segunda-feira, 27 de agosto de 2018

Três poemas de Mahmoud Darwish




Bilhete de identidade

Toma nota!
Sou árabe
O número do meu bilhete de identidade: cinquenta mil
Número de filhos: oito
E o nono… chegará depois do verão!
Será que ficas irritado?

Toma nota!
Sou árabe
Trabalho numa pedreira com os meus companheiros de fadiga
E tenho oito filhos
O seu pedaço de pão
As suas roupas, os seus cadernos
Arranco-os dos rochedos…
E não venho mendigar à tua porta
Nem me encolho no átrio do teu palácio.
Será que ficas irritado?

Toma nota!
Sou árabe
Sou o meu nome próprio – sem apelido
Infinitamente paciente num país onde todos
Vivem sobre as brasas da raiva.
As minhas raízes…
Foram lançadas antes do nascimento do tempo
Antes da efusão do que é duradouro
Antes do cipreste e da oliveira
Antes da eclosão da erva
O meu pai… é de uma família de lavradores
Nada tem a ver com as pessoas notáveis
O meu avô era camponês – um ser
Sem valor – nem ascendência.
A minha casa, uma cabana de guarda
Feita de troncos e ramos
Eis o que eu sou – Agrada-te?
Sou o meu nome próprio – sem apelido!

Toma nota!
Sou árabe
Os meus cabelos… da cor do carvão
Os meus olhos… da cor do café
Sinais particulares:
Na cabeça uma kufia com o cordão bem apertado
E a palma da minha mão é dura como uma pedra
… esfola quem a aperta
A minha morada:
Sou de uma aldeia isolada…
Onde as ruas já não têm nomes
E todos os homens… trabalham no campo e na pedreira.
Será que ficas irritado?

Toma nota!
Sou árabe
Tu saqueaste as vinhas dos meus pais
E a terra que eu cultivava
Eu e os meus filhos
Levaste-nos tudo excepto
Estas rochas
Para a sobrevivência dos meus netos
Mas o vosso governo vai também apoderar-se delas
… ao que dizem!
… Então

Toma nota!
Ao alto da primeira página
Eu não odeio os homens
E não ataco ninguém mas
Se tiver fome
Comerei a carne de quem violou os meus direitos
Cuidado! Cuidado
Com a minha fome e com a minha raiva!

1964


À minha mãe 

Tenho saudades do pão da minha mãe,
Do café da minha mãe,
Do carinho da minha mãe...
Estou a crescer,
De dia para dia,
E amo a vida, porque
Se morresse,
Teria vergonha das lágrimas da minha mãe!

Se um dia voltar, faz de mim
Uma sombrinha para as tuas pálpebras.
Cobre os meus ossos com a erva
Baptizada sob os teus pés inocentes.
Ata-me
Com uma mecha dos teus cabelos,
Um fio caído da orla do teu vestido...
E serei, talvez, um deus,
Talvez um deus,
Se tocar o teu coração!

Se voltar, esconde-me,
Lenha, na tua lareira.
E pendura-me,
Corda da roupa, no terraço da tua casa.
Falta-me o ânimo
Sem a tua oração diária.
Envelheci. Faz renascer as estrelas da infância
E partilharei com os filhos das aves,
O caminho do regresso...
Ao ninho onde me esperas!

1966


Estrangeiro numa cidade distante

Quando eu era pequeno
E belo,
A rosa era a minha morada,
E as fontes eram os meus mares.
A rosa tornou-se ferida
E as fontes, sede.
- Mudaste muito?
- Não mudei muito.
Quando voltarmos à nossa casa
Como o vento,
Olha para a minha testa.
Verás que as rosas são agora palmeiras,
E as fontes, suor,
E voltarás a encontrar-me, como eu era,
Pequeno
E belo...

1969

Mahmoud Darwish nasceu em 1942 em Al-Birweh e morreu em Houston, 2008. O vilarejo onde nasceu foi inteiramente arrasado pelas forças  de ocupação israelenses em 1948, durante a Nakba, e a família do poeta refugiou-se no Líbano, onde permaneceu por um ano. Voltou clandestinamente ao seu país e descobriu que o vilarejo onde nasceu fora substituído pela colônia agrícola israelense de Ahihud. Foi preso diversas vezes entre 1961 e 1967,  e a partir da década seguinte passou a viver como refugiado até ser autorizado a retornar à Palestina, para comparecer a um funeral, em maio de 1996. Darwich é o autor da Declaração de Independência Palestina, escrita em 1988 e lida pelo líder palestino Iasser Arafat, quando declarou unilateralmente a criação do Estado Palestino.

* Traduções de Júlio de Magalhães. Os poemas aqui copiados foram publicados inicialmente em no Portal MPPM.

segunda-feira, 20 de agosto de 2018

Dois poemas de Rabindranath Tagore traduzidos por Cecília Meireles




Última primavera

Antes que o dia termine,
consente-me este desejo:
vamos colher
flores da primavera
pela última vez.
Das muitas primaveras
que ainda visitarão
tua morada,
concede-me uma,
– implorei.

Todo este tempo,
não prestei atenção
às horas,
perdidas e gastas à toa.
Num lampejo
de um crepúsculo,
li nos teus olhos agora
que meu tempo está próximo
e devo partir.

Assim, ávido, ansioso,
conto um por um
– como o avarento o seu ouro –
os últimos, poucos dias de primavera
que ainda me restam.

Não tenhas medo
Não me demorarei muito
no teu jardim florido,
quando tiver de partir,
no fim do dia.

Não procurarei lágrimas
nos teus olhos
para banhar minhas lembranças
no orvalho da piedade.

Ah, escuta-me,
não te vás.
O sol ainda não se esconde.
Podemos permitir que o tempo
se prolongue.
Não tenhas medo.

Deixa que o sol da tarde
olhe por entre a folhagem
e se detenha um momento
brilhando no negro rio
do teu cabelo.

Faze o tímido esquilo,
perto do lago,
fugir de repente
ao estrépito de teu riso
que irrompe
com descuidosa alegria.

Não procurarei
retardar teus rápidos passos,
sussurrando esquecidas lembranças
aos teus ouvidos.

Segue teu caminho depois,
se teu dever é seguir, se tens de seguir
calcando folhas caídas
com teu andar apressado,
enquanto as aves que voltam
povoam o fim do dia
com o clamor dê seus gritos.

Na escuridão crescente,
tua distante figura
irá fugindo e apagando-se
como as últimas frágeis notas
do cântico da tarde.

Na noite escura,
senta-te à tua janela,
que eu passarei pela estrada,
seguindo o meu trajeto,
deixando tudo para trás.

Se te aprouver,
atira-me
as flores que te dei
pela manhã,
murchas agora ao fim do dia.

Isso vai ser
o último e supremo presente:
tua homenagem
de despedida.


Troca

Ela me trouxe flores de alegria
eu tinha comigo
os frutos da minha tristeza.

Quem sairá perdendo,
perguntei-lhe,
se trocarmos?

Encantada e risonha,
ela disse:
“Então troquemos:
minha grinalda é tua
e aceitarei
teus frutos de sofrimento”.

Olhei para o seu rosto
vi que era de uma beleza
implacável.

Bateu palmas, alegre,
e apanhou
minha cesta de frutos
enquanto eu suspendia sobre o coração
sua grinalda de flores.

Ganhei,
disse ela sorrindo
e retirando-se
logo.

O sol subiu
para o alto do céu
e fazia muito calor.

No fim do dia
sufocante
todas as flores murcharam
e perderam as pétalas.

Rabindranath Tagore nasceu em 7 de maio de 1861. Considerado um dos escritores mais importantes da literatura indiana, condição reconhecida por sua obra, reformuladora da literatura bengali. Feito que servirá a Academia Sueca a nomeá-lo para o Prêmio Nobel de Literatura em 1913, o primeiro não-europeu a receber essa honraria. Embora sua obra seja constituída basicamente por poesia, também escreveu prosa – contos e romances. Tagore morreu em 7 de agosto de 1941.

segunda-feira, 13 de agosto de 2018

Dois poemas de Aleksándr Púchkin



Para...

Lembro do instante feliz:
Adiante, de relance, a vi.
Uma visão em revoada,
Tão bela que aos olhos agrada.

Nos vãos torvelinhos da vida,
Nas brumas de tanta amargura,
Sua voz me soou tão querida
E em sonho revi sua figura.

A fúria bravia das tormentas
Dispensa meus sonhos de outrora,
E leva sua voz — não se ofenda —
E os traços queridos, embora.

Surdo, sozinho, enclausurado,
Meus dias se arrastam em langor
Sem inspiração, sem divindade,
Sem pranto, sem vida, sem amor.

Mas eis que a alma se ressente:
De nova visão passageira,
Ao vê-la voltar de repente,
Tão bela, e aos olhos feiticeira.

E no peito bate o coração,
E algo renasce com vigor
A divindade, a inspiração,
A vida, as lágrimas, o amor.

1825

* Tradução de Aurora Fornoni Bernadini



O demônio

Quando não me era ainda insossa
cada impressão da vida outrora
– rumor de bosque, olhar de moça,
canção de rouxinol na aurora –
e quando a liberdade, o amor,
a glória, as artes, o melhor
da inspiração e altas idéias
turvavam-me o sangue nas veias,
um certo espírito nefando,
trazendo angústia e me anuviando
horas confiantes de prazer,
passou, em sigilo, a me ver.
O nosso encontro era sombrio
e ele sorria com o olhar
cheio de escárnio ao me instilar
dentro da alma um veneno frio.
Pois caluniava sem receio
e desafiava a Providência,
julgava o Belo – um devaneio,
a Inspiração – tolice imensa,
o amor e a liberdade – vis.
E, olhando altivo, com profundo
desprezo, a vida, ele não quis
abençoar nada em todo o mundo.

1823

* Tradução Boris Schnaiderman e Nelson Ascher


Aleksándr Púchkin nasceu em Moscou em 1799. Foi aluno no prestigiado Liceu Imperial de Tsárkoie Seló em 1811, época em que seus poemas passaram a despertar atenção. Perseguido pela censura tsarista, foi exilado em 1820 e passou quatro anos fora da Rússia; no retorno, continuou a ser vigiado por Nicolau I - já então Púchkin havia se tornado historiador oficial do império. Deixou um legado de poemas que vão do romantismo ao classicismo, muitos dos quais se tornaram célebres como"O século de prata". Morreu aos 37 anos num duelo com o oficial francês George-Charles D'Anthès, que cortejara a esposa do poeta. 

segunda-feira, 6 de agosto de 2018

Quatro poemas de Nelly Sachs




NESTA AMETISTA

Nesta ametista
estão sedimentadas as eras da noite
e uma prístina inteligência de luz
inflamou a amargura
ainda líquida
e chorou

Tua morte resplandece ainda
dura violeta


QUEM CHAMA?

Quem chama?
A própria voz!
Quem responde?
Morte!
A amizade naufraga
no bivaque do sono?
Sim!
Por que um galo não canta?
Ele espera até que o beijo do alecrim
flutue sobre as águas!

O que é isto?

O instante de desolação
do qual se desprendeu o tempo
morto de eternidade!

O que é isto?

Sono e morte não têm características


QUATRO DIAS QUATRO NOITES

Quatro dias quatro noites
teu esconderijo foi um caixão
sobreviver inspirou – e expirou –
para retardar a morte –
Entre quatro tábuas
jazia a dor do mundo –

Lá fora o minuto crescia pleno de flores
nuvens brincavam no céu –


É UM ESCURO COMO

É um escuro como
caos antes do verbo
Leonardo procurou esse escuro
por detrás do escuro
Jó estava envolto
no corpo materno dos astros
Alguém sacode a escuridão
até que a maçã Terra caia
madura no fim
Um suspiro
será isso a alma – ?

Nelly Sachs nasceu em Berlim em 10 de dezembro de 1891. Começou a escrever por volta dos dezessete anos. E publicou, dentre outras obras, In den Wohnungen de Todes (Nas moradas da morte), seu primeiro livro de poemas; Fahrt ins Staublose (Viagem para o sem pó), que reúne seis livros escritos durante vinte anos. Recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1966 juntamente com Shmuel Yosef Agnon. Morreu em Estocolmo em 12 de dezembro de 1970.

* Traduções de Carlos Fraga da Fonseca