quarta-feira, 8 de junho de 2016

Dois poemas Lawrence Ferlinghetti



AUTOBIOGRAFIA 

A vida que levo é muito sossegada 
Passo os dias no café do Mike 
admirando os campeões 
de bilhar do grupo Dante 
e os viciados de matraquilhos 
A vida que levo é muito sossegada 
na zona leste de Broadway 
Sou americano 
fui um rapaz americano 
Lia o Magazine dos Rapazes Americanos 
e tornei-me escuteiro 
nos subúrbios 
Julgava-me o Tom Sawver 
pescando caranguejos no rio Bronx 
pensando no Mississipi 
Tive uma luva de baseball 
e uma bicicleta American Flyer 
Distribuí o Woman’s Home Companion 
às cinco da tarde 
ou o Herald Tribune 
às cinco da manhã 
Ainda ouço o jornal cair 
em terraços esquecidos 
Tive uma infância infeliz 
Vi Lindberg aterrar 
Olhei para a minha terra 
mas não vi anjo nenhum 
Fui apanhado a roubar lápis 
num bazar barato 
no mesmo mês fui promovido 
a Escuteiro Chefe 
Derrubei árvores para o Grêmio da Agricultura 
e sentei-me nelas 
Desembarquei em Normandia 
num barco a remos que virou 
Vi exércitos educados 
na praia de Dover 
Vi pilotos egípcios em nuvens purpúreas 
negociantes enrolando seus toldes 
ao meio dia 
salada de batatas e dente de leão 
em piqueniques anarquistas 
Estou a ler «Lorna Doone» 
e uma biografia de John Most 
o terror dos industrialistas 
sempre com uma bomba na gaveta 
da escrivaninha 
Vi os lixeiros desfilarem 
no dia comemorativo de Colombo 
atrás das fanfarras ruidosas 
Há tempos que não vou visitar os Claustros 
ou as Tuileries 
mas continuo a pensar lá ir 
Vi os lixeiros 
desfilarem debaixo da neve 
Comi cachorros quentes nas feiras 
Ouvi o Discurso de Gettysburg 
e o Discurso do Ginsberg 
Gosto disto por aqui 
e não voltarei para onde vim 
Também eu viajei em vagões de carga 
vagões de carga vagões de carga 
Viajei no meio de desconhecidos 
Estive em Ásia 
Estive com Noé na Arca 
estava na Índia 
quando Roma foi construída 
Estive na Manjedoura com o burro 
Vi o distribuidor eterno 
Ouvi um trombone pregar 
Ouvi Debussy 
filtrado por um lençol 
Dormi numa centena de Ilhas 
onde os livros eram árvores 
Ouvi os pássaros 
chilreando como sinos 
Usei calças de flanela cinzenta 
e caminhei pela praia do inferno 
Vivi numa centena de cidades 
onde as árvores eram livros 
Que metros que táxis que cafés 
Que mulheres de seios cegos 
membros perdidos entre arranha-céus 
Vi as estátuas dos heróis 
nas encruzilhadas 
Danton chorando na entrada do metro 
Colombo em Barcelona 
apontando p’ro oeste nas Ramblas 
rumo ao American Express 
Lincoln no seu trono de rocha 
e um enorme Rosto de Pedra 
no Dacota do Norte 
Bem sei que o Colombo 
não inventou a América 
Ouvi uma centena de Ezra Pounds domesticados 
Deviam soltá-los todos 
Já passou muito tempo desde que fui pastor 
A vida que levo é muito sossegada 
Passo os dias no café do Mike 
lendo os anúncios classificados 
Li duma ponta a outra 
as Seleções do Reader’s Digest 
e notei a perfeita identificação 
entre os Estados Unidos e a Terra Prometida 
Já que em todas as moedas está marcado 
da Montanha Branca 
ao sul de São Francisco 
Vi a Mulher que Ri no Luna Parque 
ao pé da Barraca das Gargalhadas 
sob uma tempestade de chuva 
sempre a rir-se 
Ouvi os ruídos da noite 
das grandes pândegas 
Tenho vagueado tão só 
como as multidões solitárias 
A vida que levo é muito sossegada 
Passo os dias à porta do café do Mike 
a ver o mundo passar 
em curiosos sapatos 
comecei uma vez 
uma volta ao mundo a pé 
mas desisti em Brooklyn 
Essa ponte era demais para mim 
Já tentei o silêncio 
o exílio e a astúcia 
Voei demasiado perto do sol 
e as minhas asas de cera derreteram-se 
Ando à procura do meu Velho 
que nunca conheci 
Ando à procura do Líder Perdido 
com quem voei 
Os jovens deviam ser exploradores 
O lar é o ponto da partida 
Mas minha mãe nunca me disse 
que podia haver cenas destas 
Útero-cansado 
descanso 
Tento viajado 
Visitei a cidade dos fantasmas 
Conheço as massas amaçadas 
Ouvi chorar o Kid Ory 
«Confiamos em Deus» 
mas nas notas de dólar não há nada inscrito 
porque elas próprias já são Deus 
Leio diariamente os anúncios «precisa-se» 
a procura duma pedra duma folha 
duma porta esquecida 
Ouço a América cantar 
nas Páginas Amarelas 
Quem diria que a alma passa crises 
Leio todos os dias os jornais 
e noto a ausência da humanidade 
nessa triste pletora da imprensa 
Vejo que esvaziaram o Lago de Walden 
para pôr lá um parque de diversões 
Vejo que estão a obrigar o Melville 
a comer sua própria, baleia 
Vejo que vem aí uma nova guerra 
mas não serei eu quem vai lutar nela 
Li os grafitis do destino 
nas paredes dos urinóis 
Fui eu quem ajudou o Kilroy a escrevê-los 
Marchei pela Quinta Avenida acima 
tocando clarim num severo pelotão 
mas voltei rápido para o Casbah 
à procura de meu cão 
Noto alguma semelhança entre os cães e eu 
Os cães são os verdadeiros observadores 
correndo os quatro cantos do mundo 
na terra de Molloy 
Passeei-me por vielas 
estreitas demais para Chryslers 
Vi uma centena de carroças de leite sem cavalo 
num terreno baldio nas Astúrias 
Ben Shahn nunca as pintou 
mas elas lá estão retorcidas nas Astúrias 
Tenho ouvido o grito do sucateiro 
percorri super-auto-estradas 
e acreditei na promessa dos cartazes 
Atravessei as planícies de Jersey 
vi as suas cidades 
e rebolei-me nas terras ermas de Westchester 
com bandos errantes de nativos 
em vagões de carga 
Tenho-os visto 
Sou o homem 
Estive lá 
Sofri um pouco 
Sou americano 
Tenho passaporte 
Mas não sofri em público 
E sou jovem demais para morrer 
Sou um selfmademan 
Tenho planos para o futuro 
Estou na fila para um bom emprego 
Talvez me mude para Detroit 
Por enquanto vendo gravatas 
Sou um Zé Ninguém 
Sou um livro aberto para o meu patrão 
Sou um mistério impenetrável 
para os meus amigos íntimos
 A vida que levo é muito sossegada 
Passo os dias no café do Mike 
contemplando o umbigo 
Sou uma parte da longa loucura do corpo 
Tenho vagueado por bosques noturnos 
Tenho-me apoiado em portais bêbados. 
Tenho escrito histórias frenéticas 
sem pontuação 
Sou o homem 
Estive lá 
Sofri um pouco 
Sentei-me em cadeiras de cansaço 
Sou uma lágrima do sol 
Sou a colina onde os poeta sobem
Inventei o alfabeto 
depois de observar o voo das garças 
que faziam letras com as pernas 
Sou um lago na planície 
Uma palavra numa árvore 
Sou uma colina de poesia 
Sou uma razia no inarticulado 
sonhei que os dentes todos me caíam 
mas a minha língua sobrevivia 
para dizer como foi 
Pois sou um silêncio poético 
Sou um banco de canções 
Sou um piano mecânico 
num casino abandonado 
numa esplanada à beira-mar 
num nevoeiro espesso 
mas sempre a tocar 
Vejo uma semelhança 
entre a Mulher que Ri e eu 
Ouvi o som do verão na chuva 
Vi mulheres em tapetes de tábua 
com estranhas sensações 
compreendo suas hesitações 
Sou um coletor de fruta 
Vi como os beijos causam euforia 
Corri o risco de ficar encantado 
Vi a Virgem 
numa macieira em Chartres 
e Santa Joana ardendo em Bella Union 
Vi girafas em selva-ginásios 
seus pescoços como o amor 
entrelaçados nas circunstâncias de ferro 
deste mundo 
Vi Vênus Afrodite 
em seu corredor ventoso 
Ouvi uma sereia cantar 
na Quinta Avenida 
Vi a deusa branca bailando 
na Rue des Beau’ Arts 
no dia I4 de Julho 
e a Bela Dama sem Mercê 
com o dedo no nariz em Chumbley’s 
Ela não falava inglês 
Tinha cabelos amarelos e voz rouca 
e nenhum pássaro cantava 
A vida que levo é muito sossegada 
passo os dias no café do Mike 
observando os jogadores de bilhar de bolsa 
nesse cenário ministroni 
devorando macarroni 
e li algures 
o Significado da Existência 
mas esqueci exatamente onde 
Sou o homem 
E estarei lá 
E talvez faça despertar os lábios 
da gente adormecida 
E talvez transforme em folhas de relva 
meus cadernos de apontamentos 
E talvez escreva meu anônimo epitáfio 
pedindo aos cavaleiros 
que não se detenham



CONFISSÃO À SÉRIO

Fui concebido no verão I9I8 
(ou era 38) 
durante uma guerra qualquer 
o que não impediu duas pessoas 
de fazer amor em Ossining esse ano 
gosto de imaginar isso ao sol nas margens dum rio 
durante um piquenique ao pé do Hudson 
como num quadro da escola de Hudson 
ou então no Bear Mountain talvez 
depois de ter apanhado o antigo paddlewheel a vapor 
(talvez tenha acrescentado o paddlewheel — 
O Hudson é o meu Mississipi). 
E de regresso ela 
trazia-me já 
dentro dela eu 
Lawrence Ferlinghetti 
arrancado da obscuridade de minha mãe há muito tempo 
nascido num pequeno quarto — 
No quarto do lado meu irmão ouviu 
o primeiro grito muitos anos depois escreveu-me – "coitadinha da mãe – sem marido – 
sem dinheiro – pai morto Como agUentou ela tudo isso —" 
Alguém me espremeu o coração 
para a por a andar 
Gritei e saltei 
Olho aberto Coração aberto a mais 
onde vagueio 
Gritei e saltei 
no coração do mundo 
Levado 
por um outro que desconhecia 
E qual eu conhecerá meu irmão? 
"Sou filho de mim mesmo sou minha mãe, meu pai, 
Nascido de mim próprio 
minha própria carne mamada" 
E alguém me espremeu o coração 
para me por a andar 
E pus-me a fazer 
o meu número 
Era um brinquedo de dar corda 
que alguém deixou cair 
num mundo já gasto 
O mundo girava já 
há muito tempo mas não fazia diferença 
estava novo estava como novo 
tornei-o novo 
e vi-o brilhar 
e brilhava ao sol 
e girava ao sol 
e o eixo que fiava 
era de pura luz 
Minha vida estava feita 
de eixos de luz 
As teias d’aranha da Noite 
não estavam nela 
não faziam parte dela 
Era demasiado brilhante 
de ver 
demasiado luminoso 
para fazer uma sombra 
e havia um outro mundo 
por detrás das cortinas brilhantes 
bastava fechar os olhos 
para que outro mundo surgisse 
tão perto e tão querido 
que só podia ser eu mesmo 
meu eu interior 
onde tudo o que é real 
havia de acontecer 
neste lugar que existe ainda 
em mim 
e que não mudou muito 
certamente menos 
que o exterior 
com seu saco de pele 
e sua "barba d’alumínio" 
e seus olhos azuis azuis 
que veem como um só olho 
no meio da testa 
onde tudo acontece 
salvo o que acontece 
no coração 
vajra lótus coração de diamante 
no qual leio 
o poema que não tem fim

Lawrence Ferlinghetti nasceu em Yonkers, Nova York, em 24 de março de 1919. A morte repentina do pai e a internação da mãe por problemas nervosos levou o pequeno Ferlinghetti ser criado por uma tia materna e passou os cinco primeiros anos de vida na França. Após voltar para os Estados Unidos, passou por várias escolas até ingressar na University of North Carolina, onde estudou jornalismo e quando publicou suas primeiras histórias na Carolina Magazine. No verão de 1941, morou com dois amigos numa pequena ilha no Maine. Essa experiência o aproximou do mar, que se tornou um dos temas recorrentes em sua obra. Logo depois entrou para a Marinha; serviu durante a Segunda Guerra Mundial, participando, inclusive, da invasão da Normandia. Logo após a guerra trabalhou por um breve período na revista Time, antes de retomar os estudos e ir para a Columbia University, e nela o obter o grau de mestre em literatura inglesa, em 1947. Seguiu para a França e doutorou-se pela Sorbonne em 1950. Ao voltar para aos EEUU em 1951, instalou-se em São Francisco e passou a dar aulas de francês, traduzir, pintar e fazer crítica de arte. As primeiras traduções foram publicadas na revista cultural City Lights por Peter D. Martin, que em 1953 se tornaria seu sócio na antológica livraria City Lights. Um ano depois da saída de Martin, Ferlinghetti fundou a editora City Lights, pela qual publicou seu primeiro livro, Pictures of the Gone World, primeiro volume da Pocket Poets Series. O quinto número dessa coleção foi o emblemático Uivo, de Allen Ginsberg. A partir de então a editora ficou conhecida por publicar os grandes autores beat, como Jack Kerouac, Gregory Corso e William Burroughs. A poesia de Ferlinghetti tem como temas principais a beleza do mundo natural, o tragicômico da vida do homem comum, a questão do indivíduo na sociedade de massa e o sonho – e a frustração – da democracia. Entre suas influências figuram T. S. Elliot, Ezra Pound, e. e. cummings, Proust e Baudelaire. Sua obra desafia a definição de arte e também o papel do artista no mundo, e conclama os outros escritores a se engajarem na vida política e social. Alguns dos títulos publicados, dentre prosa, poesia e teatro foram: Um parque de diversões da cabeça (1958), a mais conhecida de suas obras, tendo sido traduzida para diversas línguas; Pictures of the Gone World (1955); Back Roads to Far Places (1971); Her (1960); Tyrannus Nix? (1969); Unfair Arguments with Existence (1963); Routines (1964); A Far Rockaway of the Heart (1997); How to Paint Sunlight (2001) e Americus Book I (2004). Ferlinghetti recebeu inúmeros prêmios e foi eleito em 2003 para a prestigiosa American Academy of Arts and Letters. Morreu a 22 de fevereiro de 2021.


* Traduções de André Shan Lima e Isabelle Lima.