segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

Três poemas de Giuseppe Ungaretti



TÉDIO

Também esta noite passará

Esta solidão em torno
sombra titubeante de fios viários
sobre o úmido asfalto

Olho como os cocheiros
a meio-sono
cabeceiam

*

Sou uma criatura
Como esta pedra
de São Miguel
tão fria
tão dura
tão ressecada
tão refratária
tão totalmente
exânime

Como esta pedra
é o meu pranto
que não se vê

A morte
desconta-se
vivendo

Atrito
Com minha fome de lobo
amaino
meu corpo de cordeiro

Sou como
a barca ínfima
e o libidinoso oceano


JUNHO 

Quando
me morresse
esta noite
e feito um outro
pudesse olhá-la
e adormecer-me
ao rugitar
das ondas
afinal
enoveladas
à cerca de acácias
de minha casa

Quando me despertar
no teu corpo
que se modula
feito voz de rouxinol

Se extenua
como a cor
reluzente
do grão maduro

Na transparência
da água
o ouro velino
da tua pele
se brunirá de mouro

Librada
pelos ladrilhos
estrídulos
do ar serás
como pantera

Ao talho
móvel
da sombra
te esfolharás

Rugindo
emudecida na
poeira
me sufocarás

Depois
entreabrirás as pálpebras

Veremos nosso amor reclinar-se
feito o entardecer

Depois verei
sereno
no horizonte de betume
de tuas íris morrerem-me
as pupilas

Agora
o ar sereno se clausura
assim como
na minha terra da Africa
os jasmins

Perdi о sono

Oscilo
num canto da rua
qual lucíola

Me Morrerá
esta noite?

Giuseppe Ungaretti nasceu no Egito no dia 8 de fevereiro de 1888; o pai trabalhava na construção do canal de Suez e por isso toda família havia se mudado para aquele país. Fez parte dos estudos na Sorbonne de Paris, onde colaborou na revista Lacerba. Voltou à Itália em 1914 e se engajou voluntariamente como soldado na Primeira Guerra Mundial. Combateu em Trieste, numa das frentes mais duras do conflito, e depois na França. Sua primeira obra foi publicada em 1916 – era uma antologia de poemas intitulada Il porto sepolto; a poesia de então refletia sobra suas experiências no front. Em 1919 publica Allegria di naufragi, que foi uma reviravolta em relação à obra de estreia. Colaborou assiduamente com revistas e trabalho com professor de línguas; seu primeiro emprego fixo foi no Brasil, onde viveu entre 1936 e 1942 e deu aulas de Literatura Italiana na Universidade de São Paulo. São obras suas, dentre outras, Setimento del tempo (1933), Il dolore (1947), La terra promessa (1950) e Il taccuino del vecchio (1960).

* Tradução de Haroldo de Campos.