M. B.
Querida, hoje saí de casa
já muito ao fim da tarde
para respirar o ar fresco
que vinha do oceano.
O sol fundia-se como um
leque vermelho no teatro
e uma nuvem erguia a
cauda enorme como um piano.
Há um quarto de século
adoravas tâmaras e carne no braseiro,
tentavas o canto, fazias
desenhos num bloco-notas,
divertias-te comigo, mas
depois encontraste um engenheiro
e, a julgar pelas cartas,
tomaste-te aflitivamente idiota.
Ultimamente têm-te visto
em igrejas da capital e da província,
em missas de defuntos
pelos nossos comuns amigos; agora
não param (as missas). E
alegra-me que no mundo existam ainda
distâncias mais
inconcebíveis que a que nos separa.
Não me interpretes mal: a
tua voz, o teu corpo, o teu nome
já não mexem com nada cá
dentro. Não que alguém os destruísse,
só que um homem, para
esquecer uma vida, precisa pelo menos
de viver outra ainda. E
eu há muito que gastei tudo isso.
Tu tiveste sorte: onde
estarias para sempre – salvo talvez
numa fotografia - de
sorriso trocista, sem uma ruga, jovem, alegre?
Pois o tempo, ao dar de
caras com a memória, reconhece a invalidez
dos seus direitos. Fumo
no escuro e respiro as algas podres.
* Tradução de Carlos Leite.
Porta San Pancrazio
As abelhas não voaram para longe, nem um cavaleiro partiu
a galope. No bar Gianicolo, velhos companheiros relembram os dias
da infância, e o cubo de gelo derrete‑se, arrefecendo o frágil motor
grato por beber duas vezes a mesma água.
Oito anos passaram. Guerras rebentaram e esfumaram‑se,
famílias desfizeram‑se, a escumalha desnudou os dentes envelhecidos;
aviões caíram do céu e o rádio murmurou «Jesus».
Os lençóis ainda podem ser lavados, mas as rugas da pele
não se rendem à palma mais suave. O sol sobre uma Roma
no Inverno empurra o fumo púrpura com raios desnudos. A cinza
tresanda a folhas queimadas, e a fonte brilha como uma medalha
vacilante pendurada num canhão que ao meio dia dispara a sua salva.
A pedra é usada para manter cativa a memória.
Contudo é mais difícil aparecer do que desaparecer numa perspectiva
fugindo da cidade pelos anos fora e para além
em perseguição do puro tempo, desprovido de amor e de futuro.
A vida sem nós, querida, é pensável. Ela existe como
abelhas, cavaleiros, bares, habitués, colunas, vistas,
e nuvens sobre este campo de batalha cujas estátuas eternas
triunfam, com o seu corpo, sobre a possibilidade de te tocar.
1989
As abelhas não voaram para longe, nem um cavaleiro partiu
a galope. No bar Gianicolo, velhos companheiros relembram os dias
da infância, e o cubo de gelo derrete‑se, arrefecendo o frágil motor
grato por beber duas vezes a mesma água.
Oito anos passaram. Guerras rebentaram e esfumaram‑se,
famílias desfizeram‑se, a escumalha desnudou os dentes envelhecidos;
aviões caíram do céu e o rádio murmurou «Jesus».
Os lençóis ainda podem ser lavados, mas as rugas da pele
não se rendem à palma mais suave. O sol sobre uma Roma
no Inverno empurra o fumo púrpura com raios desnudos. A cinza
tresanda a folhas queimadas, e a fonte brilha como uma medalha
vacilante pendurada num canhão que ao meio dia dispara a sua salva.
A pedra é usada para manter cativa a memória.
Contudo é mais difícil aparecer do que desaparecer numa perspectiva
fugindo da cidade pelos anos fora e para além
em perseguição do puro tempo, desprovido de amor e de futuro.
A vida sem nós, querida, é pensável. Ela existe como
abelhas, cavaleiros, bares, habitués, colunas, vistas,
e nuvens sobre este campo de batalha cujas estátuas eternas
triunfam, com o seu corpo, sobre a possibilidade de te tocar.
1989
* Tradução de Sandra Costa.
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Joseph Brodsky nasceu a 24 de maio
de 1940, em Leningrado. A formação literária de Brodsky foi produto de um
inusitado outsider; sabe-se que aprendeu polonês para traduzir as obras
de poetas da Polônia como Czesław Miłosz e inglês para traduzir John Donne. O
segundo idioma serviu para mais. Depois de entrar em conflito e se tornar figura non grata na
União Soviética buscou exílio nos Estados Unidos, onde se estabeleceu até o fim
da vida. Neste país chegou a atuar como professor nas universidades de Yale, Cambridge
e Michigan. Em 1987 recebeu o Prêmio Nobel de Literatura. Escreveu poesia, gênero
pelo qual ficou reconhecido, ensaios e peças para teatro. Morreu a 28 de janeiro
de 1996, em Nova York.
Grande poeta!
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