segunda-feira, 29 de maio de 2017

Dois poemas de Marianne Moore



OS PEIXES

vade-
ando negro jade.
     Das conchas azul-corvo um marisco
     só ajeita os montes de cisco;
          no que vai se abrindo e fechando

é que
nem ferido leque.
     Os crustáceos que incrustam o flanco
     da onda ali não encontram canto,
          porque as setas submersas do

sol,
vidro em fibras sol-
     vidas, passam por dentro das gretas
     com farolete ligeireza —
          iluminando de vez em

vez
o oceano turquês
     de corpos. A correnteza crava
     na quina férrea da fraga
          uma cunha de ferro;  e estrelas,

grãos
de arroz róseos, mães-
     d'água tintas, siris que nem lírios
     verdes e fungos submarinos
          vão deslizando uns sobre os outros.

As
marcas externas
     de mau-trato estão todas presentes
     neste edifício resistente —
          todo resquício material

de a-
cidente — ausência
     de cornija, machadadas, queima e
     sulcos de dinamite — teima em
          ressaltar; já não é o que era

cova.
Repetida prova
     demonstrou que ele pode viver
     do que não pode reviver
          seu viço. O mar nele envelhece.


NÃO HÁ CISNE TÃO LINDO

“Não há água tão quieta quanto as
     fontes mortas de Versailles.” Não há cisne,
de olhar cego bistre oblíquo
e pernas gondoleantes, tão lindo
     quanto o de louça com chintz,
de olhos cor de corça e coleira
de ouro denteada a indicar de quem foi.

Alojado no candelabro de
     Luís XV, com botões de matiz de
crista-de-galo, com dálias,
ouriços-do-mar e sempre-vivas,
     no mar de ramalhetes de
polidas e esculpidas flores
ele pousa – livre e altivo. O rei é morto.

Marianne Moore nasceu a 15 de novembro de 1887, em Kirkwood, Missouri, Estados Unidos. Sua estreia literária se dá ainda em 1915 nas revistas The Egoist e Poetry. Um ano depois, ela se muda para Nova Jersey e em seguida para Nova York, onde entra em contato com vários artistas de vanguarda, especialmente os da revista Others; a poesia de Moore logo passa a ser bem-quista entre Ezra Pound, William Carlos William, T. S. Eliot, entre outros. É desse mesmo ano a publicação pelas mãos de Hilda Doolittle (HD) do seu primeiro livro — Poems —, feita sem sua permissão. Três anos depois sai Observations e abre-se uma obra vasta e premiada com os principais galardões do seu país, fixando-a, definitivamente no quadro das figuras mais importantes do modernismo estadunidense. Morreu a 5 de fevereiro de 1972, em Nova York. 


* Traduções de José Antonio Arantes



segunda-feira, 22 de maio de 2017

ABECEDÊ, de Vítezslav Nezval (fragmento)


A
Chamada seja cabana simples
Tragam pro Vltava o palmas! seu equador
Da simples casa tira o caracol seus chifres
sem abrigo pra cabeça o pobre só tem dor

* * *

C
brilha como a lua sobre as águas
Míngua desaparece lua homérica
morreram para sempre os romances dos gondoleiros
siga em frente capitão até a América

D
arco que se tensa da direção oeste
O índio descobriu rastos na terra
Sus últimos companheiros morreram faz já tempo
e a lua cresce  pradaria   pedras

* * *

F
bicam pássaros santos em Assis
a casca das árvores acima do divino amante
Imagens! aromas do incenso fumegante
na surrada loja de miudezas

* * *

JQ
Até a França através da Alemanha
com sua gaita de foles o tocador sulca ventos
Lentas canções do caminho
sibila seu instrumento

* * *

RRRRR
Os tambores começaram sua marcha
por sete mares por nove pontes
RRR  os comediantes da Noveforças
Alçaram tendas à beira do Nilo e suas fontes

S
Nas planícies da escura Índia
viveu John encantador de sepentes
Amava Elis sibilante dançarina
E ela o mordeu    Morreu de sífilis

* * *

U
me lembras nossa meninice tranqüila
o mugir das vacas no torto riacho
messias pastores em vestes de linho
e o esmeralda dos frutos no horto

V
reflexo da pirâmide na areia ardente

V
construtivismo digno do teatro DISK

W
Casiopeia imaculada como um piloto
sobrevoa a cabeça do faraó  poderoso

X
signo de Caim na cabeça da víbora
X eternidade X veneno
X ossos cruzados O tempo na flor apodrece
X no final  X no começo

Z
na despedida  digamos adeus então
Décima musa lembras os dentes de Sagitário
Cada despedida tem dentes? Sim, claro!
Subir a Torre Eiffel por um cabo dentado

* Tradução de Odile Cisneros. Publicado inicialmente na revista Sibilia


segunda-feira, 15 de maio de 2017

Três poemas de Gilka Machado



NOITE DE SELVAGEM

Entro na selva. A noite é espessa. De centenas
de pirilampos toda a mata se ilumina;
astros movem no espaço as rútilas antenas,
como insetos de luz, numa etérea campina.

Ergo ao céu, desço à terra a assombrada retina,
e ante as luzes astrais e ante as luzes terrenas,
a terra e o céu, o céu e a terra, julgo, apenas,
um céu que se distende, alonga e indetermina.

Em cima há tanta luz que o olhar erguido pasma!
Cada estrela parece um luminoso miasma
a medrar, a fulgir da treva na espessura.

E a noite de tão negra, e tão ampla, e tão densa,
é um pântano infinito, uma lagoa imensa,
a decompor-se em luz, a efervescer na altura.


SÍMBOLOS

Eu e tu, ante a noite e o amplo desdobramento
do mar, fero, a estourar de encontro à rocha nua...
Um símbolo descubro aqui, neste momento
esta rocha, este mar.. a minha vida e a tua.

O mar vem, o mar vai, nele há o gesto violento
de quem maltrata e, após, se arrepende e recua.
Como compreendo bem da rocha o sentimento!
são muito iguais, por certo a minha mágoa e a sua.

Contemplo neste quadro a nossa triste vida;
tu és dúbio mar que, na sua inconsciência,
tem carinhos de amor e fúrias de demência!

Eu sou a dor estanque, a dor empedernida,
sou a rocha a emergir de um côncavo de areia,
imóvel, muda, isenta e alheia ao mar, alheia.

INFÂNCIA

Aquela criança
que eu não pude ser,
criança triste
que conservo ainda,
nunca teve o prazer
de acender um balão,
em tua noite linda,
S. João.

Aquela criança
que devera ser
e a miséria tolhia,
tudo esperava de teu místico poder;
e ardia,
e ardia,
na tua noite fria,
cheia de devoção,
ao cativo balão
que se enchia
e fulgia,
dentro da minha imaginação.

A velha criança
que se fez meu ser,
cuja louca esperança
não se finda,
guarda ainda
a ilusão
de surpreender
a gurizada
alvoroçada,
com o mais belo balão...
Faze o milagre, abre-me o peito S. João,
realiza a minha antiga aspiração:
quero morrer em tua noite linda,
quero soltar em tua festa o coração!...

segunda-feira, 8 de maio de 2017

Três poemas de Jerzy Ficowski



Não consegui salvar
nem uma vida

não soube deter
nem uma bala

então percorro cemitérios
que não existem
busco palavras
que não existem
corro

para o socorro não pedido
para o resgate tardio

quero chegar a tempo
mesmo que tarde demais

*

Muranów se ergue
sobre as camadas do morrer
a fundação apoiada em osso
os porões nas valas
esvaziadas de gritos

Foi ou não foi está como está

Há uma calmaria de gemidos removidos
halo negro do fogo defunto
Muranów fortemente plantado
na sepultura da memória
a maioria das cartas chega

Foi ou não foi está como está

E eu como ele elevado
até a superfície das cinzas
sob as estrelas de vidro estilhaçado

Foi ou não foi está como está

eu queria apenas calar
mas calando minto

eu queria apenas andar
mas andando pisoteio


CARTA A MARC CHAGALL

I

Que pena que o senhor não conheceRosa Gold,
a mais triste rosa dourada.
Ela só tinha sete anos, quando acabou essa guerra.
Não a vi nunca,
mas ela não tira os olhos de mim.
Duas vezes as neves derreteram sobre aqueles olhos,
duas mil vezes morreram
os olhos de seis anos de Rosa Gold.

Meu irmão saiu de noite, bebeu água de uma poça e morreu. Nós o enterramos no bosque, no meio da noite. Uma vez o tio saiu do abrigo e nunca mais voltou. Ficamos escondidos assim 18 meses, até que chegaram os russos. Não sabíamos andar e até hoje temos pernas fracas. E Rosa está sempre triste, chora com frequência e não quer brincar com as outras crianças.

Que bom que o senhor não conhece Rosa Gold!
Explodiriam em fumaça os cachos de lilases, nos quais deitam os enamorados.
A rabeca do músico verde lhe cortaria a garganta.
O portão do cemitério judeu voltaria ao pó
ou sufocaria no mato de tijolos daninhos.
A tinta carbonizaria as telas.
Pois o último, o mais horripilante grito
é sempre apenas o silêncio.

Que pena que o senhor não conhece Frycek!
Sua mãe conseguiu dá-lo à luz um tantinho antes da guerra.
E ele queria ser um arenque, que tem seu próprio sal
ou uma mosca, que é  livre para zumbir.
Pois lhe era permitido ser apenas um pouco.
Atrás do armário, sonhava com cebola,
e como não iria chorar com sonhos assim?!

Eu ficava atrás do armário, não jantava. Quando vinha alguém ficava quietinho, nunca saía ao sol. Me cobria com um edredom cheio de piolhos. Pensei que eu iria ser sempre assim. Eles falavam que iam viajar para Częstochowa e que iam me deixar. Queria chorar, mas pensava: e daí, quando eles viajarem vou sair de trás do armário.

Que bom que o senhor não conhece Frycek, que atrás do armário fingia ser uma teia de aranha!
A filhinha sentada na janela verde.
Por anos chia o samovar de Vitebsk.
Soltam fumaça as sonolentas lâmpadas de querosene.
O arenque alado lá do céu abençoa as feiras.
Enfim, para que acreditar em Frycek?
Afinal, Frycek não é Deus.

II

E um dia chegou a mamãe e me levou para outro apartamento, onde precisava chamar a mamãe de “senhora” e não podia chamá-la de mamãe.
Às vezes me esquecia de chamar a mamãe de “senhora” e a mamãe ficava muito nervosa. Mas para mim era muito difícil me acostumar com isso, era tão duro que de vez em quando precisava sussurrar no ouvido da mamãe algumas vezes: “Mamãe, mamãe, mamãe”. E perguntava: “Mamãe, quando a guerra acabar eu vou poder chamar você em voz alta de – “mamãe”?

Eis os versículos do Novíssimo Testamento.
Nele seis milhões de laudas carbonizadas,
e mira-se nas sobreviventes, faz anos,
o castiçal vermelho do incêndio.
E há também o testemunho das coisas.
No espelho do barbeiro
o terror barbudo
despertou círculos cada vez mais amplos, mais amplos,
como na água verde e triste,
e explodiram aquele mundo.
Não sobrou nem o reflexo.
Mandaria para o senhor, senhor Chagall,
nem que fosse um pequeno caco do espelho,
mas eles já estão nas profundezas
do estrato de uma era morta,
e ao redor deles a abundância de ossos,
os quais fazem muita questão
que se silencie um pouco sobre eles,
os quais jazem em todos os lugares incógnitos,
e que se reze por eles
em voz alta
a palavra: “Mamele”

A criança tinha muito medo da morte. Se agarrava à mãe e perguntava: “Mamãe, a morte dói muito?” A mãe chorava e falava: “Não, é bem rapidinho”- e assim as fuzilaram.

E surgiram novos desertos:
as areias de Majdanek, Sobibór,
as dunas de Treblinka e Bełżec[1],
onde o vento deita para o descanso eterno
não sílica, mica e arenito –
triturados na mó dos mares antigos –
mas cálcio e carbono
da estirpe humana reduzida a pó.
Eu – ser humano, eu – filho desta terra,
eu – irmão não queimado daqueles,
ainda vejo como o galo do senhor, que ficou cego,
protege as sobras dos assuntos humanos,
e no último dia da destruição
se eleva acima das cinzas.

III

Nos terrenos dos antigos campos da morte, os bandos de ladrões grassam, procurando o ouro nas camadas de cinzas que restaram dos prisioneiros queimados.

Na escuridão, as cinzas
fluem pelas ampulhetas crivadoras.
E no ar é assim
como se respirasse o seu último suspiro.
Às vezes, a estrela ressuscitada de sob a terra
alumia a noite:
um dente de ouro extraído das cinzas.
E então dá para ver nesse brilho
as mãos dos antropoides escorrendo vermelho.
Hoje conheci estas mãos,
embora de dia estejam limpas como uma hóstia:
batiam palmas para os trens que passavam,
e nos quais nos deixaram para sempre
Rosa Gold e Frycek de detrás do armário,
deixando os seus mortos.
Creio que acharão abrigo
e que ainda os encontrarei
nos recantos seguros
das cores oraculares
nos seus quadros, senhor Chagall.

* Traduções de Piotr Kilanowski. Publicado inicialmente em Qorpus.


segunda-feira, 1 de maio de 2017

Cinco poemas de Maria Teresa Horta



JOELHO

Ponho um beijo
demorado
no topo do teu joelho

Desço-te a perna
arrastando
a saliva pelo meio

Onde a língua
segue o trilho
até onde vai o beijo

Não há nada
que disfarce
de ti aquilo que vejo

Em torno um mar
tão revolto
no cume o cimo do tempo

E os lençóis desalinhados
como se fosse
de vento

Volto então ao teu
joelho
entreabrindo-te as pernas

Deixando a boca
faminta
seguir o desejo nelas.


EXERCÍCIO

Exercícios do teu corpo
oculto
na sua roupa

adivinho-te a dureza
o movimento sedento
a macieza da boca

adivinho o teu carinho
na sede dos meus
joelhos

adivinho o teu
desejo
sobre a pele dos meus seios


QUOTIDIANO

Tu permites que eu vá
mas também me reténs
tentando seguir a minha falta

Imaginava que fujo enquanto me tens
e supões-me estar perto
quando afinal já parto

Tu ficas atento, inventas passagens
contas pelos dedos
tudo aquilo que faço

E quando me disfarço fechas os olhos
àquilo que importa
Finges que não sabes
abres a janela e trancas-me a porta


SEM PRESSA

Jamais apresso nada
no amor
Gosto que dure mais
a cada hora

Ter e esquecê-lo
recusá-lo e inventá-lo
fora

Jamais empurro nada
no amor
Ontem como foi
muito melhor agora

Desdizê-lo e desejá-lo
a cada passo,
fazê-lo deitar comigo e possuí-lo
Atá-lo ao meu corpo num abraço


FOGO

Despe-me o vestido
pela cabeça
até ao cimo da nudez
e ainda
desce mais as mãos pelo meu corpo

Apaga esse fogo
que absorto
me consome devagar até a cinza