segunda-feira, 30 de julho de 2018

Dois poemas inéditos de Clarice Lispector




A MÁGOA

Os telhados sujos a sobrevoar
Arrastas no voo a asa partida
Acima da igreja as ondas do sino
Te rejeitam ofegante na areia
O abraço não podes mais suportar
Amor estreita asa doente
Sais gritando pelos ares em horror
Sangue escoa pela chaminé
Foge foge para o espanto da solidão
Pousa na rocha
Estende o ser ferido que em teu corpo se aninhou.
Tua asa mais inocente foi atingida.
Mas a Cidade te fascina.
Insistes lúgubre em brancura
Carregando o que se tornou mais precioso
Voas sobre os tetos em ronda de urubu
Asa pesa pálida na noite descida
Em pálido pavor
Sobrevoas persistente a Cidade Fortificada escurecida
Capela ponte cemitério loja fechada
Parque morto floresta adormecida.
Folha de jornal voa em rua esquecida.
Que silêncio na torre quadrada.
Espreitas a fortaleza inalcançada.
Não desças
Não finjas que não dói mais
Inútil negar asa partida
Arcanjo abatido, não tens onde pousar
Foge, assombro, inda é tempo
Desdobra em esforço a ala confrangida
Foge! Dá à ferida a sua medida
Mergulha tua asa no mar.


O MENINO

Para além da orelha existe um som
À extremidade do olhar um aspecto
À orla do sopro exaurido o ar
Às pontas dos dedos um objeto
É para lá que eu vou.

À ponta do lápis o traço.

Onde expira o pensamento está uma ideia
Ao derradeiro hálito de alegria uma alegria
À beira das badaladas um silêncio
À ponta da espada a magia
É para lá que eu vou.

À ponta dos pés o salto.

Parece a história de um menino
Que foi e não voltou.
É para lá que eu vou.

Clarice Lispector nasceu em 10 de dezembro de 1920 em Chechelnyk, Ucrânia e morreu em 9 de dezembro de 1977, no Rio de Janeiro.  Autora de obras fundamentais da literatura brasileira pós-anos 1930, como A paixão segundo G. H. e A hora da estrela, nunca se dedicou ao ofício da poesia, embora tenha publicado nas mais variadas formas de escrita – conto, crônica, entrevistas etc. Os dois poemas apresentados aqui foram publicados na década de 1940 em O jornal e posteriormente transformados em prosa, integrando, respectivamente, a crônica “A mágoa imortal” e o conto “É para lá que eu vou”.


segunda-feira, 23 de julho de 2018

Um poema de Oliverio Girondo



O PURO NÃO
o não
o não inóvulo
o não innão
o não pósiodocosmos de impuros zeros que nãoam nãoam
o nãoãoam
o pluriano nãoão ao morbo amorfo innão
não dêmono
não deo
sem som sem sexo nem órbita
o hirto inósseo innão no uníssolo amódulo
sem poros já sem nódulo
nem eu nem cova nem fosso
o macro não nem polvo
o não mais nada tudo
o não mais nada tudo
o puro não
sem não


Oliverio Girondo nasceu em Buenos Aires, em 1891. Cresceu na capital argentina, mas fez parte dos estudos na Inglaterra e na França e, já estudante de Direito em Buenos Aires, viajou regularmente à Europa, onde travou contato com as vanguardas artísticas por intermédio de Jules Supervielle e Ramón Gómez de la Serna. Desses contatos e viagens nasceu o seu primeiro livro, 20 poemas para ler en el tranvia, publicado na França em 1922. De volta a Buenos Aires em 1924, participou da fundação da revista Martín Fierro (1924-1927), concebida como órgão das vanguardas em âmbito hispano-americano. Girondo publicou diversos livros, como Espantapájaros (1932), Persuasión de los días (1942) e En la masmédula (1954). Morreu em Buenos Aires em 1967.

* Tradução de Augusto de Campos

segunda-feira, 16 de julho de 2018

Dois poemas de Maranhão Sobrinho



INTERLUNAR

Entre nuvens cruéis de púrpura e gerânio,
rubro como, de sangue, um hoplita messênio
o Sol, vencido, desce o planalto de urânio
do ocaso, na mudez de um recolhido essênio...

Veloz como um corcel, voando num mito hircânio,
tremente, esvai-se a luz no leve oxigênio
da tarde, que me evoca os olhos de Estefânio
Mallarmé, sob a unção da tristeza e do gênio!

O ônix das sombras cresce ao trágico declínio
do dia que, a lembrar piratas no mar Jônio,
põe, no ocaso, clarões vermelhos de assassínio...

Vem a noite e, lembrando os Montes do Infortúnio,
vara o estranho solar da Morte e do Demônio
com as torres medievais as sombras do Interlúnio...



TELA DO NORTE

No estirão, percutindo os chifres, a boiada
monótona desliza; ondulando, a poeira,
em fulvas espirais, cobre toda a chapada
em cujos poentes o sol põe uns tons de fogueira.

Baba de sede e muge a leva; triturada
sob as patas dos bois a relva toda cheira! 
Boiando, corta o ar a mórbida toada
do guia que, de pé, palmilha à cabeceira...

Nos flancos da boiada, aos recurvos galões
as éguas, vão tocando a reses fugitivas
os vaqueiros, com o sol nas pontas dos ferrões...

E, do gado o tropel, com as asas derreadas
quase riscando o chão, que o sol calcina, esquivas,
arrancam coleando as emas assustadas...



José Américo Augusto Olímpio Cavalcanti dos Albuquerque Maranhão Sobrinho nasceu em Barra do Corda, interior do Maranhão, em 25 de dezembro de 1879, e morreu ainda jovem, em Manaus, no mesmo dia em que completava 36 anos. Nesse breve espaço de tempo, encarnou como poucos a figura trágica do poeta dominado por suas angústias existenciais. Fundador com Antonio Lobo, I. Xavier de Carvalho e Corrêa de Araújo, entre outros, do movimento de renovação literária denominado "Os novos atenienses", que em fins do século XIX e início do século XX sacudiu o meio intelectual de São Luís com ideias e conceitos vanguardistas, Maranhão Sobrinho foi o mais singular poeta de sua geração. Sem dispor de recursos financeiros, publicou seus trabalhos com grande dificuldade; três livros ao todo,  com circulação restrita à província. Papéis velhos... roídos pela traça do símbolo (1908); Estatuetas (1909); Vitórias-Régias (1911).

segunda-feira, 9 de julho de 2018

Dois poemas de José Gorostiza



QUEM ME COMPRA UMA LARANJA?

a Carlos Pellicer

Quem me compra uma laranja
para minha consolação?
Uma laranja madura
em forma de coração.

O sal do mar nos lábios,
ai de mim!
O sal do mar nas veias
e os lábios recolhi.

Ninguém me dera os seus
para beijar.
A tenra espiga de um beijo
não mais posso ceifar.

Ninguém pedira o meu sangue
para beber.
Mesmo eu não se se corre
ou se deixa de correr.

Como se perdem os barcos,
ai de mim!
Como se perdem as nuvens
e os barcos, me perdi.

E ninguém por ele pede,
já não tenho coração.
Quem me compra uma laranja
para minha consolação?

1925


OUTONO

Um ar frio dispersou o povo,
ramagem de cores.
Amanhã é o primeiro dia do outono.
Os seios querem iniciar uma viagem
de andorinhas em azáfama
e o olhar adoecerá de ausência.

Outono,
todo nudez de ouro!

Pluma de garça contra o horizonte
é a névoa na alva.
Presto irá apagá-lo com uma asa
distante;
mas terei a tarde esclarecida,
aérea, musical de tuas perguntas
essas eternas redes.

Outono,
todo nudez o ouro!

Teu silêncio é agudo como um mastro.
Brincarei de vento ourives.
E ao roçar imaterial de nossas pausas,
nos entardeceres do outono,
nunca saberemos se cantava o mastro
ou se o mesmo vento entardeceu sonoro.

Outono,
Todo nudez em ouro!

1925


José Gorostiza nasceu em San Juan Bautista, atualmente Villahermosa, Tabasco, em 10 de novembro de 1901 e morreu em 16 de marçode 1973 na Cidade do México. A serviço do estado mexicano durante a maioria de sua vida ocupou vários cargos de governo e diplomáticos. Fez parte do grupo da revista literária Contemporáneos e foi eleito membro da Academia Mexicana de Língua em 1954. Publicou apenas quatro livros: o primeiro, Canciones para cantar en las barcas (1925), se caracteriza pela pureza de seus versos e a delicadeza de seu lirismo. A interrelação destes dois elementos o permitiu escrever poemas aparentemente simples, mas complexos em sua significação. Depois de catorze anos, durante os quais seus poemas permaneceram inéditos ou dispersos em revistas e antologias, apareceu Muerte sin fin (1939), um dos poemas longos mais importantes de língua espanhola no século XX; aquí, deixa a simplicidade e, sem abandonar o diálogo entre vida comum e expressão exata, mergulha numa busca poética exaustiva do ser, no mundo e na norte. Em 1964 publicou Poesía, livro que reúne as obras anteriores e fragmentos sob o título “Del poema frustrado” e o ensaio “Notas sobre poesia”, que havia servido de discurso quando ingressou na Academia de Língua. O último título foi Prosa, em 1969.


* Traduções de Horácio Costa.


segunda-feira, 2 de julho de 2018

Dois poemas de Mark Doty





PEQUENO MAMUTE

O leite de minha mãe na minha pança

e um pouquinho de merda também,
para que eu possa comer

as ácidas estepes verdes
que se abriam infinitamente

ante mim, e não acabava
deslizei para a luz sol e na

pradaria do mundo quando outra vez

escorreguei neste lamaçal,

e gritei, e gritando
sorvi argila por minha tromba

até fazer cair para fundo do buraco,
meus dentes de leite ainda até

aparecer, uma já suave penugem
de gordura para meu primeiro 
inverno,

e só tenho um mês de vida, e
quarenta mil anos sem 
minha mãe.


*

Grandes blocos de gelo
– nítidas pedras angulares –
caem em bando móvel

até as de um feroz
ventilador giratório; estrépito em rotação
de mil patins e logo

as partículas saem voando ruidosas
pela mangueira num jorro de pó brilhante,
e a equipe de filmagem escurece

a bem usada neve de Manhattan
com uma réplica da neve.


Mark Doty nasceu em Maryville em 10 de agosto de 1953. Estudou na Drake University em Des Moines, Iowa e especializou-se em escrita criativa no Goddard College, Vermont. Uma de suas obras mais marcantes é Atlantis, publicada em 1994, e dedicada ao seu companheiro Wally Roberts que morreu no mesmo ano. É o primeiro poeta estadunidense a receber o Prêmio T. S. Eliot. É professor de escrita criativa na Universidade de Houston.


* Traduções de Pedro Fernandes de O. Neto