sábado, 24 de maio de 2014

Dois poemas de Joseph Brodsky



M. B.

Querida, hoje saí de casa já muito ao fim da tarde
para respirar o ar fresco que vinha do oceano.
O sol fundia-se como um leque vermelho no teatro
e uma nuvem erguia a cauda enorme como um piano.

Há um quarto de século adoravas tâmaras e carne no braseiro,
tentavas o canto, fazias desenhos num bloco-notas,
divertias-te comigo, mas depois encontraste um engenheiro
e, a julgar pelas cartas, tomaste-te aflitivamente idiota.

Ultimamente têm-te visto em igrejas da capital e da província,
em missas de defuntos pelos nossos comuns amigos; agora
não param (as missas). E alegra-me que no mundo existam ainda
distâncias mais inconcebíveis que a que nos separa.

Não me interpretes mal: a tua voz, o teu corpo, o teu nome
já não mexem com nada cá dentro. Não que alguém os destruísse,
só que um homem, para esquecer uma vida, precisa pelo menos
de viver outra ainda. E eu há muito que gastei tudo isso.

Tu tiveste sorte: onde estarias para sempre – salvo talvez
numa fotografia - de sorriso trocista, sem uma ruga, jovem, alegre?
Pois o tempo, ao dar de caras com a memória, reconhece a invalidez
dos seus direitos. Fumo no escuro e respiro as algas podres.

* Tradução de Carlos Leite.


Porta San Pancrazio

As abelhas não voaram para longe, nem um cavaleiro partiu
a galope. No bar Gianicolo, velhos companheiros relembram os dias
da infância, e o cubo de gelo derrete­‑se, arrefecendo o frágil motor
grato por beber duas vezes a mesma água.

Oito anos passaram. Guerras rebentaram e esfumaram­‑se,
famílias desfizeram­‑se, a escumalha desnudou os dentes envelhecidos;
aviões caíram do céu e o rádio murmurou «Jesus».
Os lençóis ainda podem ser lavados, mas as rugas da pele

não se rendem à palma mais suave. O sol sobre uma Roma
no Inverno empurra o fumo púrpura com raios desnudos. A cinza
tresanda a folhas queimadas, e a fonte brilha como uma medalha
vacilante pendurada num canhão que ao meio dia dispara a sua salva.

A pedra é usada para manter cativa a memória.
Contudo é mais difícil aparecer do que desaparecer numa perspectiva
fugindo da cidade pelos anos fora e para além
em perseguição do puro tempo, desprovido de amor e de futuro.

A vida sem nós, querida, é pensável. Ela existe como
abelhas, cavaleiros, bares, habitués, colunas, vistas,
e nuvens sobre este campo de batalha cujas estátuas eternas
triunfam, com o seu corpo, sobre a possibilidade de te tocar.

1989

* Tradução de Sandra Costa.

Joseph Brodsky nasceu a 24 de maio de 1940, em Leningrado. A formação literária de Brodsky foi produto de um inusitado outsider; sabe-se que aprendeu polonês para traduzir as obras de poetas da Polônia como Czesław Miłosz e inglês para traduzir John Donne. O segundo idioma serviu para mais. Depois de entrar em conflito e se tornar figura non grata na União Soviética buscou exílio nos Estados Unidos, onde se estabeleceu até o fim da vida. Neste país chegou a atuar como professor nas universidades de Yale, Cambridge e Michigan. Em 1987 recebeu o Prêmio Nobel de Literatura. Escreveu poesia, gênero pelo qual ficou reconhecido, ensaios e peças para teatro. Morreu a 28 de janeiro de 1996, em Nova York.



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