segunda-feira, 25 de junho de 2018

Três poemas de Rui Knopfli



TERRA DE MANUEL BANDEIRA

Também eu quisera ir-me embora
pra Pasárgada,
também eu quisera libertar-me
e viver essa vida gostosa
que se vive lá em Pasárgada
(E como seria bom, Manuel Bandeira,
fugir duma vez pra Pasárgada!).
Entanto, tudo me prende aqui
a este lugar desta cidade provinciana.
Como deixar ao abandono o olhar
luminoso dessa mulher que eu amo?
Quem responderá às inquietas
perguntas de minha filha pequena
(cabelo curto, olhos de sonho)?
Quem, no sereno da noite, para as beijar
com ternura e nos braços acalentar?
E esta vida, este sítio,
e estes homens e estes objectos?
E as coisas que amei e as que esqueci?
E os meus mortos e as doces recordações,
as conversas de café e os passeios no
entardecer fusco da cidade?
E o cinema todos os sábados, segurando
com força a mão de minha mulher?
Eles nem são amigos do rei
e a entrada lá é limitada.
Por isso é que eu não fujo
duma vez, pra Pasárgada.


AUTORRETRATO

De português tenho a nostalgia lírica
de coisas passadistas, de uma infância
amortalhada entre loucos girassóis e folguedos;
a ardência árabe dos olhos, o pendor
para os extremos: da lágrima pronta
à incandescência súbita das palavras contundentes
do riso claro à angústia mais amarga.

De português, a costela macabra, a alma
enquistada de fado, resistente a todas
as ablações de ordem cultural e o saber
que o tinto, melhor que o branco,
há-de atestar a taça na ortodoxia
de certas vitualhas de consistência e paladar telúrico.

De português, o olhinho malandro, concupiscente
e plurirracial, lesto na mirada ao seio
entrevisto, à nesga de perna, à fímbria de nádega;
a resposta certeira e lépida a dardejar nos lábios,
o prazer saboroso e enternecido da má-língua.

De suíço tenho, herdados de meu bisavô,
um relógio de bolso antigo e um vago, estranho nome.


NATURALIDADE 

Europeu, me dizem.
Eivam-me de literatura e doutrina
europeias
e europeu me chamam.

Não sei se o que escrevo tem raiz de algum
pensamento europeu.
E provável... Não. E certo,
mas africano sou.
Pulsa-me o coração ao ritmo dolente
desta luz e deste quebranto.
Trago no sangue uma amplidão
de coordenadas geográficas e mar Indico.
Rosas não me dizem nada,
caso-me mais à agrura das micaias
e ao silêncio longo e roxo das tardes
com gritos de aves estranhas.

Chamais-me europeu? Pronto, calo-me.
Mas dentro de mim há savanas de aridez
e planuras sem fim
com longos rios langues e sinuosos,
uma fita de fumo vertical,
um negro e uma viola estalando.

Rui Knopfli nasceu em Inhambane, Moçambique, em 10 de agosto de 1932 e morreu em Lisboa em 25 de dezembro de 1997. Foi jornalista e poeta Sua estréia deu-se com o livro O País dos Outros, em 1959. Lançou, com João Pedro Grabato Dias, os cadernos de poesia Caliban (1971-72). Publicou Memória consentida (1982) e em 1984 recebeu o prêmio de poesia do PEN Clube.

segunda-feira, 18 de junho de 2018

Dois poemas de Zulmira Ribeiro Tavares




VESUVIO

Tua cabeça a prumo emplaca o tempo.
Dentro dela guardas o Vesuvio
que nunca chegaste a ter em pedra e lava,
mas em tela, plasma, figura.

Perto do Vesuvio, em esfuminho,
o perfil de teu amor esvaecido
há tantos anos.
E escutas chegar pelo esfuminho
como por um canal de cinzas
o professor Silvério cantarolando
nas aulas de desenho, o teu fracasso.

E tens no teu fracasso a mão direita
duplicada dentro da cabeça
suja de carvão e tinta a óleo.
A esquerda se apoia no joelho
e faz figa para o mundo: um sucesso.
Tua cabeça a acolhe com ternura
e com firmeza a ambas:
a submissa e a da recusa.

Um dia arrastarás, a tua cabeça,
para altas esferas,
como o saco de Noel (que delas desce)
a quem chamam pai,
papai para os pequenos —
pelo que distribui de vida adulta
adiantada em maquete e aos pedaços
com o impagável nome de brinquedos.

Cruzarás com ele e te farás de sonso.

Já tu agora de nada queres ser destituído.
Isso foi antes.
Sem acordo com Noel, não distribuirás,
e a usura será a tua força.
Sobre o teu pescoço, firmes
como o saco de Noel nos ombros,
terás dentro da cabeça
vivos, tudo:
do Vesuvio em tela à lava do teu corpo.



A MANCHA DE COR

Se com o passar dos anos vamos perdendo os pelos que nos faziam orgulhosos por sua fricção animal e sua vizinhança dos capinzais na boa estação, 

E, ainda, se vamos perdendo a água que nos deixava luminosos como sinaleiras, como elas atentos e úteis — isso ainda não é sério. 

Podemos avançar nas perdas. 

Mas, quando os dias se excedem, espichamo-nos como as sombras do poente, somos ginastas rastejadores, as sombras são nossos pijamas de elástico e fumo, elas nos levam estirados na direção do sol desaparecido dentro de sua mancha de cor. 

Nossas sombras são sombras estradeiras. 

Somos estradeiros com as sombras e corremos para nada dentro da mancha de cor.

Zulmira Ribeiro Tavares nasceu no dia 27 de julho 1930, em São Paulo. Publicou, entre contos, romances e poemas,  Termos de comparação (Perspectiva, 1974, prêmio revelação APCA), O japonês dos olhos redondos (Paz e Terra, 1982), O nome do bispo (Brasiliense, 1985, prêmio Mercedes-Benz de literatura), O mandril (Brasiliense, 1988) e Joias de família (1990, prêmio Jabuti de romance). Morreu no dia 9 de agosto de 2018. 



segunda-feira, 11 de junho de 2018

Dois poemas de Blanca Varela




SEGREDO DE FAMÍLIA

Sonhei com um cão
com um cão esfolado
seu corpo cantava rubro silvava
perguntei ao outro
ao que apaga a luz do açougueiro
que foi que aconteceu
por que estamos às escuras

é um sonho estás só
não há outro
a luz não existe
tu és o cão tu és a flor que late
afia docemente tua língua
tua doce negra língua de quatro patas

a pele do homem queima com o sonho
arde desaparece a pele humana
só a rubra polpa do cão é limpa
a verdadeira luz habita sua remela
tu és o cão
tu és o desolado cão de cada noite
sonha contigo mesma e basta


ASSIM DEVE SER

assim deve ser o rosto de deus
o céu raivosamente cruzado
pelas nuvens cinzas     violetas e alaranjadas
e sua voz
o mar de baixo
dizendo sempre o mesmo
tão monótono
como o primeiro
e o último dia

Blanca Varela nasceu em Lima no dia 10 de agosto de 1926 e morreu em 12 de março de 2009. Seu envolvimento coma literatura começou na Universidade Nacional Mayor de San Marcos, onde cursou Letras e Educação. Colaborou com periódicos como Las Moradas, quando conheceu Octávio Paz, encontro que marcou e muito sua vida literária. O nome do poeta mexicano ainda voltaria a cintilar na sua biografia quando, em 2001, recebeu o Prêmio Octávio Paz de Poesia e Ensaio. Seu primeiro livro foi publicado em 1959 – Ese puerto existe; escreveu ainda Luz de día (1963), Valses y otras confesiones (1971), entre outros.

* Traduções de Antonio Miranda.

segunda-feira, 4 de junho de 2018

Três poemas de Sérgio Campos




RUÍNAS HORIZONTAIS

1.
a casa
é seus arredores

                anjos degolados
                lagartos de metal
                sucata de gestos

vômitos
das claraboias

2.
a casa
é seus corredores
não suas janelas

janelas são mosaicos
                interiores


PÁSSARO

O pássaro é um pedaço de seu voo
Há o voo do pássaro e outro lado do voo
O ar é um pedaço do voo
é o outro lado do ar

O ar voa no pássaro
o pássaro é o outro lado do voo
As asas são o voo do ar
O pássaro é o outro lado do ar

O ar sem pássaro voa
O pássaro pousa no ar
O pássaro é o pouso do ar

A morte do pássaro no ar
é o outro lado de seu voo

O pássaro morto é seu voo pousado na morte


ELOGIO DA SOMBRA

Do buraco à sombra
tudo são inverno
são elegia
no pórtico da noite vertical

Sucumbiremos nela
palco da beleza serena
com nossas abstrações velhas
e nosso horror à realidade

Poetas loucos
músicos surdos
pintores cegos
                - do que é feita a arte

sucumbiremos
para renascer
sem calendário e roda
                de fiar

Sérgio Campos nasceu no Rio de Janeiro em 1941. No espaço de dez anos, publicou exatamente doze obras. Sua estreia em livro individual aconteceu, em 1984, com A casa dos elementos, composto por seis odes (ao mar, à terra, ao fogo, ao ar, aos quatro ventos elementares e aos quatro pássaros elementares) e um soneto ao Pássaro Anael. Os outros títulos foram:  Bichos (1985); Ciclo amatório  (1986); Montanhecer (1987); Nativa idade, (1990); O lobo e o pastor (1990); As iras do dia, (1990); Móbiles de sal (1991); A cúpula e o rumor (1992); Leitura de cinzas (1993), Mar anterior - poesia selecionada e revista 1984/94 (1994). O poeta morreu em 1994.