segunda-feira, 26 de novembro de 2018

Dois poemas de Orlando Mendes



Não, mas

Não fome nem sede nem cio
nem desejo de aventura
não o grito que percutiu
contra o medo que vos mura

não regras nuvens que adensam
e deslizam para o mar
não chuva implorada bênção
sobre a terra de semear

não a mão febril que deslavra
sofismado túnel da sua
liberdade. Mas a palavra

que se catapulta da rua
e nos sonos profundos lavra
como fogo que não recua.


Manhã

Quando a verde savana
é uma bandeira húmida batida pelo sol
as corolas se abrem lentamente
como tem de ser

esvoaçam cintilantes abelhas
e sugam o néctar essencial
e levam o pólen a outras flores
como tem de ser.

Toca cherila na machamba
e mufana não responde à chamada
três vezes repetida
como tem de ser

parte a descobrir flores abertas
e de corpo envolto na bandeira verde
o rosto agudo irradia luz
e os olhos incendeiam a manhã
porque o sol não queima epidermes da sua cor
como também tem de ser.

Orlando Mendes nasceu em 1916 na Ilha de Moçambique e morreu em Maputo em 1989. Formado em Biologia pela universidade de Coimbra, onde trabalhou como assistente de botânica, foi fitopatologista e atuou no Ministério da Agricultura de Moçambique como pesquisador de medicina tradicional. Escreveu peças para teatro, romance e poesia, o gênero no qual se situa sua obra mais significativa.O livro de estreia foi Trajectórias em 1940, ao que se seguiu Clima (1959), Depois do sétimo dia (1963), Portanto eu vos escrevo (1964), Véspera confiada (1968), Adeus de Gutucumbui (1974), A fome das larvas e País Emerso I (1975) - no ano seguinte publicou a continuidade deste título -, Produção com que aprendo (1978), Lume florindo na forja (1980) e As faces visitadas (1985).



segunda-feira, 19 de novembro de 2018

Nove poemas de Armindo Trevisan



Primeira opção

Cada homem é levado por si, ou por outrem,
à amargura jubilosa de uma consciência de faca.
Por esta consciência os nós do seu sangue
lhe amadurecem até à hora em que as coisas
lhe caem sobre os olhos, com a velocidade
dos poléns que o sol enfureceu por descuido.


Segunda opção

Cada homem é levado à lucidez da carne,
porque a carne tem o bote harmonioso
das molas, que se enchem de visco e energia,
e impelem o vento na direção inacreditável
das velas atentas às madeiras odoríferas.


Terceira opção

Cada homem é levado a uma noite irreversível,
feita de todos os destroços de suas palavras,
e de todas as alturas de suas adesões.
Nessa noite - ó encanto! ó jardins suspensos! -
é-lhe concedido, pela primeira vez, o assombro
de dar-se um nome, como aos inventos eletrônicos.


Quarta opção

O homem, que é levado, dá-se um nome sem nome,
que só ele saberá, por mais que explique aos amigos
a perfeita lógica do pé que se liquefez,
ou a segurança bravia do tórax onde as buganvílias
cresceram como carícias ruborizadas pelo frio.
Ah! mas é terrível carregar-se consigo a flama,
que só em nossa pele logrará devorar o bosque.


Quinta opção

Mas a paz dos galos que escancaram as manhãs
acompanha a comitiva do que ficou um só.
Homens: escolhei vossos caminhos a cada curva,
dai-lhes de beber o leite de vossos cérebros,
propiciai-lhes o mel de vossas angústias inaugurais.
Há doçura no medo de errar onde não se errou,
e engrandece um erro sabê-lo único.


Sexta opção

Cada homem se leva, por si, ou por outrem,
ao território insensato no qual a morte admite
despir-se de sua indumentária da tábua e do cravo.
Ali é que ela exibe seu sexo ao homem
e o obriga a adorar a Deus na graça do vácuo,
onde o próprio Não sabe a misericórdia.


Sétima opção

Esta misericórdia procede da lâmina polida
que penetra até onde lhe é possível conduzir
o bico longilíneo do murmúrio que o homem
hospeda às avessas, no labirinto do seu rosto.
Contudo: ei-lo ali, este gigante que escolheu.
no meio de outros homens, uma coisa tão sua
que até se arrepende de ter vivido excessivamente.


Oitava opção

Decerto nosso corpo calcula o seu poderio
a partir dos dentes que afia para o ar.
Mas este corpo imediato, que é carne centrífuga,
não se cativa às leis que o fixam aos morangos,
ou à muralha túmida dos acertos memoráveis.
O corpo dos homens é a solução que a alma
amealhou para a hora em que a Eternidade
se impõe a cada criatura como um gemido intransferível.


Nona opção

Ignora-se até onde é levado o homem,
cuja liberdade mordeu uma nuvem de mercúrio.
Que importa? Há que fiar-se dos fios que não têm meada,
e, por não a terem, desprezam as pontas salvadoras.
Vão eles ao encalço do atavismo das flechas,
e, quanto mais distantes, mais contíguos se sentem,
inúteis de si, embora esta contiguidade temerosa
de um ser que não traziam os constranja à loucura
de amarem o que a vida reserva aos indígenas
da profundidade absoluta, que consiste em tentar
só dar a Deus aquilo que, alguma vez, foi do homem.

Armindo Trevisan nasceu em Santa Maria em 1933. Formado em Teologia, concluiu o Doutorado em Filosofia pela Universidade de Fribourg, na Suíça. Atuou com professor de História da Arte e Estética na Universidade do Rio Grande do Sul entre 1973 e 1986. Autor de vasta obra poética. Dessa produção é possível citar A surpresa do ser, o livro de estreia em 1967, Funilaria do ar (1973), O ferreiro harmonioso (1978), A mesa do silêncio (1982), A dança do fogo (1995) e O canto das criaturas (1998).

* Os poemas aqui publicados são os apresentados na revista Colóquio / Letras n.2, jun. de 1971.

segunda-feira, 12 de novembro de 2018

Um poema Ivan Búnin



Mulher de pedra

Grama seca e morta de braseira,
Estepe sem limite, mas ao longe medra o azul.
Há restos cavalares de caveira.
E novamente  a Mulher de Pedra.

Como seu vulto raso é sonolento!
E quão grosseiro é o corpo primordial!
Estou com medo de ti... E tu, timidamente
Me sorris.

Oh! tição selvagem de antiga escuridão!
Foi a ti que adoraram? foi a ti?
 Não Deus nos fez. Não de suas mãos.
Nós fizemos os deuses, servil o coração.

1903-1906


Ivan Búnin nasceu em 1870, em Vorônej, na Rússia, numa família nobre. Começou a escrever muito cedo, e aos 19 anos de idade empregou-se na redação do jornal O Mensageiro de Oriol, publicando em 1891 sua primeira coletânea de poemas. Na virada do século, Búnin começou a adquirir fama literária na Rússia como poeta e tradutor, sendo um grande expoente do verso clássico, passando ao largo das correntes modernistas da época. Em 1920, discordando dos rumos da Revolução de 1917, Búnin fixou residência em Paris, tornando-se uma das principais vozes da comunidade de russos emigrados. Em 1933 recebeu o Prêmio Nobel de Literatura, o primeiro a ser entregue a um escritor russo. Sua extensa obra é composta principalmente por poemas e textos ficcionais como as novelas A aldeia (1910), O amor de Mítia (1925) e O processo do tenente Ieláguin (1926), o romance de tintas autobiográficas A vida de Arsêniev (1930), e os contos "Um senhor de São Francisco" (1915) e "Respiração suave" (1916). Ivan Búnin morreu em 8 de novembro de 1953, em Paris.

* Tradução de Aurora Fornoni Bernardini.

segunda-feira, 5 de novembro de 2018

Cinco poemas de Fernando Echevarría


Era um deserto de luz. A cotovia
Sobre o deserto do deserto andava
A construir a frágil escadaria
Por onde os trilos de cristal criavam
Deserta perspectiva
Espaçando timbres em secura de harpa.
Era um deserto. Pela luz acima
A altura do canto entrava.
E, quando já a cotovia
Perdera o ponto da sua sombra, a estrada
Do horizonte se erguia
Com rispidez diurna de cigarras.

Marraquexe / Paris, 2 / 5 nov. 85


O renque abria à multidão das árvores
A límpida matriz de arruamento
Que progredia só pela saudade
De um puro fora a caminhar pra dentro
Dum ritmo ritmo esclarecido de paisagem
Com avenidas de estremecimento
De renque invicto. Abrindo claridade
Além ainda do conhecimento
De estar a ver pela floresta a grande
Viagem indo pelo fora dentro.

Paris, 16 out. 85


As cidades já vistas e que assentam
No esquecimento da penumbra, acima
Trazem figuras de peso
Que as fundeara ao largo da retina.
Debrua-as o imóvel vento
Das recuadas épocas que haviam
Perdido a história. Mas sustentavam dentro
A inumerável sucessão dos dias.
As cidades já vistas trazem um silêncio
Avassalador. Que as priva
Da extensão. Mas não do tempo
De estarem sendo nomeadas. Lidas.

Paris, 10 dez. 85


É noite à volta do frágil candeeiro.
Um cónico perímetro de estudo
Acende o seu silêncio
E essa paciência que envolvem o assunto.
É noite. O pensamento
Aplica a análise à forma como o mundo,
Palpitando em si mesmo,
Vem à palavra palpitar obscuro.
Mas esta noite de mundo tão intenso
Nomeia-se claríssima no estudo
Que vai correspondendo ao movimento
Com que o silêncio se acende no assunto.

Paris, 5 jan. 86


Há um vento imóvel que quase transfigura
Em si mesmos os bichos e os homens.
Vemos passar pela floresta a sua
Tepidez de covil. Perto da noite,
Um halo de sentidos sensíveis os circunda
E movem a cautela inaugural da fome.
Ou, se pisam a rua,
Quase que vão por onde
Quando eram reis de uma consciência obscura
A palpitar pelos confins da morte.
Há um vento imóvel. Uma paciência, a crua
Caça. E por onde a encantação dos nomes
Relampagueia, unificando a sua
Nomeação à astralidade do homem.

Paris, 2 jan. 86

Fernando Echevarría nasceu em 26 de fevereiro de 1929.  Publicou seu livro de estreia em 1956, Entre dois anjos. Viveu em França, onde se aproximou dos círculos oposicionistas portugueses aí exilados; daí envolveu-se em vários movimentos de luta revolucionária contra o regime militar português. Só regressou a Portugal depois do 25 de abril. Escreveu ainda títulos como Tréguas para o amor (1958), Sobre as horas (1963) e Ritmo real (1971). Premiado reiteradas vezes, com galardões como o Prêmio Pen Clube, Grande Prêmio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores e Prêmio Nacional de Poesia António Ramos Rosa.   

* Os poemas aqui apresentados foram publicados na edição 113-114 da revista Colóquio / Letras, jan.1990.