar ali.
E além de mim
o que eu não ousava.

Ah:
relembro a amplidão dessas varandas
os pequenos raios de luz
nos vidros coloridos das janelas.
Revejo a dura consistência da porta
cerrando seu segredo. E me retomo
ali
no imóvel do gesto que não fiz.
Como se pudesse
agora
escancarar portas e janelas
para sair nu pelas varandas
desvairado e nu
— um profeta, um louco, um santo.
Sair para o vento, o sol, as tempestades,
as neves, as quedas de estrelas e Bastilhas,
o cheiro de jasmins entontecendo os quintais.

(Pudesse retomar manhãs, amigo,
manhãs perdidas como o que não fui.)

Mas continuo
ali.
Aqueles espaços
permanecem tão mortos de mim
como um corpo que se ama
e não se toca.

Londres, 4 de fevereiro de 1974.

Caio Fernando Abreu nasceu a 12 de setembro de 1948, em Santiago, Rio Grande do Sul. Destacou-se como escritor pela narrativa curta com o livro Morangos mofados. Sua atividade literária, sempre diversa, incluiu ainda trabalhos como dramaturgo e poeta. Da poesia, restaram pouco mais de uma centena de textos escritos de entre 1960 e 1990. Morreu no dia 25 de fevereiro de 1996 em Porto Alegre. 

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Os dois últimos poemas são oferecidos por Antonio Miranda a partir de ABREU, Caio  Fernando. Poesias nunca publicadas de Caio Fernando Abreu.  Organização Letícia da Costa Chaplin, Márcia Ivana de Lima e Silva.  Rio de Janeiro: Editora Record, 2012.