segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Dois poemas de Pier Paolo Pasolini



UMA EDUCAÇÃO SENTIMENTAL

Não é Amor. Mas em que medida é minha
a culpa se não converto em Amor
os meus afetos? Muita culpa, de acordo,
se pudesse viver dia após dia
de uma louca pureza, de uma piedade cega.
Escandalizar com a minha mansidão.
Mas a violência em que me atordoo,
dos sentidos, do intelecto, era desde há anos
o único caminho. À minha volta,
nas origens, só havia a Língua das fraudes
instituídas, das ilusões devidas,
que as primeiras angústias
de um menino, as paixões pré-humanas,
já impuras, não exprimia. E quando,
adolescente, conheci neste país
algo que não era a alegria
de uma vida de criança — num país
provinciano, mas para mim absoluto, heroico —
foi a anarquia. Na nova e já mesquinha
burguesia de uma província sem pureza,
a primeira aparição da Europa
foi para mim aprendizagem do uso mais
puro da expressão, que a escassez
da fé de uma classe moribunda
iria ressarcir com a loucura e os tópoi
da elegância: que seria a indecente clareza
de uma língua que revela
a vontade inconsciente de não ser,
e a consciente vontade de subsistir
no privilégio e na liberdade
que por Graça são pertença do estilo.

  
AS BELAS BANDEIRAS

Os sonhos da manhã: quando
o sol já reina
com uma plenitude
que ninguém sente melhor que o vendedor ambulante
que há muitas horas anda pelas ruas
com barba de doente
sobre as rugas da pobre juventude:
quando o sol reina
em reinos de frutos e legumes já quentes, sobre cortinas
puídas, multidões
com roupas a cheirar obscuramente a miséria
— e já centenas de eléctricos foram e voltaram
pelos carris das avenidas que rodeiam a cidade,
com o seu perfume inexprimível,

os sonhos das dez da manhã,
para quem dormita, sozinho,
como um peregrino no seu catre,
um cadáver sem nome,
— surgem em luminosas letras gregas,
e, na sacralidade simples de duas ou três sílabas,
cheias, justamente, da brancura triunfante do sol —
são presságio de uma realidade
profundamente amadurecida e agora já madura, como o sol,
para ser saboreada, ou meter medo.

O que me diz o sonho da manhã?
“o mar, com ondas lentas, grandiosas, de grãos azuis,
assanha-se, agitando-se com fúria uterina,
irredutível
e como que feliz — porque também é felicidade
confirmar o mais atroz ato do destino —
rói a tua ilha, agora reduzida
a poucos metros de terra. ..”

Socorro, a solidão aproxima-se!

Não importa saber que a desejei, como um rei.

No sono, em mim, um menino mudo assusta-se,
pede piedade, apressa-se a correr para os abrigos,
com uma agitação
que “a virtude faz esquecer”, pobre criatura.
Aterra-o a ideia
de estar só
como um cadáver nas profundezas da terra.

Adeus, dignidade, no sonho, embora matutino!
Quem tem de chorar chora,
quem tem de se agarrar às abas da casaca de alguém,
agarra-se, e vai puxando, puxando,
para que os rostos cor de lama se voltem,
e o olhem nos olhos assustados
e fiquem a par da sua tragédia,
e vejam bem o que há de medonho no seu estado!

Sobre tudo isso, a brancura do sol,
como um fantasma que a história
faz pesar nas pálpebras
com o peso dos mármores barrocos ou românicos...

Fui eu que quis a minha solidão.
Por um processo monstruoso
que talvez só um sonho sonhado no seio
de outro sonho poderia revelar...

Entretanto, estou só.
Perdido no passado.
(Porque o homem tem na vida uma só época.)

De repente, os meus amigos poetas,
que partilham comigo a feia brancura
destes Anos Sessenta,
homens e mulheres, pouco mais velhos
ou mais jovens — estão ali, ao sol.

Não soube ter a graça necessária
para os manter por perto — à sombra de uma vida
cujo curso se mantém por demais ligado
à inércia radical da minha a1ma.

Depois, a velhice fez
da minha mãe e de mim
duas máscaras
que, porém, nada perderam
da ternura matinal
— e a antiga cerimónia
repete-se
com uma autenticidade
que só um sonho sonhado no seio de outro sonho
me permitirá talvez chamar pelo seu nome.

O mundo inteiro é o meu corpo insepulto.
Atol que se esboroa
sob as pancadas repetidas dos grãos azuis do mar.

Que hei—de fazer senão voltar a ser digno, ao acordar?
Talvez tenha chegado
a hora do exílio: a hora em que um antigo daria realidade
à realidade,
e a solidão amadurecida à sua volta
teria a forma da solidão.

Mas eu — como no meu sonho —
continuo a embalar-me em ilusões, dolorosas,
de verme paralisado por forças que não entende:
“não! não! é só um sonho!
a realidade
está lá fora, ao sol triunfante,
nas avenidas e nos cafés vazios,
na afonia suprema das dez horas da manhã,
nu m dia como os outros, com a sua cruz!”

O meu amigo com queixo de papa, o meu
amigo de olhos de avelã. ..
os meus queridos amigos do Norte
escolhidos por afinidades electivas doces como a vida ,
─ estão ali, ao sol.

A Elsa, com a sua loura dor,
— corcel ferido, caído,
sangrando — também lá está.

E a minha mãe está junto de mim...
mas para além de qualquer limite temporal:
somos dois sobreviventes num só.
Os seus suspiros, aqui, na cozinha,
o seu desassossego a cada sombra de notícia degradante,
cada suspeita de reinvestida
do ódio dessa horda de goliardos que riem
por baixo deste quarto onde agonizo
— são apenas o que na minha solidão é natural.

Como uma rainha atirada para a fogueira com o seu rei,
ou sepultada com ele
um túmulo que se vai como um batel
rumo aos milénios — a fé dos Anos Cinquenta
está aqui, comigo, já levemente para lá dos limites do tempo,
deixar-se também esboroar
pela paciência raivosa dos grãos azuis do mar.

E...
os meus amores de sensualidade pura,
repetidos nos vales sagrados da luxúria,
sádica, masoquista, as calças
com o inchaço morno
que marca o destino de um homem
─  são atos que cumpro a sós
no meio de um mar incrivelmente revolto.

Lentamente, os milhares de gestos sagrados,
a mão sobre o inchaço morno,
os beijos, sempre em bocas diferentes,
cada vez mais virgens,
cada vez mais próximas do encanto da espécie,
da norma que faz dos filhos ternos pais,
lentamente
foram-se transformando em monumentos de pedra
que aos milhares povoam a minha solidão.

Esperam
que uma nova vaga de racionalidade,
ou um sonho sonhado no fundo de outro sonho, fale deles.
Assim acordo,
mais uma vez:
e visto-me, sento-me à mesa de trabalho.
A luz do sol é já mais madura,
os vendedores ambulantes estão mais longe,
é mais acre, nos mercados do mundo, a tepidez das verduras,
ao longo das avenidas de inexprimível perfume,
na orla dos mares, nos sopés dos vulcões.
O mundo todo trabalha, na sua época futura.

Ah, belas bandeiras dos Anos Quarenta!
Pretexto para o bobo chorar.

Pier Paolo Pasolini nasceu a 5 de março de 1922 em Bolonha. Sua estreia na literatura acontece com a poesia, gênero que cultivará ao longo de sua carreira, marcada ainda pelo trabalho na prosa (ensaio, novela, romance), no teatro e nas artes plásticas, sobretudo no cinema. Foi brutalmente assassinado na madrugada do dia 1º para 2 de novembro em 1975, em Roma.



* A partir da tradução portuguesa de Maria Jorge Vilar de Figueiredo.