segunda-feira, 8 de junho de 2015

Seis poemas de Daniel Faria



Eu peneiro o espírito e crivo o ritmo
Do sangue no amor, o movimento para fora
O desabrigo completo. Penetro os múltiplos
Sentidos da palavra que sopra a sua voz
Nos pulsos. Crivo a pulsação do canto
E encontro
O silêncio inigualável de quem escuta

Eis porque as minhas entranhas vibram de modo igual
Ao da cítara

Eu peneiro as entranhas e encontro a dor
De quem toca a cítara. A frágil raiz
De quem criva horas e horas a vida e encontra
A corda mais azul, a veia inesgotável
De quem ama
Encontro o silêncio nas entranhas de quem canta

Eis porque o amor vibra no espírito de quem criva

O músico incompleto peneira a ideia das formas
Eu sopro a água viva. Crivo
O sofrimento demorado do canto
Encontro o mistério
Da cítara


*

Trabalho a partir da existência da luz
E de certos minerais
Mesmo se não mereço a matéria luminosa
Da terra soprada donde o homem vem. A ânfora, o vidro. E recolho
O fogo
Quando como no princípio a manhã se abeira

Trabalho a partir da ceifa matinal. Experimento
A paveia antiga do homem vergado, o rumor enxugado do líquido
Na névoa, no orvalho, na carne
Da palavra calculando o voo
Pelo reflexo sobre as águas: no início

Trabalho na água que a voz movimentou
Gerando os sismos: e sou
O húmus, o barro nas margens
O homem que nunca compreendeu


*

Sem outra palavra para mantimento
Sem outra força onde gerar a voz
Escada entre o poço que cavaste em mim e a sede
Que cavaste no meu canto, amo-te
Sou cítara para tocar as tuas mãos.
Podes dizer-me de um fôlego
Frase em silêncio Homem que visitas
Ó seiva aspergindo as partículas do fogo
O lume em toda a casa e na paisagem
Fora da casa
Pedra do edifício aonde encontro
A porta para entrar
Candelabro que me vens cegando.
Sol
Que quando és nocturno ando
Com a noite em minhas mãos para ter luz.


*

Homens que são como lugares mal situados
Homens que são como casas saqueadas
Que são como sítios fora dos mapas
Como pedras fora do chão
Como crianças órfãs
Homens agitados sem bússola onde repousem

Homens que são como fronteiras invadidas
Que são como caminhos barricados
Homens que querem passar pelos atalhos sufocados
Homens sulfatados por todos os destinos
Desempregados das suas vidas

Homens que são como a negação das estratégias
Que são como os esconderijos dos contrabandistas
Homens encarcerados abrindo-se com facas

Homens que são como danos irreparáveis
Homens que são sobreviventes vivos
Homens que são sítios desviados
Do lugar


*

A pedra tem a boca junto do ouvido
E para dentro de si mesma sem cessar se diz.

Se cair nos olhos
Quebrar-se-á em pranto.
Se rodar no dorso
Vergar-me-á.

Pesa-me no bolso
E na cabeça.
Não é um pensamento.
É uma ideia ensimesmada. Uma pedra fechada
Pelo lado de dentro.


*

Sou gémeo de mim e tudo
O que sou é
Distância.
Estou sentado sobre os meus joelhos
Separado.
Aquilo que une
É um rumor.
Não descanso. Sou urgência
De outro sítio. E pudesse velar-me
Longe
Dos homens como se neles
Adormecesse.

Daniel Faria nasceu a 10 de abril de 1971, em Baltar-Paredes. Seu interesse pela poesia é despertado quando foi estudar no seminário e pelo contato com a obra de autores como Eugénio de Andrade e Sophia de Mello Breyner Andresen. É desse período de férteis leituras que inicia a publicação esparsa de seus primeiros poemas. Morreu a 9 de junho de 1999. Sua poesia completa foi reunida por Vera Vouga e está publicada pela Assírio e Alvim.