segunda-feira, 29 de outubro de 2018

Três poemas de António Botto




Bernard Shaw diz que, na vida,
Tudo convém conhecer.
E eu, de tudo,
Mais ou menos dou notícia.
– Só não sei que sabor tem
A fadiga do prazer.


Quem não ama não vive

Já na minha alma se apagam
As alegrias que eu tive;
Só quem ama tem tristezas,
Mas quem não ama não vive.

Andam pétalas e folhas
Bailando no ar sombrio;
E as lágrimas, dos meus olhos,
Vão correndo ao desafio.

Em tudo vejo Saudades!
A terra parece morta.
– Ó vento que tudo levas,
Não venhas á minha porta!

E as minhas rosas vermelhas,
As rosas, no meu jardim,
Parecem, assim caídas,
Restos de um grande festim!

Meu coração desgraçado,
Bebe ainda mais licor!
– Que importa morrer amando,
Que importa morrer d'amor!

E vem ouvir bem-amado
Senhor que eu nunca mais vi:
– Morro mas levo comigo
Alguma cousa de ti. 

***

Explica-me tu se podes 
Num movimento de calma, 
Porque razão 
Se te beijo num desvairo de prazer 
Às vezes sou todo corpo 
E às vezes sou todo alma?

António Botto nasceu em 1897, no concelho de Abrantes. Aos 24 anos escreve Canções, obra mais importante de sua poética. Viveu algum tempo em Angola onde trabalhou funcionário como público; no regresso, toma posse no Governo Civil de Lisboa e depois é nomeado escriturário de 2ª classe do Arquivo geral de Registo Criminal e Policial. Em 1942 foi demitido da função pública – demissão e não aposentação compulsiva, o que não lhe deu direito a qualquer pensão – por fatos que foram subsumidos ao conceito indeterminado de "falta de idoneidade moral". No ano de 1947, decide partir para o Brasil; morreu no Rio de janeiro, como consequência de acidente, em 1959.

segunda-feira, 22 de outubro de 2018

Quatro poemas de Lourdes Espínola




Nascer mulher-poeta

A alternativa:
saltar da varanda; estilhaçá-la.
Saias, leque, fio, agulha:
dispo-me e insurjo-me.
Estou farta de olhar a vida
desta varanda!
Cárcere semicircular
orelha surda, surda boca
grito e falo
do solitário oficio de escrever.
Manuscrito de visões interiores,
espelhos de mulher abrindo-se.
Nasço
rasgando fontes de veneno.


Delmira

Ser contradição ou mulher
é a mesma coisa, afinal,
arder
fingir pudor
calar, cantar
adorar o próprio corpo
engalaná-lo com vestidos
cremes, perfumes e artifícios
tudo envolto cm falsa modéstia.

E ter
a medida exacta,
o olhar virginal
os olhos sorridentes
mas desejando
a longa carícia
que solte os cavalos
do desejo sabiamente reprimido.

Solidão

Com o cheiro dos meus poros,
inclinas-te comodamente
sobre o longo corredor do meu peito.
Órfã de mim mesma,
percorres as minhas entranhas,
reconheces o ten velho território.
Escorpião mordido
pelo seu próprio veneno
vejo-me retorcida
no teu sorriso final.


(DE COMO AS MULHERES ESCREVEM POEMAS ERÓTICOS)

Se escrevesse um poema sobre nós,
seria censurada.
Deixa-me então contar-te
como o junco se faz cana
e espalha lá dentro o seu mel oculto.
Ou falar-te daquela orquídea violeta
de pétalas e pétalas que navegam em seria,
ou de como ela se abre
e entram estrelas
que iluminam o sangue, esse que estava adormecido.
E de como os olhos bebem
o dicionário todo.
Mas façamos um contrato:
a ninguém o contemos
para que este poema não morra censurado.


I
A viagem da minha vida:
suficientemente fechada
para me proteger,
suficientemente porosa
para que tu penetres...


II
A minha roupa virada do avesso,
com as costuras à mostra:
pequenas cicatrizes do meu corpo.
Procurar equilibrar um anjo
nas tuas longas pernas,
é assim que me tens...
e manténs.


III
A lua foi um presente poeirento
- perfeito e único -
que tinha que devolver no dia seguinte:
dependurei-a, pontual,
polida, clara,
dançando na ponta dum fio transparente.

Restaurar o meu corpo,
dar-lhe
luz, cor, movimento
ou talvez um coração espremido
em frases de poemas como fugas.
Um gesto, uma sombra, uma silhueta,
construir com círculos de ritmo
um rosto, uma luz, um carrocel,
ou melhor, uma perfeita analogia.
Restaurar o meu corpo:
Uma abstracção tão luminosa cm seu desejo.

Despi-me toda:
dos dedos ao ventre,
da minha pele à tua,
do meu pulsar à tua mão.
Estendi-me,
a oferenda dos deuses:
palpitante, morna,
balbuciando segredos.
E puseste as mãos
em concha, como ninhos,
e sentiste o fogo
e fechaste os olhos.
A luz brilhante cega
quando não a esperamos.

Lourdes Espínola nasceu em Assunção, Paraguai, em 9 de fevereiro de 1954. Formada nas áreas de Ciências, Relações Internacionais, Humanidades e Literatura, é detentora de títulos adquiridos nas seguintes universidades North Texas State University (EUA), Southwest Texas State University (EUA), Universidad Nacional de Asunción (Paraguai) e Universidad Complutense de Madrid. É poeta, crítica literária e jornalista. É autora de livros como Ser mujer e otras desventuras, Tinta de Mujer Las palabras del cuerpo.

* Traduções de Albano Martins.

segunda-feira, 15 de outubro de 2018

Oito poemas de Néstor Perlongher




Águas áreas

I
ACRÍLICO (ACRE LÍRICO) mais que esplendor volume furta-luz luz fria lua aquática sua raia (intersecção de élitros, choque ou ballet de vaga-lumes, niágara) de luva veste a espessura glaceando o manati de uma cutícula de nuvens, cútis nívea, glostosa de nívea, na afetação do trejeito glorioso se dispunha ao agarre da raia, quadriculado na vertigem, craquelê, sem deixar de ser ruína, melado de babas, a rebarba de nácar estirada na borda de sua bainha de valsa, ríspido roque que muda os estremecimentos em núpcias, leves, aladas, quase voiles, manatis sereias, bosques rio, pois o milagre de seu sobressalto, ao descascar, em romãs, os arozinhos de esparto, despertava nele ancas de cisne coruscante, vazio, vagabundo, sua limpidez de penas no leito imprevisto, nonada, só que se deixa levar, ser arrastado, no agito das hélices pela torrente pantanosa, escândalo de espumas a onda-urina, águas de porcelana no jorro de jóias, um portland luminoso ao envolver o polvo como luva, pérola que se revela elástica ou nasce borracha, ferida pelo acre ou o amargor, em delongas marejadas de um unguento encantado.


II
E O QUE SE REVELAVA, na vibração, mais que o cintilar do filamento em sua finura de medusa, a transparência da voz, o gargarejo mucilaginoso traçando liames de cristal entre as vestes, seu oscilar, no ar orvalhado que se dissolve numa porosidade de receptáculos: em cada oscilação o fulgurante dilaceramento da distância em glóbulos de laca, em cada glóbulo uma luz.


III
OPALESCÊNCIA E LIVIDEZ DO RAIO, fumarola de jade em seu deflúvio, arrastava nas rédeas uma coorte de erráticas divindades. Luz divina. Potlatch de luz divina na afluência das nereidas nas ondas, nas espumas das orlas. O granuloso do brocado, em cada glóbulo um soutien, laminado de astilhas, platinado, uma alma granular, fazendo coro ou eco no foro mareado das densas traiçoeiras águas. Espinhas das almas pelas águas, as borbulhas do peixe por riachos de acrílico nevado, adquire seu jade no ofego, o dobrão do ofego na dobragem, a aura amara dos sonhos. Ou no avesso da rendilha, à qual os ofegos, para amansar o estridor, dobravam-se, não morava uma enguia que, superando o fosso, se transformava em águia? Ou era o lagarto das ruínas, por monturos espelhados, deslizando seu rabo faiscante, para iscar na fricção do fole a lisura do jade.


IV
A SAUDADE DO VELUDO ou a ternura de diferir o deslizar das gemas sobre as guedelhas enfastiando-as com um laivo de naviondas chegando e partindo ao mesmo tempo, marinhas transparentes pintadas sobre uma água inquieta mas ao correr da película um ressaibo que sustenta o movimento acampanado, ou de espirais, uma flecha concêntrica, esse melaço rasga o pulmão da vítima do ar num ai ébrio, aberto como uma boca louca e em sua estendida dimensão entra a fateixa da unha na luva de veludo criando calos na frágil distância.


V
REFOLHO DE PLISSÊS de goma em ondas oleosas de incenso ar em volutas rarefeito enobrecido pela ambiência do branco derramando-se do alto de uma mesa estelar onde coruscam burilados cristais azul assume a amplitude celestial do voo do refolho na floresta etérea de lagartos enrolados em finos choupos que chorassem — se de repente são ouvidos — nênias e litanias da alma de meninas à espera de uma emenda de estilo ou movimento ao embalar a impulsão do corpo inteiro no "bailado", se faz bailar bailada a alma de menina assomada entre os rebrilhos do crucifixo de duas tábuas ou quatro braços o corisco da marisma de cristais e fulgores da fímbria e brilhos meros brilhos da luz ganso brilhante no tanque preso como suspenso no aquário aéreo mas se o agitam amplos alentos e hálitos fortes e jogos do corpo pelo vento do couro em alma viva em carne leve esfoliada possante pelos balanços rítmicos da dança, o bailado na vida, a vida no bailado e as tranças se enlaçando no repisar da vibração tremores embarcavam penteando as funduras do ser que em puro abismo o céu figuravam em planícies sinuosas que esse ritmo do bailado alisa e lhe faz frisos de divino esplendor.


VI
O CIRCUITO DE OCELOS o tanque encantado
comove lentamente com a finura de uma
enguia do ar
vermes de rosicler urdindo sob a grama
um labirinto de relâmpagos.


VII
O EMBALO DOS BOTOS nos cabelos líquidos da água, fluvial a gargantilha em suas irisações no córtex da superfície partida como um espelho pelo payé
                      que em resposta à invocação das profundezas adentra submerge de uma ponte especialmente armada para o mergulho ritual e ressurge depois de horas ou dias completamente seco, como se nunca tivesse se molhado, como se as águas mal tivessem alisado os seus cachos, cabelos que se fundem e confundem aos da mãe-d'água que derrama a azulada magnificência e magia de seus dons de aurora.


VIII
A Edward Mac Rae

MÃE DA ÁGUA vestes celestes ouro em chuvisco sobre os
olhos resplandecentes translúcidos através dos quais
a chamada pelos companheiros do fundo se embrenhava num
porto que era um ponto nas águas que davam para o bosque
a titilação incessante de seus cabelos que eram asas de
borboletas imperiais fazendo ondas aquáticas na árvore
do ar e o gorjeio dos pássaros amarelos azuis acrescentava
uma coloração fugaz intempestiva à música de
massas úmidas.


Néstor Perlongher nasceu em Avellaneda, Buenos Aires, em 1949, e morreu em São Paulo em 1992. Poeta de extensa obra, escreveu, dentre outros Austria Hungría (1980), Alambres (1987), Hule (1989) e Parque Lezama (1990).

* Traduções de Josely Vianna Baptista

segunda-feira, 8 de outubro de 2018

Dois poemas de Leopoldo Lugones




A branca solidão

Sob a calma do sono,
Calma lunar de luminosa seda,
A noite,
Como se fosse
O corpo branco do silêncio,
Docemente na imensidão se deita.
E desnastra
A cabeleira
Em prodigiosa folhagem
De alamedas.

Nada vive, menos o olho
De relógio na torre tétrica,
Aprofundando inutilmente o infinito
Como um orifício aberto na areia.
O infinito,
Rodado pelas rodas
Dos relógios,
Como um carro que nunca chega.

A Lua cava um branco abismo
De quietude, em cujo côncavo
As coisas são cadáveres
E as sombras vivem como ideias.
E a gente pasma de tão próxima
Que naquela brancura se acha a morte.

De tão bonito que é o mundo
Possuído pela antiguidade da lua cheia,
E a ânsia tristíssima de ser amado
No coração doloroso estremece.

* Tradução de Aurélio Buarque de Holanda

A última careta

A miséria ri. Com sórdida costeleta
seu cão de guarda lhe regala um festim.
Em suas funambulescas calças vai um poeta,
e em seu casaco o órfão que tem por Delfim.

A fome é seu pandeiro, a lua sua moeda
e o tango vagabundo seu pai-nosso. Crina
de leão, sua coroa. Sua inutilizada escopeta
de mercenário impávido sua uma fugosa fuligem.

Vai em dominó de farrapos, zumbe sua copla irônica,
por véu lhe empresta seu lenço a Verônica.
Seu corpo, de tão chagado, parece um horto em flor.

E sob a ignomínia de tão sinistra máscara
Cristo ensina à noite sua formidável máscara
de cabelos terríveis, de sangue e pavor.

* Tradução de Floriano Martins

Leopoldo Lugones nasceu no dia 13 de junho de 1874, na Villa de María del Río Seco, tradicional cidade da província de Córdoba. Começou a escrever profissionalmente no jornal La Montaña e a partir de então se tornou um dos expoentes do modernismo em seu país. Escreveu prosa (romance e contos) e poesia. Deste último gênero destacam-se Las montañas del oro, o livro de estreia, marcadamente simbolista, El libro fiel El libro delas paisajes. Suicidou-se ingerindo cianureto no dia 18 de fevereiro de 1938 no balneário de El Tigre, próximo a Buenos Aires. 

segunda-feira, 1 de outubro de 2018

Dois poemas de Eugenio Montale



Não nos peças a palavra que acerte cada lado
de nosso ânimo informe, e com letras de fogo
o aclare e resplandeça como açaflor
perdido no meio de poeirento prado.

Ah o homem que lá se vai seguro,
dos outros e de si próprio amigo,
e sua sombra descura que a canícula
estampa num escalavrado muro!

Não nos peças a fórmula que te possa abrir mundos,
e sim alguma sílaba torcida e seca como um ramo.
Hoje apenas podemos dizer-te
o que não somos, o que não queremos.

***

Passar à sesta pálido e absorto
rente dum abrasado muro de horto,
escutar entre sarças e espinhos
cicios de cobra, pio de passarinhos.

Nas ervilhas ou em gretas do solo
espiar carreiras de rubras formigas
que ora se separam ora se ligam
ao cruzarem nalgum monte minúsculo.

Observar entre frondes o palpitar
distante das escamas do mar
enquanto se eleva o tremor estrídulo
das cigarras nalgum alto escalvado.

E andando no sol, encadeado,
sentir como triste maravilha
como é toda a vida e as suas lidas
neste acompanhar uma muralha
que em cima tem cacos de garrafas partidas.

Eugenio Montale nasceu em Gênova em 12 de outubro de 1896. Poeta, jornalista e tradutor. Recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1975. Da sua vasta obra se destacam os títulos Ossos de sépia, As ocasiões e A tormenta e outras coisas. O poeta morreu em 12 de setembro de 1981, em Milão. 

* Traduções de Renato Xavier.