sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

Três poemas de Marguerite Yourcenar



NUNCA SEREI VENCIDA

Nunca serei vencida.
Não o serei
senão à força de vencer.

Cada armadilha estendida
fechando-me cada vez mais
no amor
que acabará por ser o meu
túmulo,
acabarei a minha vida numa cela
de vitórias.

Sozinha,
a derrota encontra chaves,
abre portas.

A morte,
para atingir o fugitivo,
tem de se pôr em movimento,
perder essa fixidez
que nos faz reconhecer
que ela é o duro contrário
da vida.

Ela dá-nos o fim do cisne
atingido em pleno voo,
de Aquiles agarrado pelos cabelos
por não sabermos que sombria Razão.

Como a mulher asfixiada no vestíbulo
da sua casa de Pompeia,
a morte não faz mais do que prolongar
no outro mundo os corredores
da fuga.

A minha morte será
de pedra.

Conheço as passagens,
as curvas,
as armadilhas,
todas as minas da Fatalidade.

Não posso perder-me.

A morte,
para me matar,
terá necessidade da minha
cumplicidade.


RECORDAMO-NOS DOS NOSSOS SONHOS

Recordamo-nos dos nossos sonhos:
não nos recordamos dos nossos sonos.

Apenas duas vezes penetrei nesses fundos
atravessados por correntes
onde os nossos sonhos
não são mais do que embarcações
de realidades submersas.

No outro dia,
bêbado de felicidade
como se fica bêbado de ar
no final de uma longa corrida,
atirei-me para a cama,
como um nadador
que se atira de costas,
os braços cruzados:
mergulhei num mar azul.

Encostado ao abismo
como uma nadadora que nada com prancha,
sustentada pela bóia de oxigénio
dos meus pulmões cheios de ar,
emergia desse mar grego
como uma ilha recém-nascida.

Esta noite,
bêbada de desgosto,
deixo-me cair sobre a cama
com os gestos de uma afogada
que se abandona:
cedo ao sono como à asfixia.

As correntes de recordações persistem
através do embrutecimento nocturno,
levam-me para uma espécie de lago Asfáltico.

Não há forma
de mergulhar nessa água saturada de sais,
amarga como a secreção das pálpebras.

Flutuo como a múmia sobre o seu betume,
na apreensão de um acordar
que será no máximo uma sobrevivência.

O fluxo,
depois o refluxo do sono
fazem-me rebolar contra minha vontade
nessa praia de cambraia.

A cada momento,
os meus joelhos batem um no outro
à tua lembrança.

O frio acorda-me,
como se me tivesse deitado
ao lado de um morto.


AUSENTE


Ausente,
a tua figura aumenta
a ponto de encher
o universo.

Passas
ao estado fluido
que é o dos fantasmas.

Presente,
ela condensa-se;
atinges as concentrações
dos metais
mais pesados,
do irídio,
do mercúrio.

Morro
com esse peso
quando ele me cai
no coração.


* Tradução de Maria da Graça Morais Sarmento

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Três mulheres, três poemas de Myriam Fraga



MARIA BONITA

Esta noite em Angico
A brisa é calma.
No silêncio farfalham
Minhas anáguas
Como farfalham asas
E no escuro minha carne
Cheira a mato.

Vem meu amor e lavra
Este roçado
Como quem quebra
Um cântaro,
Como quem lava
A casa;
Águas frescas na tarde.

Tuas limpas carícias,
Teus dedos como pássaros
E teu corpo que arde
Como estrelas
No espaço.

Não quero tua candeia,
Só meus sonhos acesos
E eu te direi de nácar,
Terciopelo,
Coisas antigas, pelo de
Leoa; voz de cego na feira.

Não quero teu braseiro,
Tua intensa
Cintilação que queima
Meus vestidos

Só quero a tua volta,
Tua presença
Iluminando a noite
Que me cerca
Como uma luz acesa
No postigo.

Que sabes de minha vida
Além da morte
Inquieta que me ronda?
Que sabes desta chita
Destes panos
Que envolvem minha nudez
Como uma chama?

São teus olhos
Carvões que me devoram,
São teus beijos
Fosforescências de mel,
Travo forte das frutas.

Teus dedos como setas
Apontam meu destino:
Meu caminho,
Na planta de teus pés;
Meu horizonte,
No risco de tuas mãos
E meus cabelos
Esparsos sobre a relva
Em que me habitas.

Sou teu medo, teu sangue,
Sou teu sono,
Tua alpercata
De couro,
Teu olho cego, miragem
Dos vidros
Com que miras
A mira do mosquete.

Sou teu sabre,
Facão com que degolas.
Sou o gosto do sal,
Veneno que espalharam
No prato.
Sou a colher de prata
Azinhavrada. Sou teu laço.

Teu lenço
No pescoço.
Sou teu chapéu de couro
Constelado
Com estrelas de prata,
Sou a ponta
De teu punhal buscando
O peito dos macacos.
Sou teu braço,
A cartucheira cruzada
Sobre o peito,
sou teu leito
De angico e alecrim

Sou a almofada
Em que deitas a face,
O cheiro agreste
Dos homens que mataste.
Sou a bainha
E a lâmina é meu resgate.

Sou tua fera. Sussuarana
No escuro — bote e salto.
Jaguatirica acesa nestes altos
Mundéus de teu alarme.
Sou o parto
Da morte que te espreita.

Sou teu guia
Tua estrela, teu rastro, tua corja.
Sou tua mãe que chora,
Sou tua filha. Teu cachorro fiel,
Tua égua parida.
Sou a roseta na carne,
O lombo nas esporas.

Sou montaria e cavalo,
Fúria e faca.
Ferro em brasa na espádua
Sou teu gado,
Tua mulher, tua terra,
Tua alma,
Tua roça. Coivara
Que incendeias e apagas,
Tua casa.

Areia no sapato.
Sou a rede
Aberta como um fruto,
Sou soluço. Fome escura
De poço. Sou a caça
Abatida. Lebre e gato,
Coisas quentes ao tato.

Vem, meu dono, meu sócio,
Meu comparsa.
Desarma o teu cansaço,
Desata a cartucheira,
A noite é farta
Como besta no cio,

A noite é vasta.
Vem devagar
E habita meu silêncio
Como se habita
Um claustro.

Teus beijos como
Lâminas. Como espadas.
Pasto de aves meu corpo
Que trabalhas
Como quem corta e lavra.

Desata a cartucheira,
Teu campo de batalha
Sou eu.
Por um momento
Esquece o que te mata
— Fúria e falta —
E enquanto a noite é calma
Vem e apaga
Na pele de meu peito
Esta fome sem data.


SALOMÉ

Tantos anos depois
Não faz nenhum sentido,
Estória tão antiga...

— Eu te amo, eu disse,
Em meu vestido azul
Que um girassol floria.

— Eu também. E teu corpo
Encostado
Ao meu corpo, tremia.

Embriagada eu dançava,
Dilacerando os vestidos.

A interdição entre nós
Crescia como um bicho,
Serpente de pele lisa
E anéis coloridos.

Tantos anos depois
Ainda sonho com isso,
Um brilho de lâmina
E o sangue
A escorrer no ladrilho.

O tempo todo e eu sabia
Que, arrancados os véus,
Restaria o suplício. Restariam
As feridas. Um corpo ausente
E a lenda, de um remoto país
Onde habitei um dia.

Ó funesta tentação
De voltar àquela tarde
Em que dançando selvagem
Ao som de flautas,
Congelei a tua imagem
No fundo das retinas.

O topázio do sol
Ardia como brasa
E eu lavei as mãos
E limpei as sandálias.
No espelho, meu rosto,
Tinha a carne das estátuas.

Na espessura do silêncio,
Um gotejar de mágoa.
Na bandeja, os despojos,
Ainda tintos de vinho,
A cabeleira e os olhos
Acesos como círios.

Tantos anos depois
Não faz mesmo sentido
Mas guardo ainda o espelho
Onde espreito minha sorte,

Onde dia e noite espreito
A sombra que flutua
E se cola
Como máscara, em meu rosto,
Como chaga no coração,
Bem no peito onde o tempo
Enfiou sua adaga.

E danço como nunca mais
Dancei. O rei agora dorme,
Dourado, em seu sarcófago.

Mas ainda tenho os véus,
A bandeja e a espada.



PENÉLOPE

Hoje desfiz o último ponto,
A trama do bordado.

No palácio deserto ladra
O cão.

Um sibilo de flechas
Devolve-me o passado.

Com os olhos da memória
Vejo o arco
Que se encurva,
A força que o distende.

Reconheço no silêncio
A paz que me faltava,
(No mármore da entrada
Agonizam os pretendentes).

O ciclo está completo
A espera acabada.

Quando Ulisses chegar
A sopa estará fria.


* Poemas copiados do Jornal de Poesia.


segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

Três poemas de René Char



DE RELANCE

Semeio com minhas mãos,
Planto com os meus rins;
É muda a chuva fina.

Numa estrada estreita,
Escrevo o meu segredo.
Não é meia noite quem quer

O eco é meu vizinho,
A bruma, a minha sequência.


FASTOS

O Verão cantava sobre a sua rocha preferida
quando tu me apareceste,

o Verão cantava afastado de nós
que éramos silêncio,
simpatia, liberdade triste,
mar
mais ainda do que o mar,
cuja enorme comporta azul
brincava aos nossos pés.

O Verão cantava
e o teu coração nadava longe dele.
Eu beijava a tua coragem,
entendia a tua perturbação.


Estrada através do absoluto das vagas
em direção a esses altos picos de escuma
onde navegam virtudes assassinas
para as mãos que seguram as nossas casas.

Não éramos crédulos.
Éramos rodeados.

Os anos passaram.
As tempestades morreram.
O mundo partiu.

Sofria
por sentir que era o teu coração que já não me conhecia.

Eu amava-te.
Na minha ausência de rosto e no meu vazio de felicidade.

Eu amava-te, mudando em tudo,
fiel a ti.


* Tradução de Margarida Vale Gato

*

Nas ruas da cidade caminha o meu amor. Pouco importa onde vai no tempo dividido. Já não é meu amor, todos podem falar-lhe. Ele já não se recorda. Quem de facto o amou?

Procura o seu igual no voto dos olhares. O espaço que percorre é a minha fidelidade. Ele desenha a esperança e ligeiro despede-a. Ele é preponderante sem tomar parte em nada.

Vivo no seu abismo como um feliz destroço. Sem que ele o saiba, a minha solidão é o seu tesouro. No grande meridiano onde inscreve o seu curso é a minha liberdade que o escava.

Nas ruas da cidade caminha o meu amor. Pouco importa onde vai no tempo dividido. Já não é o meu amor, todos podem falar-lhe. Ele já não se recorda. Quem de facto o amou e de longe o ilumina para que ele não caia?

* Tradução de Yvette Centeno


sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

Três poemas de Rubén Darío



VISÃO

Atrás da misteriosa selva estranha
vi que se levantava ao firmamento,
perfurada e lavrada, uma montanha,

que pousava na sombra o fundamento.
E na montanha estava o ninho erguido
do trovão, do relâmpago e do vento.

Dentre os seus arcos negros o rugido
se ouvia do leão, e, qual escura
catedral de algum deus desconhecido,

aquela fabulosa arquitetura
formada de prodígios e visões,
visão monumental, me deu tremura.

A seus pés habitavam os leões;
suas torres e flechas de ouro fino
se juntavam com as constelações.

E havia um vasto domo diamantino
onde se alçava um trono extraordinário
sobre sereno fundo azul marinho.

Ferro e pedra primeiro, e mármore pário
depois, e ao alto mágicos metais.
Uma escada subia ao santuário

divino. Os esplendores siderais
as divisões da escada repartidas
de três em três banhavam. Colossais

águias co'as grandes asas estendidas
contemplavam-se ao centro de estelar
atmosfera de luzes e de vidas.

E numa palidez de ouro lunar
uma alva pomba as álulas batia,
pérola alada em misterioso mar.

A montanha lavrada parecia
por algum Piranesi arquipotente,
babélico. Em seus flancos dir-se-ia

que houvera cinzelado o bloco ingente
o raio; e no alto, enfim, enorme friso
um áureo beijo recebia ardente,

beijo de luz de aurora e paraíso.
E eu na sombra gritei: -Em que lugares
hoje vaga minha alma?- De improviso,

entre cítricas flores, e colares
de branquíssimas rosas, surge Estela,
a única que habita os meus cantares.

E disse-me com voz de filomela:
— Não temas, não: no reino estás da lira
de Dante; e a pomba que revoa bela

na luz é Beatriz. Aqui conspira
tudo ao supremo amor e alto desejo.
Aqui chega o que adora e o que admira.

— E aquele trono, disse-lhe, que vejo?
— Nele, entre louros, é que a glória assenta
O gibelino Orfeu. — E aquém do adejo,

abaixo, é onde dorme a tormenta.
É onde o lobo e o leão por entre o escuro
acendem a pupila, qual violenta

brasa. E o vasto e misterioso muro
é de pedra e de ferro; essas arcadas
do meio são de mármore; de ouro puro

a parte superior, onde em gloriosas
albas eternas se abre ao infinito
a sacrossanta Flor, Rosa das rosas.

— Oh, bendito o Senhor! — clamei —; bendito,
que ao florentino arcanjo azou potência
para tal mundo de mistério escrito

com língua humana e sobre-humana ciência
deixar, e criar estranho império eterno
e esse trono de rútila eminência,

ante o qual abismado me prosterno.
E feliz quem ao Céu a alma levante
pelos férreos degraus de seu Inferno!

E ela: — Que este prodígio diga e cante
a tua voz.- E eu: — Pelo amor humano
eis que chego ao divino. Glória ao Dante!

Ela, em ato de graça, o voo arcano
das águias me apontando na lonjura,
ascendeu como um lírio soberano

até Beatriz, pomba da etérea altura.
Brancas marcas no azul deixava, e vê-las
a minha alma consola e transfigura.

E vi que me fitavam as estrelas!


COLÓQUIO DOS CENTAUROS

A Paul Groussac

Na ilha em que conserva seu esquife o argonauta
do imorredouro Sonho -Ilha de Ouro, em que à pauta
das liras eternais se escuta o fluir canoro,
em que o tritão levanta seu caracol sonoro
e onde a sereia branca vai ver o sol-, um dia,
se ouve um tropel vibrante de força e de harmonia.

São os Centauros. Cobrem a planície, e os pressente
a montanha. De longe, formam sons de torrente
que tomba; seu galope a aragem preguiçosa
desperta, e faz tremer a folha ao louro-rosa.

São os Centauros. Uns, enormes, rudes; outros
alegres, saltitantes — adolescentes potros;
com grandes barbas uns, assim como os pais-rios;
outros, imberbes, ágeis e de piafantes brios,
e de robustos músculos, braços e lombos, aptos
a carregar as belas, róseas ninfas nos raptos.

Vão em galope rítmico. Junto a fresca boscagem,
em frente ao grande Oceano, param. A paisagem
recebe em face, da urna matinal, luz sagrada
que o vasto azul suaviza com límpida mirada.
E ouvem seres terrestres e habitantes marinhos
o vozear dos comados quadrúpedes divinos.

* Traduções de Anderson Braga Horta


BALADA DA LINDA MENINA DO BRASIL

Existe um país encantado
N qual as horas são tão belas,
Que o tempo decorre calado
Sobre diamantes, sob estrelas.
Odes, cantares ou querelas
Se derramam pelo ar sutil
Em glória do perpétuo abril...
Pois ali a flor preferida
Para mm é Ana Margarida,
Linda menina do Brasil.

Doce, dourada e primorosa,
Infanta de lírico rei,
É uma princesa cor de rosa
Que amara a Katy Grenaway.
Buscará pela eterna lei
O pássaro azul de Tyltil,
Quando entre cantos de anafil
E harpa a aurora a viver convida,
A essa rara Ana Margarida,
Linda menina do Brasil.

          Oferta

Princesa em flor, nada na vida,
Por mais gracioso ou senhoril,
Iguala esta joia querida:
A pequena Ana Margarida,
Linda menina do Brasil!

Existe um mágico Eldorado
(E Amor como seu rei lá está),
Onde há Tijuca e Corcovado
E onde gorjeia o sabiá.
O tesouro divino dá
Ali mil feitiços e mil
Sonhos: mas nada tão gentil
Como a luz de aurora incendida
Que brilha em Ana Margarida
— A flor mais linda do Brasil.

Rubén Darío nasceu a 18 de janeiro de 1867 em Ciudad Darío, Nicarágua. Fortemente influenciado pela poesia francesa, primeiro pelos românticos, depois pelos parnasianos e por fim pelos simbolistas, sua obra é uma das mais importantes da literatura de língua espanhola. Destacou-se na poesia com títulos como Rimas, Azul e Poema do outono e outros poemas. Morreu a 6 de fevereiro de 1916 em León. 


* Tradução de Manuel Bandeira.


segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

A edição #12 do Caderno-revista 7faces homenageia Hilda Hilst



Através da contribuição de Mariana Payno e Luiza Helena Novaes (que zelam pela organização do arquivo da poeta Hilda Hilst na Casa do Sol) e um ensaio da professora Luisa Destri editamos mais um número do Caderno-revista 7faces, agora, com homenagem a Hilda Hilst. Além de várias incursões pelo acervo da Casa do Sol, o leitor tem contato com as vozes poéticas (principal interesse do periódico) dos poetas Matheus José Mineiro, Ana Maria Rodrigues Oliveira, Valdeck Almeida de Jesus, Waleska Martins, Bruno Baker, Rafaela Nogueira, Léo Br, Guilherme Dearo, Luiz Walter Furtado, Jorge de Freitas, Leonardo Chioda, Yasser Jamil Fayad, João Grando, Ricardo Escudeiro, Maria Azenha, Carole B., Lucas Gross, Ludmila Barbosa, Cesar Carvalho, Marcos Mariani Casadore, Daniel Mahi e Andreï Ribas.

Para acessar vá aqui.