terça-feira, 29 de setembro de 2015

Dois poemas de Armando Silva Carvalho



SEM CABEÇA

Até mesmo a manhã custa a perceber.
É como se alguém me decepasse a cabeça a meio da noite
e as horas se enganassem à volta do meu pescoço.

É fácil retratar uma degolação poética
em tempos de barbárie
tecnológica.

Afinal acordei no meio de gente ainda com cabeça
e eu sou aquele avô que os media
sempre ensinam.

Desgraçados dos tais
vestidos de amarelo para melhor serem vistos
com a faca viva encostada à garganta.

Comecei com a manhã imprecisa
meio cego a procurar um verso meu no meio da bruma
com a delicada nervosa faca de papel.

O mundo é um globo de gente ajoelhada,
de cabeças suspensas. E eu ao sair, só, do sono,
decapito o poema.


A ÁGUA

Com as duas mãos em concha prendo a água.
Fixo a água decepada
da parede.
Estou curvado para a água, criteriosa e diária,
amanhecido e só.

Que fala labiríntica
vai correndo desta água doméstica,
tão novo e tão antiga nos tubos do coração, nestes dedos gelados
      do tempo,
água que floresceu nos meus olhos molhados
de outra água
que gota a gota como um pão obediente e líquido
inunda agora
as mil formigas cegas da memória?

Devagar vou beijando esta água que esplandece nas veias arqueadas,
pontas de fogo nas mãos,
relevos de outros luxos vulcânicos,
hoje regatos de pedra, testamentos, no silencioso acordar
da casa adormecida.

Estou só entre estas mãos, a água e o meu passado.
Gostava que a idade fosse o espelho
que convertesse a água num filme recuperado
e os actores de riso mudo corressem
ao entendimento de heraclito.

Nas mãos dos deuses
se coloca a estrita criatura que professa a água.
Há um rancor que se solta da prosa
e da sanita.
A pobreza do corpo e o seu alívio são o sermão da montanha,
o rato ridículo do seu pequeno mundo.