segunda-feira, 10 de julho de 2017

Três poemas de Adam Zagajewski



HAVIA MESES QUE NÃO ESCREVIA

Havia meses que não escrevia
nem um único poema.
Vivia com humildade, lendo os jornais,
pensando no enigma do poder
e nas causas da obediência.
Olhava para os pores-do-sol
(escarlates, cheios de inquietação),
escutava o emudecimento das vozes dos pássaros
e o silêncio da noite.
Via os girassóis a pendurarem
as cabeças ao lusco-fusco, como se um carrasco distraído
passeasse por entre os jardins.
No parapeito recolhia-se
a doce poeira de Setembro enquanto os lagartos
se escondiam nas curvaturas dos muros.
Dava longos passeios,
sedento duma coisa só:
dum relâmpago,
duma mudança,
de ti.


NÃO DEIXES QUE O LÚCIDO MOMENTO SE DISSOLVA 

Não deixes que o lúcido momento se dissolva 
Que o radiante pensamento perdure na quietude 
embora a página esteja quase cheia e a chama trémula 
Não atingimos ainda o nível de nós próprios 
O conhecimento cresce lentamente como um dente do siso 
A estatura de um homem tem ainda uma incisura 
lá no alto numa porta branca 
De longe chega a voz alegre de um trompete 
e uma canção enrolada como um gato 
O que passa não cai no vazio 
Um fogueiro alimenta com carvão o fogo 
Não deixes que o lúcido momento se dissolva 
numa substância dura e seca 
Tens a obrigação de gravar a verdade


NA BELEZA CRIADA PELOS OUTROS 

Só na beleza criada pelos outros 
existe consolação, na música 
e nos poemas dos outros 
Só os outros nos podem salvar, 
mesmo que a solidão tenha o sabor 
do ópio. Não são o inferno, os outros, 
se os espreitarmos de manhã, quando 
têm a testa limpa, lavada pelos sonhos. 
Por isso cismo muito sobre a palavra 
que hei-de usar, "ele" ou "tu". Cada "ele" 
é uma traição a qualquer "tu", mas, 
em troca, um poema de alguém fielmente 
oferece uma fresca, moderada conversa.

Adam Zagajewski nasceu a 21 de junho de 1945 em Lwów, na Polônia. Poeta, ensaísta e tradutor. Foi professor no seu país e nos Estados Unidos, onde vive. Traduzido em várias línguas, venceu, entre outros prêmios, o Neustadt em 2004 e o Princesa das Asturias em 2017. Morreu na Cracóvia, a 21 de março de 2021.

* Traduções de Marco Bruno.